sábado, 4 de maio de 2024

crônica da semana - tucandeira

 Tucandeira

O mês de maio inicia com as comemorações e reflexões pelo Dia do Trabalho. Mesmo com a correnteza do livre pensar entendendo que a comemoração  deva ser pelo  Dia do Trabalhador, não há conflito na base ou no chão da fábrica de referendo sobre  o sentido de uma ou outra opinião. Penso que ambas são válidas. Ainda no meu tempo de militância sindical, reconhecia as duas referências, embora eu seja simpático, até recorrendo a uma visão Evolucionista, à versão que define o primeiro de maio como o Dia do Trabalho: reconheço a capacidade de realizar trabalho como uma propriedade essencialmente humana, evolutiva (que vem desde o aumento de volume do cérebro, passando pela mutação que gerou o polegar opositor, até a elaboração química que nos permitiu abstração e as formulações cartesianas dentro do cocuruto da gente), e que por toda a história tem o poder de modificar as coisas, o mundo, a vida.

Na origem, ora veja, trabalho é palavra ligada à dor.

Vem do latim tripalium e representa um instrumento de tortura. Com o passar dos anos, a palavra foi associada a este dom que temos de modificar as coisas, e mais: formou um conceito de troca de valores. O trabalho é tido também como mercadoria, como peça de uma engrenagem produtiva lubrificada pela alma das gentes.

Se o dia do trabalho ou do trabalhador é motivo de festa ou de dor, vai da gente. Depende das nossas análises pessoais, conjunturais e até à luz do dito humor do mercado. Eu, desde que era sindicalista, encapetado que era, e hoje, apascentado e ainda na lida da fábrica, faço do meu dia a dia, um oportuno laboratório que me dê perceber qual o real sentimento que habita o coração do operário ante o mundo do trabalho.

E sempre recorro ao marco cravado para a celebração da data e que se pauta na luta e na repressão de operários de Chicago, em manifestações pela redução da jornada, que chegava a 16 horas por dia, no final do século 19. Conto essa história, destaco que a reivindicação dos trabalhadores não foi atendida e ainda, que a manifestação resultou, segundo a versão mais conhecida, em enforcamento de sindicalistas. Aí, a reação que mais percebo nos meus companheiros de trabalho é um assustador distanciamento, um alheamento do desfecho, em alguns casos, com teor condenatório e pessimista. “Tá vendo,  lutaram tanto e perderam”, ouço, desnorteado, de parceiros que dividem a lida comigo, todos os dias e que hoje cumprem jornadas de, no máximo, 8 horas, conquistadas a partir da dedicação dos enforcados. Ouço que se referem aos condenados, na terceira pessoa: como ‘eles’. Eles perderam e não ‘nós perdemos’. Não se incluem no processo de lutas históricas.

Penso ser este desnorteamento, a minha dor. Meu tripalium rotineiro... doído.

A rotina do trabalho, porém, me legou outra dor, uma dor física insuportável, causada por uma ferrada de Tucandeira. Foi em Rondônia.

Eram meus primeiros anos vendendo a minha mercadoria-trabalho. Nem reconhecia o certo dos direitos, deveres, instintos ou impressões que permeavam meu mundo de trabalhador. Desenvolvia as atividades dentro das minhas oito horas, com intervalo para o almoço. Tínhamos um restaurante exclusivo para nos atender, coordenado por uma chefe exigente, disciplinadora. Todos, antes de entrar no restaurante deveriam fazer a higiene lá fora, se lavar, tirar a poeira e não entrar de botas no salão. Deu então que me cuidei, me ajeitei, deixei a bota na sapateira, e antes que eu chegasse à porta do prédio uma Tucandeira me pegou no caminho. Vi estrela, Fui na lua e voltei direto para os horrores da tortura que aquele veneno viajando desinibido fazia desde a ponta do dedão do pé até meu mais límpido espírito.

Alguém que ainda estava de bota viu a formigona desatracando de mim, esmigalhou a bicha na bicuda, mas a bronca já era feia. 24 horas e eras de dor imensa me esperavam. Resisti. Resisto ainda às ferroadas.

 

 

domingo, 28 de abril de 2024

crônica da semana - A Terra

 A Terra

Maldo que até pecado é. Não vejo mesmo nenhum poeta, escritor de juras e modos ou mesmo letrista de ocasião, explicar o que escreve. Eu já tenho este sestro. Esta mania. É a minha índole analítica corroendo, expondo os intricados mundos da inspiração. Por vezes, me vejo arremedando aquele personagem de um programa de humor antigo que gostava de tudo ‘bem explicadinho’.

Deu-se então, que tenho vivido dias deslumbrantes, enriquecedores, aquecidos de carinhos intensos... de vovozinho. E assim, né, daquele vô que quer prestar reparo em tudo, dar pitaco nas horas, nos jeitos, modos, seres, entenderes e estares, da netinha. Um dia desses cismei que precisava mostrar este mundo para a pequenina. Subi ao alto e infinito e de lá vi nosso planeta. Este aqui é o nosso mundo, a Terra.

Fácil apresentar o planeta para minha neta. Sou da barra, do meio. Sei dos termos. Dou ali meus pulinhos na Geologia e daí, era fácil. Era só falar sobre a formação do planeta, os 4,5 bilhões de anos contados em várias fases e constituições. Citar, com suas reais relevâncias, a crosta, o manto, o núcleo, as extinções; dar um destaque ao meteorito que caiu no México, à abertura do Atlântico; argumentar sobre a configuração das placas tectônicas, as interações ambientais; esclarecer que tudo isso vai acabar e big e bang. Tudo certo. É o final, acabou o mingau.

Para ser um aprendizado leve, fiz um poema.

No meio do caminho, as pedras da Geologia me alertaram que a Terra não era só substância, calor, o fim um dia, racionalidade, e a Física da natureza. Há muito sentimento envolvido. Deram uma guinada então, meus versos.

O poema foi adiante e pretende mostrar para minha netinha que além da natureza física, nosso planeta é envolto em sentimentos, em gestos de afeto. Em manifestações e sublimações de prazer ou de dor. Somos uma mistura de rochas, sonhos, água, desejo, ar, claridade, solidão. Pensamento, chão, maldade, gravidade, esperança, fogo. Livros, ligeireza, químicas, corpos, pétalas, peixes, vazios, amores vãos e sãos.

De forma que o poema se propõe a explicitar nossa completude. Nossa perfeição. Um planeta delicado, que necessita de um ajustado equilíbrio entre as camadas que o fazem vivo.

Quando nos referimos aos riscos que o planeta corre e que se não contidos podem abreviar o fim, que sabemos ser certo, não apontamos apenas para a frieza dos pólos, para as profundezas dos mares. Para as lonjuras dos picos mais altos ou para a sensibilidade das florestas. Nos dirigimos também aos escaninhos da alma. Aos entusiasmos dos olhares e aos sabores dos beijos. A Terra é feita de toda a espécie de matéria muda, bruta e... de gente. Na elaboração, busquei envolver as essências humanas, as sensações, as abstrações, a esperança eterna, o amor. Não somos apenas a materialidade racional, a molécula, a substância.

Meu compadre Edir Gaya musicou meu poema. É nossa mensagem para a netinha. Coisa de vôs. Acredito que nossa canção vai levar a ela, um entendimento de cumplicidade, de compromissos mais afinados e sinceros com o planeta. E meu desejo puro é que a netinha veja a Terra com os olhos da amizade e do cuidado. Abonada pela energia que a música oferece.

A canção foi lançada em todas as plataformas, no dia 22 de abril próximo passado. Está disponível. É só procurar por “A Terra” ou Edir Gaya. Se pesquisar Raimundo Sodré, vão aparecer dois. O famoso baiano da “massa da mandioca” e outro. Eu sou o outro. Põe pra tocar aí na vitrola e se gostar, passa pros amigos, parentes e aderentes. Quanto mais gente conhecer nossa música, mais a gente se realiza um pouquinho e, dizque quando tá na rede, a gente ganha uns centavinhos se as curtidas ultrapassarem um número xis de registros. Bora ver se daqui a uma eternidade o apurado dá pra gente comemorar o sucesso d’A Terra, com uma rodada de vinho de cupu.

domingo, 21 de abril de 2024

crônica da semana - meu violão, meu amigo

 Meu violão, meu amigo

As cicatrizes são heranças, registros, dotes incontestes, ativadores de memórias, de capacidades de resistir, de viver mais, superando dores. São traçados marcantes, desenhos frutos da dor ou da crueldade dos tempos. Cicatrizes se mostram no tecido das lembranças, na tez negra dos ancestrais, nos olhos de quem vê, no coração de quem sente. Cicatrizes são multisons, multivozes, muitimatérias. São recortes latentes de algum sofrimento. São remendos recontadores de histórias.

Meu violão, meu amigo, tem uma cicatriz.

O que torna é que semana passada, seguindo a dita de que a gente oferece aquilo que gostaria de ganhar, dei um violão de presente para minha nora, no dia do aniversário dela. Ela gostou, porém confesso que a satisfação foi mais da minha parte. Senti que fazia o bem presenteando com um companheiro da mais alta valia, um amigo de todas as horas. O violão é parça de não se desapregar. Cuida da gente. E a gente cuida dele...

Tenho um Di Giorgio há nem sei quanto tempo. A lembrança mais remota que tenho dele é que foi com ele que compus as leves canções de ninar para minha filha, logo que ela nasceu. Só aí se contam 26 anos. Ainda que velhinho, ainda que exibindo as cicatrizes, tem um som de responsa, e uma postura elegante. Esses dias, comprei um suporte imponente pra ele e o acomodei num ponto de destaque na  casa. Ele compõe o ambiente com aquela elegância, aquela presença refinada digna de um Di Giorgio. Eu o trato com carinho, respeito e uma gratidão sem fim, por me acompanhar, por me dar esta oportunidade, de forma indulgente, em tantos anos reconhecendo meus limites, de me aproximar dos prazeres que a música ativa na gente. Tivemos, porém, momentos de extremada dor.

Certo dia, cheguei em casa e me deparei com o tampo do meu violão totalmente descolado. Um cenário desolador e distorcido que me apavorou e me desnorteou. Meu violão, meu amigo, estava destruído!

Quem nos salvou foi o Armando.

Na época, meu companheiro fazia um curso de luthier. Viu meu sofrimento e sem contar tempo, me socorreu.

Armando era assim, na essência, o que reconheço como companheiro. Sempre agia para o bem. Comunista bem mais preparado que eu, pois até hoje me sustento no valor sintético do método “ver, julgar e agir”. Ele não. Era estudioso. Analítico. Dominava as teorias, defendia e assumia os postulados que pregam uma sociedade livre e igualitária. Militamos em nichos sindicais diferentes. Eu, na iniciativa privada, ele, no serviço público. Armando chegou a presidir o Sinjep e a elaborar políticas também no campo partidário. Mas foi no meio da arte, que nos aproximamos.

Armando Soares era um ser de luz. E essa luz se irradiava. No meio sindical, na família, nas batucadas da vida. Sempre composto em sua boina de crochê, em várias ocasiões nos encontramos em saraus, nas intervenções populares de cultura em praça pública, nos shows de artistas e poetas da terra. Nossa família também se aproximou. Fizemos alguns encontros na Pirajá pautados na mais doce amizade de nossa petizada.

Aí, ele viu minha dor.

Pegou meu violão todo estiolado, levou para a oficina que oferecia o curso de luthier, organizou uma ‘junta médica’ e tratou meu violão, meu amigo. Não me cobrou nada. Era comunista, companheiro, camarada. Trouxe meu violão recuperado até mim, e quando o pôs nos meus braços, percebi nele, o ar de servidor que lhe era peculiar, aquele aspecto límpido, aprazível, cheio de afeto e carinho de quem se deleita em fazer o bem. E eu? Eu transbordando de felicidade e, ao mesmo tempo, imensamente agradecido.

Meu violão, meu amigo, tem uma cicatriz.

Encarou poucas e boas. Sem pele, sem osso. Passou. Encontrou, no caminho das desolações, Armando. Hoje dá nobreza à minha casa, à minha vida. Cicatrizes são recortes latentes de algum sofrimento. São remendos recontadores de histórias.

 

 

 

sábado, 13 de abril de 2024

crônica da semana - começou a aula

 Começou a aula

Se tem algo, uma entidade física que comanda todas as coisas, e estados e movimentos, é o tempo.

Esta é uma reflexão profunda, cheia de ramificações, derivações, mãos e contramãos filosóficas, mas de palmo em cima com a vida, a gente vai no rés, na bucha, sem nem esforço, e confirma a tese. Pode reparar. Conte quantas vezes disse ou ouviu alguém fazer considerações aleatórias nesse rumo: “tal coisa era assim, assim, mas com o tempo, mudou”. Não tenho dúvida, a gente fala no jeito e na maneira, das deduções e dos rumos da nossa história, o tempo todo que o bom Deus nos dá de vida. E sempre destacando o tempo como o definidor, o que altera, o que move e o que comanda nossa caminhada sobre os trilhos sem fim da Terra.

Deixa estar que o tempo me deu acompanhar o primeiro dia de aula de minha netinha. Com dois anos e pouquinho, a pequenina já se integra à rotina de uma estudante. E foi um ritual agregado à vovozice: Aquele instante em que ela, com uma mochilinha na costa fazendo menção de ter algo dentro, e que era mais simbólica que funcional; aquele momento sublime, em que, antes de abrir a porta da rua, deu uma paradinha, virou pra mim, abriu um sorrisinho e lançou um ‘tiau vovô’, vai para a conta de uma emoção tal, de não se perder no tempo. Uma cena marcante, de um lado pela expressão integral de fofurice, e de outro, pela reiteração da fé que tenho na educação, e que me dá a certeza de que ultrapassando aquela porta, minha netinha está avançando para um futuro de muitas realizações pautadas no conhecimento e na defesa dos valores que fizeram o tempo nos trazer até aqui.

Aí, olha só, tornei no tempo.

E como o tempo muda, né, ou pelo certo, como as coisas mudam com o tempo...

Na escola, escola mesmo, desse modelo institucionalizado, com professora do magistério, chamada, lápis e papel com pauta, eu só ingressei com sete anos. Centro Educacional e Técnico Nossa Senhora Aparecida. A escola da igreja que oferecia vagas do governo para quem não podia pagar. Não sei como mamãe conseguiu. Mas eis que um dia bem diferente dos meus dias comuns, vesti meu uniforme, que tinha uma estrela estilosa no peito, peguei na mão da minha tia, nos adiantamos pela Marquês, dobramos na Barão e mais com pouco, formaria na fila do menor para o maior na vez de iniciar minha caminhada me ajeitando na Primeira Atrasada.

Com sete anos na Primeira Atrasada, no segundo semestre, a partir da justificativa de que eu já sabia uma coisinha, dei um salto para a Primeira Adiantada e daí pra frente.

O que seria essa coisinha, que me deu o status de geninho, é que me pego a perguntar. Conhecia algumas figuras geométricas. Meu tio, que cursava o ginásio no Magalhães Barata, aqui, ali, pegava umas caixas de sapato, guardadas não sei pra quê, pelas tias, e traçava naquela superfície de papel áspera, um quadrado, um triângulo. Verdade. Na Primeira série eu já reconhecia até um losango ou um trapézio, formas que vejo até hoje, confundem muitos marmanjos. Talvez tenha sido este o talento que impressionou e levou minha professora a me adiantar. Outra habilidade que deve ter contado era a que eu já sabia a tabuada e o abecedário todo, apreensões alcançadas a peso de uma palmatória com um furo no meio, ferramenta jamais dispensada pela professora Lurdes na aula particular que eu frequentara até pintar a vaga na Aparecida.

Esta guinada ao passado, me dá reconhecer o caráter reparador, consertador, do tempo. O seguir dos anos cuidou para que a medida do tempo dada pela idade da criança, não fosse um critério inabalável. De lá para cá entendemos que a capacidade de aprender não está marcada por uma linha limite. Vai do método. E quem vê como os pequeninos manejam um celular hoje, me entendem.

No primeiro dia de aula de minha netinha, não duvidei: temos que cuidar dos valores que fizeram o tempo nos trazer até aqui.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

crônica da semana - a minha alma canta II

 A minha alma canta.

Tô eu aqui de perna pro ar, pensando na vida da bezerra, só na manha das férias. Nem seu Souza para o tempo que passa.

Nisso que esbarro no tempo, reinei de contar um pouquinho da noite longa que foi minha viagem aqui para a Guanabara. Digo longa porque sou desses, se a viagem é tantas horas do dia tal, uma eternidade antes já estou pronto, todo etiquetado, documento em mãos, mexendo aqui, ali no celular pra ver hora de voo, início de embarque, portão, poltrona, não pera, vai que muda...E foi desse jeitinho mesmo. Duas horas antes do embarque, calcei a meia, os sapatos, que constam da parte final do rito de me aprontar, chamei o carro e me piquei para o aeroporto.

Agora, no avançar dos anos, estou é me dando com essa coisa de prioridade. Não curto mais a fila. De prima entrei na sala de embarque, o que representa o primeiro suspiro da jornada. Antes, a tensão daquele apitinho no detector de metais e qualquer outra coisa, no curralzinho de entrada. Já me pararam por causa de um desodorante. Que dirá dessa vez, trazendo umas gotinhas de cachaça de jambu para os novos moradores da cidade maravilhosa. Enfim, tudo na paz. Deixaram a cachaça passar. Era pouquinha mesmo. Só um souvenir. O homem só perguntou se eu não usava cinto. Disse que não e fui s’embora.

O bom de chegar cedo é que a gente vai se aliviando aos poucos. Logo adiante, me livrei da bagagem. Agora tem essa presepada de cobrarem um valor para despachar a mala. Maior parte dos passageiros não paga e se vira com as maletinhas de mão. Aí quando a gente tá pra embarcar as empresas chamam para despachar sem custo. Agora fica nesse puxa-encolhe, eu heim. Se foi pra desfazer, por que é que fez!

Fui o pri também para entrar na aeronave, só que desta vez, junto com uma galera da Venezuela. Parece que era um embarque especial de um grupo tutelado pela imigração. O que exigia àquela turma, uma atenção espacial dos comissários. Houve o cuidado de agrupá-los por afinidade, por família, para que não se sentissem sozinhos. E isso causou um desconcerto, pois acabaram ocupando lugares de outros passageiros. Foi um para pra acertar, olha, um jogo das cadeiras. A minha preocupação é que essa manobra poderia, como de fato aconteceu, atrasar o voo e eu tinha uma conexão muito rápida em Campinas, menos de 40 minutos pra descer dum avião e subir noutro. Se perdesse tempo... Tudo ajeitado, ainda sobrou lugar. O bichão virou o bico para o céu e voamos por 3  horas e meia até São Paulo. E nesse tempo todo não preguei o olho. Éraste! Não consigo dormir. De formigamento estranho nas pernas, ao incômodo do ouvido tapado, passando por uma dose cavalar de ansiedade, além da hora da broca, tudo me corta o barato de uma sonequinha.

Deu no que deu. Cheguei na biqueira pra pegar a conexão. Desembarquei e dei aquela velha corridinha. Alcancei o ônibus que levaria ao outro avião, já lotado. Fui me ajeitando, mas tinha uma moça atrás de mim se virando com uma sacolona. Foi aí que vi um cidadão japonês todo à vontade ocupando duas cadeiras com bagagem, naquela parte alta do ônibus. Olhei feio pra ele. Num instante ele se aviou. Abri caminho e a moça conseguiu se ajeitar com as tralhas dela. Tá vendo como é a internacionalização da deselegância, da falta de empatia. Fiquei na bronca com o cidadão japonês.

Entre Campinas e o Rio é rapidola e uma viagem beirando o Atlântico. Muito firme! Um contratempo, porém, e o avião ficou zanzando a 3.000 metros sem poder pousar. Uma garotinha faladeira, da poltrona ao lado, ligada no mapa do voo, ainda atiçou perguntando aos pais se  iríamos cair.

Caiu o pano, a pista foi liberada. O pouso no aeroporto Santos Dumont é algo entre delirantemente belo e docemente apavorante.

O Rio continua lindo, lá fora, porque eu cheguei e dei o desconto. Dormi o dia todo que o redentor me deu.

sexta-feira, 29 de março de 2024

crônica da semana - di maior

 Di maior

Agora em março, na quarta 27, completei 18 anos escrevendo esta coluna. E lá vai o meu sestro matemático agir e me levar às continhas. São mais de 800 crônicas gravadas nestas páginas ao longo deste tempo. Algumas, marcando muito fortemente, a minha memória e a de muita gente. Mais de 3 milhões de ‘caracteres com espaço’ contando, descrevendo fatos, sentimentos, criando fantasias, reduzindo distâncias entre passado, presente, primeira légua de Belém, Xapuri, Amazônia,  esta Pedreira velha de guerra e paz que amo... e o mundo todo.

Números são importantes porque dão uma carga, uma medida à produção. Mas expressam também uma trajetória ao longo de uma reta que se move em várias direções. De estilo, temática, densidade (os tais caracteres com espaço), estética, composição e linguagem. Às vezes a gente nem malda, mas cuido de prestar reparo em tudo isso, quando escrevo. Daí, as crises, reflexões, e as mudanças que ocorreram na minha escrita, nesta jornada de 18 anos.

No balanço, destaco a grande alteração pela qual passou a envergadura do texto. Quando entrei aqui, era um desregrado, me desembestava a escrever e não acabava mais. Colaborava com jornais empresariais, periódicos comunitários de Barcarena, e editores como Fernando Jares, Jeniffer Galvão, Márcia Ferreira, aceitavam este meu desembestar e até davam corda para a farta fluidez. Encorpava as edições e me oferecia a chance de explorar várias pautas. Aqui o espaço é precioso. Embora sempre garantida à literatura, a vaguinha nesta coluna obedece às regras da diagramação empresarial. Acabei me adaptando e os toques (antigamente eu conhecia assim, como toques) calculadinhos já me são doces e íntimos.

Pelo caminho, topei com o dilema do lide. Perdi sono com essa regrinha do jornalismo que diz serem as primeiras linhas de um texto, integrais, fundamentais no adiantamento do que vem a seguir. Justo, acho justo. Ainda mais na crônica. Um parágrafo inicial rápido, com frases de efeito, palavras-chaves, pegam realmente o leitor pelo pé. Tem um porém. É regra. É comando. E a inspiração não tem comando. Não me desagrada o lide, mas, também, não me aprisiona.

Vira e mexe, me bato com o estilo. É uma questão fácil de resumir. Quando escrevo difícil para agradar uns, recebo de volta que ninguém entende. Quando tareio no verso mundano, tentando outros, ouço que escrevo simples e fácil, tipo redação ‘minhas férias’, da oitava. Pelo bem e pelo mal, ou como diria Guimarães Rosa, pelo io e pelo chio, sigo neste balangado muito à vontade. Nesta pisada até que, aqui-ali, aufiro uns louros de parte considerada dos entendidos nos ofícios que cuidam da composição literária..

Em 18 anos, não posso negar que tenho uma linha, sigo uma temática. Sou um memorialista. Um montão do que escrevo vem de lembranças ou de casos não vividos, que gostaria de tê-los vivido. E os desvelo na língua falada do meu lugar, visse! Boto fé que minha palavra escrita tem o som das ruas. Sou também regionalista. É recorrente nas minhas narrativas, a minha operacional relação com a Amazônia. Sou da barra: A Pedreira sempre está. E grato: Belém. Belém! Que me acolhe, me tolera e me permitiu ter um futuro.

Não tinha este sonho. Por outra, desde a Escola Técnica, me inclino a escrever. Comecei com um arremedo inocente de versos do grande Vinícius. Arredei um pouquinho na construção textual e me apeguei, me dei mesmo foi com a crônica. Dissecada, explicada bem explicadinha pelo gênio observador de Antônio Cândido: “a crônica é a vida ao rés-do-chão”.

Tenho nos números, também me ombreado neste espaço a jovens talentos como Juliana Silva, Carol Porto, Laila Maia, Argel Sodré. E com meu compadre Edir Gaya, que além destas oitocentas e poucas crônicas publicadas, acresceram minhas continhas com seus lindos textos. Borimbora pra frente. Agora di maior.

 

 

quarta-feira, 27 de março de 2024

sábado, 23 de março de 2024

crônica da semana - Dona Silva

 Dona Silva

Era o que se costuma dizer hoje, uma guerreira. Criou sozinha três filhos homens, sustentava a casa com o salário de merendeira de uma escola do estado e era nossa vizinha parede-meia. Não é o caso explorar a história e descobrir por que Dona Silva ficou sozinha, embora seja necessário a gente identificar e discutir estes casos. Não é fácil. Sumiço, desaparecimento, o abandono do lar pelo marido, pelo pai é chaga que deixa marcas profundas na família. É um trauma e uma falta na organização familiar sentida a cada dia, principalmente, na luta incessante pela sobrevivência. E, infelizmente é tão comum esta prática cruel, este descompromisso, a ausência de qualquer responsabilidade, se não afetiva, pelo menos jurídica, social, de apoio, de cuidado com quem um dia o desertor teve alguma relação. Eu mesmo, se tirar das minhas relações comuns, devo contar que em torno de 80% das famílias que conheço, são assumidas apenas pela mãe.

O marido de Dona Silva foi embora e ela ficou com os três filhos. Não tinha mais ninguém. Quer dizer, éramos vizinhos. Dividíamos a mesma parede de uma casa de madeira pequenina de três cômodos, as duas famílias sob o comando de uma mulher: não estávamos sozinhos diante do destino. Tínhamos uns aos outros.

Tão atenta e generosa era que, não dava uma vez que recebesse o garantido ordenado do mês, mesmo que miúdo, fosse ao Supermercado Sandra, fizesse uma feira bem sortida e não trouxesse uma coisinha pra gente. Não providenciasse aquele quilo e meio de pá só com o osso da peça, inventasse um assado de panela e não reservasse a nós, uma prova. Ou mesmo preparasse um pratinho qualquer, uma gororoba, uma coisa, outra e não partilhasse conosco em momentos de um simbolismo comovente. Do nosso lado, nem o certo miúdo era garantido. Não tínhamos salário. Todo mundo se virava lá em casa, mas era um numerário flutuante, atrelado ao balançar das ondas de vendas ocasionais, cobranças, empréstimos, doações. Quando a gente tinha, mamãe tornava com um agrado para Dona Silva e os meninos. E assim, a vida era vivida. Nos segredos guardados entre as brechas da parede-meia, nos aperreios e consolos ritmados, em sinceras intenções e nas autênticas vontades de fazer o bem.

Dona Silva é bem dizer, a responsável por eu estar aqui, catando milho no teclado deste computador e elaborando uma narrativa, hoje, prosaica, sobre as suas condutas tão solidárias.

Certa vez, numa conversa com mamãe, expondo uma experiência vivida na própria família, apresentou uma possibilidade de futuro para mim. Orientou mamãe que me estimulasse a fazer a prova de admissão para a Escola Técnica. Dois dos filhos dela ainda beiravam concluir o curso e já estavam com empregos garantidos.

Para mim foi um sacolejo. A ideia de futuro além da oitava séria, em mim não existia nem no rés dos meus pensamentos. Tinha a luta diária, a “obrigação de acordar cedo para ir à escola”, um compromisso de não mais repetir de ano, mas daí, juntar estas coisas e formular um futuro, isso não existia não.

Acontece que agarrei e fui fazer a prova. Foi na arquibancada do ginásio da Escola de Educação Física, mina de gente e a papelada com as questões apoiada sobre os joelhos. Daquele dia e mais três anos e meio de uma dedicação aqui, ali abalada pelo peso dos desafios, ganhei meu diploma e menos de dois meses depois de formado, consegui meu primeiro emprego em Rondônia. Bingo, Dona Silva!

Com as conquistas proporcionadas pelas carreiras, os meninos de Dona Silva mudaram de vida, e ela também. Um deles foi para o Rio. Eu me passava quando Dona Silva rejuvenescida, toda no seu rouge, nos informava que iria visitar o filho no Rio de Janeiro.

Passados tantos anos, estou eu dando o mesmo papo. Mais com pouco passo um pó na cara, arrumo as malas e vou visitar meu filhinho, a nora, e a netinha no Rio.

sábado, 16 de março de 2024

crônica da semana - Pavãozinho do Pará

 Pavãozinho do Pará

Estou lendo agora uma edição bem bacana de “Aruanda” e “Banho de cheiro” de Eneida. Uma publicação bem bolada com as obras da escritora paraense marcadas por duas capas e as versões se encontrando de ponta-cabeça, de formas que, se iniciamos a leitura por “Aruanda”, ao terminar de ler a última crônica nos damos com os textos de “Banho de cheiro” do fim para o começo, e de cabeça pra baixo. Aí a gente vai e desvira o livro. Firme!

Eneida, que é minha vizinha nominando praça aqui na Pedreira, indo em cima e vindo em baixo no talento e no estilo, dá um banho de cheiro, de jeitos, modos e lembranças em narrativas que ora comovem, ora nos fazem refletir e em muitos casos nos põem lado a lado nas experiências. É o caso do Pavãozinho do Pará.

O pavão, aquele engalanado, posudo e exuberante, pra mim é como diz o samba: não sei, nunca vi, só ouço falar. Conheço só de fotos da National Geographic. Agora este um do Pará, já estivemos nós dois, de palmo em cima.

A grande cronista paraense, em algumas passagens das obras, faz citações, com temperos nostálgicos, do pavão e até trata as cenas como se comum fosse topar com um exemplar da ave ainda nos limites urbanos de Belém dos anos 20 e 30 do século passado.

Por aqui pela barra não vi não, mas em Rondônia, naquele início dos anos 80, no meio do caminho em mata virgem e fechada, tive a sorte de ter como companhia um pavãozinho. Com o direito a exibição do resplendor, bem modesto, com relação ao outro tipo, entretanto contendo em si, um arranjo de cores belo, suave. Sem aquela imponência vertical, comum ao mais famoso exemplar; mas de outra forma, com uma doçura, e com assumida humildade, a cauda se abria expressada em uma modéstia horizontal e encantadora, à minha vista. Naquele dia não sabia que tipo de ave era aquela, mas na óbvia dedução, imaginei ser um pavão. Ali, do segundo grupo de paletas. Mas, de certo, um pavão.

Este caminho era minha prova diária de coragem. Sem exagero, era uma brenha. Um ermo estirado e imprevisível. Andava por ali duas vezes ao dia. Pela manhã, quando me deslocava da vila em que morava para meu acampamento de pesquisa e, na volta à tarde, já com o canto da Guariba ao longe e o fiu fiu do Cricrió celebrando a brisazinha mais aquela de amena, no final do dia.

Era uma opção minha fazer esta caminhada que durava em torno de uma hora pela mata densa, em passadas de bom ritmo. Um varadouro que arriscava ensejar toda a sorte de encontros. Desde aqueles miúdos com as audaciosas formigas saca-saia até os empoderados, com as temidas onças caçadoras. Escapei de todos os indesejados. E, num dia bom, fui agraciado com a bem plumada presença do pavãozinho.

No tempo que fazia aquela caminhada, era verdinho em Rondônia. Passei meus primeiros meses numa vila isolada chamada Bom Futuro e de lá, me irradiava para as frentes de pesquisa. Meus dias eram roteirizados em saudades de Belém (como nos conta nas crônicas, Eneida, os eram, os dela). Vivi a minha solidão naquele caminho cheio de possibilidades e não tinha espaço emocional para ter medo. Tinha medo era da solidão, tão longe de Belém. Acudia-me às cartas que, quando menos demoravam, passavam 15 dias para me alcançar. E aos três dias por mês que me eram proporcionados de folga em Porto Velho. Boa parte deles, eu passava dentro das cabines de telefone, pagando uma grana preta na chave para as ligações interurbanas, perturbando o televizinho e pedindo pra chamar a mamãe lá do outro lado da rua.

E foi naquele caminho que encontrei o Pavãozinho do Pará abrindo a penugem e se revelando em beleza para mim. Nunca mais vi outro, nem ouvi falar. A não ser agora quando leio Eneida nesta edição muita das suas pai d’égua com suas páginas de cabeça pra baixo revirando lembranças.

sábado, 9 de março de 2024

crônica da semana - casa de táuba

 Casa de táuba

A gente pensa que não, que não acha mais por esta Pedreira de Deus, casa de tábua. Mas tem sim. E aqui, no caso que nos cabe, tinha. A casinha que abrigou gerações, agasalhou o desagasalhado, acolheu aquela ruma de gente nos tantos tempos que se sustentou na dignidade e vontade, no último sábado, foi demolida. Uma cerimônia braçal, movida a sentimento de equipe, levou ao chão a casinha da vó, na Pirajá. Não há fantasia nenhuma, simbologia que seja, quando afirmo que, cada tábua desapregada e lançada ao chão, levava consigo uma história imensa de luta pela sobrevivência. Argelzinho, meu filho, sensível à densidade do fato, entre lágrimas, nos representou os sentimentos em texto comovente. Reproduzo aqui algumas partes também como reverência a uma casa que era um coração. Um coração onde todos nós, durante algum tempo, nos aninhamos seguros.

Isso me fez pensar que quando meu bisavô, Seu Cruz, e a minha bisavó, Dona Sassá, chegaram nesse terreno alagado, na baixada da Pedreira, construíram um barracão de pau em cima da água e colocaram os filhos (as) e netos (as) dentro, a gente tinha tudo pra ficar ali pra sempre. Poderíamos nascer e morrer todos nós dentro da lama. A pobreza que a minha família vivia ali parecia que era sem fim. Eu nem consigo, na real, imaginar o que as pessoas que amo passavam ali. Sabemos por alto, quando mamãe, minhas tias e tios contam dos traumas herdados.

Basicamente, dependiam dos esforços da minha avó, dos salesianos, do resto da família Nunes, vizinhos e agregados para se alimentarem e terem o mínimo de dignidade. E assim, todos vingaram. E não só vingaram, como ousaram sonhar com futuro melhor. Mesmo passando mais de 50 anos em cima da lama.

E aí eu nasci, no meio de um monte de gente sonhadora.

Ainda lembro, quando vinha da Vila dos Cabanos, de ver pela brecha do assoalho, os peixinhos de vala, de ver os mussuns passeando, de andar pelas pontes. Mas quando vim morar definitivamente aqui, não havia mais as pontes, as grandes obras de engenharia do governo deram algum tipo de melhoria pras nossas vidas.

Nós tínhamos algumas poucas certezas nos dias ali: ia ter comida, cuidado e amor; a vovó ia arrumar briga com alguém; a tia Dina ia pular o portão uma vez por semana; algum morador ia embora e logo chegaria outro; e ia chegar alguém pra almoçar sem avisar; o carapanã ia dar um samba na gente; ia ter goteira e rato.

Mas todos tínhamos um sonho. Um dia a gente ia dar certo e íamos ter onde morar, uma casa nova, nosso cantinho, nossa privacidade e poder contribuir pro bem-estar da vovó. Entendendo que se o sonho virasse um pesadelo, tínhamos sempre o coraçãozinho de táuba.

Em 2020 eu fui embora, depois mamãe, papai e Amaranta foram também. Em, 2022, a vovó finalmente saiu da casa de madeira e foi morar na casa de tijolo, no final do terreno.

Nesse tempo, algumas pessoas passaram temporadas na casa de madeira, mas agora foram expulsas pelos ratos. Sim, invasão de ratos em pleno 2024, podem acreditar. Foi aí que começamos a especular a demolição da casa.

Nesse final de semana, mais precisamente no dia 02 de março de 2024, a ideia virou realidade. Sem morador além dos ratos e dos cupins, a casa de madeira, histórica casa da família Nunes, que abrigou tanta gente sonhadora, foi pro chão. A casa de táuba caiu, Mas não se desespere! Se precisarem, tem a casa de tijolo, no final do quintal, vovó sempre deixa a porta e o portão (FECHA ESSE PORTÃO, MARLENE) abertos.

E agora temos um quintal gigante, as crianças da nova geração podem brincar e os jovens, os adultos, podem fazer festas e ainda os saraus.

Todas as gerações continuam sonhando. Só vamos parar de sonhar quando ninguém, NO MUNDO, precisar encarar tantos desafios, em meio à lama, para sobreviver.”

 

 

sábado, 2 de março de 2024

crônica da semana - Saqueiro

 Saqueiro! Saqueiro!

A principal atividade que realizavam era a de saqueiro. O produto era apregoado em cada canto. Nas feiras do Ver-o-Peso, da Pedreira, Jurunas, da Bandeira Branca. Vendiam um bem utilitário, não durável e advindo da reciclagem. O processo de elaboração se dava a partir do descarte dos sacos de cimento. Era um papel duro, vincado, grosso. A primeira fase contava com a escolha da face isenta de contaminação. Juntados, os fardos eram transportados, moldados e colados em tamanho de uma compra modesta na feira. Antes de ganhar a rua, ainda havia uma escala de qualidade. Saco simples, forrado em folhas duplas ou completado com saco plástico por fora, este, o saco do peixe. Dali eram distribuídos para os garotos. Os meninos arrumavam um jeitinho de se compor com a maior quantidade possível do produto. O método mais tradicional era uma peça de madeira linheira ou um cabo de vassoura de não mais que 50 centímetros atado a uma alça de barbante grosso nas duas extremidades, e que, lançada sobre o ombro, qual uma bolsa tira-colo, formava um conjunto equilibrado de modo a receber sobre a peça de madeira, os sacos dobrados uns sobre os outros em acamamento o certo que o peso fosse suportável. Abastecidos, ganhavam o mundo atrás da venda para ajudar ou mesmo para sustentar, como fonte única de renda, a família.

Mas a batalha diária não se limitava à venda dos sacos na feira. Havia, por certo, a concorrência, e a meninada corria atrás do di cumê de outras formas. Vendas de doces e salgados em tabuleiros atados também ao pescoço; bombons, cigarros, fósforos e outras precisões em bancas de esquina. Muitos recorriam aos semáforos e simplesmente pediam uma ajuda ou se davam a pequenos furtos. Para suportar as dores dos dias, não raro, quedavam-se ao alívio das colas de sapateiro.

Quando conheci mais de perto o trabalho da República do Pequeno Vendedor era a este universo que os educadores se dedicavam. Se entregavam com método, solidariedade e cuidado.

A República era uma organização social criada, liderada, orientada pelo Padre Bruno Sechi e suportada por uma legião de jovens incansáveis e inspirados. Muitos desses jovens eram daqui das bandas da Pedreira, Sacramenta. Iniciaram na missão através das campanhas de arrecadação de objetos usados, encaminhadas pelo Movimento de Emaús. A Grande Coleta, que se realizava com enorme repercussão a cada ano, era o suporte para as ações da República. Gerava recurso e também trazia voluntários de outros bairros para adensar o grupo de educadores e equipes de apoio.

As violências, as carências as quais os meninos e meninas estavam vulneráveis, eram identificadas no trabalho de rua, pelos educadores e resultavam em ações, medidas legais de proteção, proposições de amparo social e também nas campanhas de conscientização da comunidade, na expectativa que se tirasse das crianças os fardos, os pesos.

Um lugar onde aprender outros ofícios, senão aqueles da rua; ambiente seguro para matar a fome e se restabelecer dos conflitos diários foram conquistados. Tive experiências inesquecíveis na linha de frente. Acompanhei como se dava a acolhida dos meninos no restaurante do colégio do Carmo, no espaço comunitário da Padre Eutíquio e em pontos dispersos pelas ruas estreitas do cento de Belém.

O ECA e algumas políticas atuais surgiram com a contribuição do trabalho do Padre Bruno e equipe, com quem tive a honra de partilhar grandes momentos em favor dos jovens e crianças batalhadoras.

Este ano, o carnavalesco Eduardo Wagner Nunes, com a icoaraciense Boêmios da Vila Famosa leva para a avenida um enredo que homenageia e conta a trajetória de Padre Bruno, do Movimento de Emaús e das obras ligadas à defesa dos meninos e meninas de rua. É a folia esclarecendo, rememorando, alimentando o desejo de uma sociedade que transforme.

 

 

 

 

 

sábado, 24 de fevereiro de 2024

crônica da semana - a parada do Pisco

 A parada do Pisco

Era uma projeção antiga. Não uma vontade ou desejo. Diria que uma programação de futuro baseada na rotina dos meus vizinhos de bairro.

Ali de bobeira, pelas esquinas da Pedreira, sempre reparava que naquele tempinho após o trabalho, logo que desembarcavam do ônibus no canto da Estrela, alguns moradores conhecidos na área, se permitiam uma encostadinha no balcão do Pisco. Desciam umas cervejas, na razão de uma pra cada, traçavam as conversas leves de passar a hora e só depois iam pra casa. Era uma batida certa. Toda tarde o mesmo ritual. Prestava atenção, estimava o ânimo deles naquela confraria e admitia para a minha vida futura de batalhador em qualquer ofício, a possibilidade de me entregar àquela rotina. Penso ser salutar as reuniõezinhas do tipo. Um momento de se desapregar das cargas pesadas de um dia de trabalho, oportunidade de sair do mundo da produção sem medida, sempre mais exigida, e ingressar no seio da família, no aconchegante ambiente do lar, ou mesmo entregar-se ao papinho fácil com a parceirada da rua.  A esquina do Pisco era um entreposto, a margem demarcadora de humores, práticas, intenções diversificadas, analisadas e mapeadas a cada dia, a cada resenha realizada naqueles encontros no balcão do bar.

Passados os anos, já na minha vez, vivendo aquele futuro pregado lá atrás, nem por arremedo raso, faço aquela paradinha pra distrair, após o trabalho. Mesmo porque, Pisco mais não há. Minha lida diária, traduzo como tensa, pra não dizer outra coisa. Estressada, cairia na conta também. Na real os meus dias são iguais a tantos outros de tantas pessoas. Modelados em procedimentos, horários, condutas de tal maneira argumentadas e tão severamente pressionadas, que quando saio do trabalho, o que mais quero é chegar em casa, descalçar os sapatos e largar a mente e o corpo no vazio mais vazio que existe do mundo real.

A idéia de uma esticada, um serãozinho de bar, como aquela brotada na mente ali na esquina da Estrela, há tantos anos, ficou sufocada, forçosamente adormecida dentro de mim, por causa das minhas pressas constantes, até a última sexta-feira. Foi quando, naquela correria, passei por um amigo, encostado no balcão de um bar, relutei, mas parei pra tomar um chope com ele e quedar-me a uma óbvia revelação: ele é bem mais feliz que eu.

Nosso encontro foi permeado por cobranças e débeis justificativas. Meu amigo deu bronca. Lamentou a minha retidão porque já o tinha visto outras vezes no mesmo local e nunca havia encostado, só acenava de longe em meio a uma caminhada acelerada. Justifiquei como hábito, a ligeireza pregada pelo torniquete das obrigações. E emendei perguntando como ele consegue tempo para uma parada de lazer sem culpas. Aí ele deitou e rolou. Deu um banho de sabedoria.

Fez um brinde, inclinou a cabeça, fechou os olhos e descreveu aquele fim de tarde. Elogiou a música ambiente, bendisse o vento cortando de banda, ergueu as mãos fazendo as vezes das ondas fagueiras da Guajará. Disse sentir dali, o perfume de mangas caídas às margens desbarrancadas do Piramanha, furo que se embrenha pras bandas da Ilha das Onças e tirou de lá, doces recordações de uma ocasião em que se enamorou de jeitosas sereias azuladas de noite. Abriu os olhos e afirmou ser naquelas tardes de sexta, também depois de uma semana de trabalho duro, a pessoa mais feliz do mundo. Não havia razão para culpas. E desse jeitinho, entregando-se aos bons ares desta península ribeirinha de verde Amazônia. Fez outro brinde e mostrou-me um sorriso sincero. Saúde!

Verdades que me seduziram. Aquelas declarações espontâneas me inspiraram. Profundas como se pautassem um evangelho de cura adaptado aos toques rápidos dos dias.

Deu vontade de recriar uma esquina, Uma rua Estrela, uma parada de ônibus. Um balcão. Um novo Pisco de confronte à baía.

 

sábado, 17 de fevereiro de 2024

crônica da semana - o tempo que o tempo dá

 O tempo que o tempo dá

Eis uma época do ano que me vejo azuruotinho da silva. Não sei que dia é hoje, nem que dia será amanhã ou qual foi ontem. É Carnaval, e até quinta-feira se vive orbitando um limbo libertário, um dia indefinido, nublado, denso de seduções, luxuriante, imerso em perdoáveis pecados, preguiçoso, cobiçoso, cheio de alegria e prazeres abonados pelo sagrado direito ao sonho.

Daí que minha rotina embola toda. Logo eu, heim, taxado que sou de certinho, cronometrado, de movimentos funcionais cartesianos ordenados num eixo xis assim assim de programações.

Parentes, aderentes, família próxima, amigos íntimos, sem maldade chegam a me classificar na categoria dos enjoadinhos. Nada fora da pauta se instala ou altera, sem a mais ferrenha resistência, ou sem uma cara bicuda de descontentamento, os meus planos. Como justifico, sou um cara programável. Se tal coisa me interessa, um evento, um encontro, reunião séria da confraria que seja, ela demanda, no mínimo, uma semana necessária de arranjos e combinas. Daqui pra’li, do dia pra noite, é barra. Difícil pacas de conciliar, de me tirar das habitualidades.

Entretanto, já estive do outro lado do campo. Encarei o jogo sem tática, operando nos atropelos e nas ligeirezas que o tempo exige. Em épocas já remotas, mesmo diante das obrigações se anunciando às beiradas da segunda-feira, não fazia a mínima concessão, não dava limites ao domingo. Tinha a folga do jovem senhor transviado. Descia para os encontros literários na Praça da República, ainda com a cidade se espreguiçando. Com pouco mais, emendava nos batuques entre mangueiras, que se estendiam além do meio-dia e, varando a tarde, compartilhava o tinto imponderável Cantina, com a turminha do Rock ou remanescentes históricos do pedaço, isso quando não desviava rumo e ia dar nas domingueiras do Palácio dos Bares ou nos Pagodes da Anastácia. Não tinha hora de voltar pra casa. Comia pouco ou nada, bebia um tiquinho, uma poeirinha de água; se tinha samba, sambava; fosse carimbó, carimbolava, e a energia se ia apartando de mim, lá pelo adiantado da noite. Dormia tarde e esbagaçado. Na hora do trampo, na segunda, estava só a casqueta. Até tornar, o sofrimento era grande.

O custo foi sacar o tempo que o tempo nos dá. A idade trouxe um adendo de razão, família, as crianças, responsabilidades outras com o trabalho me impuseram freios. Fui me ajeitando. Dosando minhas batidinhas de fim de semana, valorizando a arte solitária de escrever a vida, no aconchego do lar. Não exatamente descartando as seduções mundanas, não, porque elas são nutrientes, compostos vitamínicos, causas e fins de toda a arte. Contudo, me aviei aos cuidados e me ajustei no prumo. Agora, minha lei permite que eu me entregue ao domingo sem eira e beira até duas, ou no muito, três da tarde. Depois disso já é segunda. É termo e tento de desopilar o fígado, arrumar a mochila, os apontamentos, objetos de uso no trabalho, lustrar a bota, desamassar o uniforme e me entregar ao sono reparador cedo, antes mesmo dos gols na TV.

No Brasil não há o feriado de Carnaval. Os dias de folga são deliberações das empresas, instituições públicas que resultam num encarreirado robusto de dias sem trabalho que emenda uma semana n’outra, daí os ariamentos da mente.

No aquietado dos costumes, formatei minha rotina. Esta que se destrambelha no feriadão do carnaval, quando a gente fica desanuviado de nem saber que dia é hoje. Contudo, na manha. Sem sobressaltos ou exageros. Entendendo que uma horinha dessas, a quinta-feira fará as vezes de segunda. O cenário exige prestar reparo e dar atenção ao tempo que o tempo de folia (ou de ócio) nos é possível. Tenho que perceber a hora de desplugar, desopilar o organismo, desamassar a roupa, trocar a percata pela bota. Começar a quinta-feira cedo e terminar cedo porque logo ali tem outro domingo.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

crônica da semana - Sucuri

 Amar e outros medos (parte XXIV)

Tá legal, eu aceito a pilhéria, a encarnação. E não dá nem pra tentar um desdobro, um desvio aos modos de um laço frouxo. Tá amarrado, gravado e nas mídias. Aqui só não tropeçamos em Sucuri, porque ela, por capricho, deu de escalar árvores na área central da cidade. Não dá nem pra dizer que não. A Sucuri rebolando faceira pelos espaços nobres da cidade anda nas cabeças, anda nas bocas.

Antes de emendar na história da cobra que foi resgatada de uma árvore na Padre Eutíquio, coisa de um mês atrás, me deixo revelar um medo. É que me impressiono com as solidões de escadarias. Às primeiras horas da manhã, na saída pro trabalho, tento catalisar meu acendimento para o dia, enfrentando uns lances de escada do meu prédio até dar na rua. São aquelas quebras entre os andares, o desconhecido após cada quina de parede que me impressionam. Meu medo é que numa das dobras, eu dê de encontro com uma Sucuri. Não uma dessas doces que sobem em árvores, mas sim daquelas de cinema, ligeiras que nem sei o tanto e com aquele sadismo expresso em caras, bocas e olhares sedutores. O roteiro é de filme de quinta. Venho bem descendo os degraus, pensando na morte da bezerra, quando nem que maldo, zapt, sou enlaçado. A bicha me encara com ar de pouquista, e cicia sem que faça questão que eu entenda: perdeusssss Ssssssodré, exibindo um palmo de língua bifurcada pra fora, quase pinicando a ponta do meu nariz. Tenho tempo apenas de perceber o escorregar do corpo da serpente em volta do meu, um som difuso de esqueleto quebrando e... apago a aventura do dia. Meu ônibus tá passando e me avio correr pra parada porque se perder esse, já era.

Este medo de um enlace rápido é produto dos conflitos íntimos, não ditos e escondidos no inconsciente guardador de angústias. Não faz parte do meu mundo real. Se bem que meu cantinho é nas margens no canal da Pirajá... que tem a nascente nas matas da aeronáutica... que recebe a enchida da maré... e que pode trazer visitantes para os largos da rua. Penso que convém mesmo dar uma espiadela, antes de dobrar a esquina dos andares. Vai que...

A encarnação é franca. Agora, aqueles engraçadinhos que se fartam de satisfação em polemizar nas redes sociais que aqui no norte a gente se comunica por sinais de fumaça, usa cipó como meio de transporte e topa a cada esquina com cobras e jacarés, têm um fato. Tido, havido, acontecido e diga-se, espetacularmente documentado. Ressalte-se que a pessoa que fez o vídeo teve equilíbrio e tranquilidade para registrar em detalhes, toda sequência de movimentos que a serpente fez da base até a parte mais alta da árvore. Cuidou de roteirizar o serpenteio e nos mostrar a plástica daquela coreografia encantadora.

Agora pode, o semgraçadinho, tirar uma onda, mas não é pra costume. O bombeiro, na caté, resgatou a Sucuri lá do alto. Mostrou que a gente respeita os animais, deixou que ela se assanhasse tomando-lhe boa parte do braço num assimétrico aperto, mas depois a ela, deu o destino que melhor lhe cabe (pode ser que até a tenha reintroduzido no habitat, aqui nas matas da aeronáutica, perto de casa... hum, hum, lá vai eu me impressionar com as escadas de novo).

Sei de muitas histórias envolvendo Sucuris. Traumáticas. Dramáticas. O instinto nos põe em lados opostos na luta pela sobrevivência. E aí, temos que destacar as atitudes da população na hora da aparição do animal em plena via pública. Não julgou. Não apedrejou, não jogou paus ou pragas. Não maldisse, nem corrompeu a lei da natureza.

Amamos Belém. Fantasiamos aventuras ao descer uma escada. Inventamos modas e medos. Assumimos bairrismos asseverados. Mas dessa vez não tem combate. Não dá nem pra dar o desdobro. A bichona anda nas cabeças, anda nas mídias, anda nas bocas. Faceira. Escalando a árvore pleno centro da cidade.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

crônica da semana - bexiga natatória

 A bexiga natatória e o listão

Dou o maior valor nas comemorações pela aprovação no vestibular. Ler o nome no listão é pra se alegrar mesmo e muito. Ainda mais se for aluno da barra, dos arrabaldes, dos longes, difíceis e, não raro, esquecidos estirões. Aqui na baixa da Pedreira, é só ouvir o foguetório, o alô papai, alô mamãe do Pinduca, que já me animo pra saber de que rumo vem a festa. Em nosso cantinho à beira do canal da Pirajá a marchinha do vestibular tocou que só. Teve uma onda boa da família, entrando na UFPA, por uma pá de tempo. Agora, me enxiro nas comemorações alheias, as gerações da família se espaçaram e vamos esperar a próxima leva com a netinha, os sobrinhos-netos. Por ora, vou me emocionando com a animação dos vizinhos e conhecidos dessa Pedreira velha. E me derreto logo. Choro, vibro junto com os calouros, me breo todo com maizena e ovos quebrados na cabeça. Faço reflexões do instante quando me deparo com um garoto da mais genuína perifa ostentando um cartaz com uns dizeres anunciando que ele passou em Direito. Em Direito! É jovem de imenso valor. Brasileirinho que tem dentro dele todas as forças e energias para remexer o que está imóvel e impenetrável. Um lutador rompendo barreiras, derrubando obstáculos, desdizendo crenças e vaticínios exclusivos. Passar em Direito... Emparelhar com tantos sobrenomes tradicionais. É de tirar o chapéu.

Este feito grandioso me faz lembrar que também tentei Direito. E não passei. Na conta que fiz, me faltaram 12 pontos pra alcançar a nota e também, liminarmente, careceu de mais zelo e atenção aos sobrenomes que abicoravam a vaga e que no meu deslize e no cômputo geral, acabaram abiscoitando a chance que tinham de passar. Pra não ficar assim, que não passei porque sou um desmerecendente, não conto conversa e pra desanuviar da dor, jogo a culpa na questão de Física que nos cobrava saber algo e mais um tanto sobre a bexiga natatória dos peixes. E reconheço. Lutei com as armas que eu tinha. A vasta e desregrada palavra.

Acho que foi a primeira versão do vestibular com respostas discursivas, largando pra trás, a loteria dos xises. Estava indo até bem. Uns escorregões em Matemática, outros em Química, mas nas questões das humanidades e línguas, estava arrebentando a boca do balão. Aí veio a prova de Física. Não sabia piriricas de nada. Poderia até gastar meu charme nas questões todas, que se contavam em cinco. Fiz uma continha rápida e estimei que se caprichasse e me dedicasse em apenas uma, faria bonito. Escolhi a da bexiga natatória. Havia um texto-base, a pergunta e abaixo, uma lauda quase toda para a resposta. Pra quê meu Deus! Mandei ver. Usei todas as linhas, escrevi o que devia e o que não devia. Assim como o texto anunciava, fui em cima, fui em baixo, especulei, afirmei, depois reconsiderei. Houve um momento que refiz a pergunta lá do comando. Duvidei dela, da natureza das coisas, de Arquimedes, da Eureka e da eficiência das experimentações em banheiras. Num determinado instante me coloquei na pele da pessoa que iria corrigir aquele devaneio. Aquela mais pura e destrambelhada enrolação. Não sabia absolutamente nada sobre a relação da bexiga do peixinho com a Física Clássica. E o resultado foi um belo zerinho na questão. Na conferência do gabarito, quando esperava uns cents dela, me veio o mais nítido vazio. Meu peixe-curso de Direito afundou de bexiga vazia.

Crianças, não façam isso. Estudem. Respondam todas as questões, façam exercícios. Por falar em exercício, depois do caso passado e me entretendo com os vídeos do celular, encontrei mina de questões resolvidas e comentários sobre o mesmíssimo problema posto da bexiga natatória dos peixes. Tivesse eu me entregado à curiosidade antes e também, à época, uma boa internet, estaria ali, pareando no Direito com os tradicionais sobrenomes hoje.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

crônica da semana - escola salesiana

 O pés de espinafre do Lora

Nem bem publiquei a crônica da semana passada, e me chega, de uma forma muito sentida, a notícia que nosso tencionado museu da Pedreira já vai hospedar outro símbolo do bairro.

Uma missa, o encontro de comunitários dos mais remotos recantos, ex-alunos e alunas, crias do semi-internato, agregados que nem eu e fiéis colaboradores, despedem-se de parte da Escola Salesiana do Trabalho, e, pelo que apreendi, a parte mais genuinamente salesiana. A capela, o grande refeitório, as oficinas, o pequeno canteiro em que o Padre Lourenço (nosso Lora querido) cultivava voluntariosos pés de espinafre. Não é exagero dizer que parte de mim, da minha personalidade se desaprega tijolo por tijolo, também, daquela edificação absolutamente representativa para todos nós moleques da Pedreira e alhures. Fundamental para nossas fomes saciadas de fé, de saber, de fazer e de pão (com Q-suco).

Foi numa tarde chuvisquenta de maio que tomei contato pela primeira vez com uma obra inspirada em Dom Bosco. E foi de um jeito cheio de sinais, de preciosos detalhes. Cheguei pelas mãos do, hoje jornalista, Edir Gaya. Ele, já uma liderança de realce entre os jovens. Eu, um desguiado sem rumo. Até aquele dia, não dava a mínima para qualquer interação com igreja. Umazinha de crença que fosse. Edir se engraçou de mim, entre os colegas da Escola Técnica, e me pescou para participar da pastoral de jovens. Nem primeira comunhão eu tinha no currículo. Saímos da ETFPA debaixo daquela chuvinha, cruzamos os estirões a pé. Já perto, baixando pelas pontes da Perebebuí, encontramos Neuza, dirigente dedicada, super envolvida nos planos da pastoral. Caminhamos juntos (o nome do grupo de jovens dos salesianos era ‘Caminhada’). Enquanto vencíamos as pontes até o asfalto, eu me ligava na conversa deles. Atualizavam agenda, discutiam planos, relacionavam equipes. Percebi como eram empenhados, como falavam uma linguagem de responsabilidades. Artes distantes demais do meu ócio e das minhas solidões saindo da adolescência.

Quando chegamos, fui ter com o diretor do grupo, à época, o padre Atílio Bellandi. Em breve entrevista, ele me informou que mesmo não sendo aluno da Escola, e sem professar nenhuma crença, eu havia sido indicado e agora ele me convidava a participar das atividades do Movimento Caminhada. Perguntei o que aquilo queria dizer, como era viver esta outra vida de compromissos com aquela parte da igreja. E ele respondeu me impondo o desafio. Deu o exemplo do açaí. Qual o gosto? Como se toma açaí? E adiantou. Só experimentando. Para definir minha vida como salesiano, tinha que experimentar.

Por mais de três anos, vivi com os salesianos, as melhores, as mais ricas experiências da vida que pude julgar e compreender. Assumi posições de liderança, penetrei nos interstícios da alta coordenação da Escola (tinha até a chave do teatro, de umas salas, era conhecido dos cachorros). Penso que contribuí para que a vida da nossa periferia fosse melhor. Partilhei a fé, busquei obras e a paz no espírito. Juntei perto de mim, pessoas maravilhosas que até hoje me são fontes de inspiração. Viajei, me distanciei na fé. Nem foi causa de ir tão longe.  Mantive continuado contato, pelo respeito e carinho que tenho com a EST.

Padre Lourenço tinha na sala dele, um mosaico, não com imagens dos louros do trabalho que ele realizava na área. No quadro estavam as fotos de garotos que ele havia perdido para o mundo. Muitos não para este mundo. Alguns presos; outros, desguiados, como se dizia. Aquele mosaico o inquietava. Inspirava o inspirado Lourenço todo dia ser mais forte e mais radical na batalha pela vida.

Vale chorar. A fachada da Escola Salesiana vai se somar às imagens no mosaico da memória pedreirense. Mas jamais nos desanimando. Sempre e cada vez mais fortemente nos estimulando a lutar por um mundo melhor.

sábado, 20 de janeiro de 2024

crônica da semana - museu da Pedreira

 O museu da Pedreira

Em praticamente todo estirão que se estira, a Marquês sempre foi uma rua larga. Tirando o pedacinho que vai da Alferes Costa à Dr. Freitas, quando sofre um estrangulamento e forma barrancos de pedras avermelhadas nas margens, todo o pedação até o interflúvio do canal da Três de maio com o canal da Visconde, tem avantajada envergadura. Puxei esta conversa junto ao meu grupinho de caminhada terapêutica, enquanto vencíamos os trinta quarteirões, contados ida e volta, de exercícios e marchas aeróbicas pelos canteiros da avenida, conhecida, tida e havida também como via parque.

Aquela prosa ofegante me serviu para dar um verniz nostálgico a este janeiro de comemorações pelo níver de Belém. Nostálgico e memorialista, digo, porque tentei trazer aqui para a Pedreira as essências, as marcas da identidade do bairro. Logo ali na Marquês, identifiquei uma entidade que resiste ao tempo: a sede do Alegria. Clube emblemático e que a gente associa sem duvidar, ao prazer das festas dançantes, às glórias do desporto e, na raiz, aos frutos da beneficência. Uma referência. Talvez a única associação em atividade, com este leque de fazeres. Na volta pra casa, virei e mexi, tentando achar traços de um par para o Alegria, pelo menos no esporte, o glorioso Asas do Brasil. Mas quite, nem poeirinha. E não se pode perder o Asas assim, para os ventos do esquecimento.

A Marquês que roteirizou a minha infância e juventude, hoje só guarda a sede do Alegria, a largura avantajada da rua, a Samaúma da Barão e os barrancos cimentados, alguns encaixando garagens, de um lado e do outro, do trecho mais estreito. Até a garagem do Batista Campos foi-se.

Estes esmigalhamentos do acervo histórico, nos faz refletir. Daí me vem à cabeça, a idéia de um museu. Uma organização que reproduza a, ainda que acanhada, iniciativa que a gente vê circulando pelo centro.

Trazer para os bairros uma política de posse e partilha, que nos permita o zelo com a memória nos daria prestar reparo, e ainda em tempo, efetivar ações de preservação de heróicas relíquias.

Eu tenho lá meus focos. Um, é a reconstituição afetiva, ou mesmo cartográfica de todo aquele complexo esportivo, forjado pela molecada, operante até o final da década de 70, e que era formado pela planície do Areal, acrescida ainda do campo (e a sede) do Asas do Brasil e campo do Trabalhista, nos arredores.

Outro traço marcante é a arquitetura. Me apraz o rico acervo que a Pedreira ostenta de um tipo de construção modernista presente nos desenhos em azulejos conhecidos como o estilo ‘Raio que o Parta’. Era vez de se mapear, fazer as visitas, os circulares, reconhecendo esta manifestação estética existente na periferia.

Em outra ponta (e acima), encontramos, aqui, ali, em trechos dispersos do bairro, a estrutura das platibandas somadas às paredes de casas ou comércios. Embora bem poucas, as platibandas inspiram outras entradas históricas. Como indicam uma estratificação social e se manifestam muito no centro da cidade, merecem atenção quando acontecem nos bairros. Indicam ser adaptações do poder, exibições presunçosas de uma classe do bairro mais aquela de posse que o vulgo, um xeno de uma camada diferenciada enclavado nos lugares mais populares e afastados.

E aquela Samaúma na esquina da Barão, heim! Uma maravilha centrada no largo da Marquês. Na origem, já justifica uma resenha de museu. Foi plantada logo que avenida saiu da piçarra para o asfalto e o buraco que abrigou a muda foi vencido à cuiadas. A tacacazeira que forneceu as cuias tem vaga na história. A turma que plantou merece uma placa, posto que, foi a patota da rua que ensejou a via parque.

Simpatizo com o prédio, há um tempo abandonado, do Colégio Maroja Neto, para abrigar o museu. Fica na porta de entrada do bairro e às margens bucólicas do Galo. Além do que, já é memória.

 

 

sábado, 13 de janeiro de 2024

crônica da semana - Abeirando

 Abeirando

O jeito é um chá, depois do caso passado. Porque os caminhos se escondem se as águas sobem. O céu não dá a direção. Nenhuma estrela me guia. O vento é moleque travesso, atravessa os rumos, me mundia e me joga ao chão das desolações. A chuva vem de frente, de lado, por cima, por baixo, di’cunforça, sem cerimônia. E nisso a água vai dando no ‘imbigo’; que foi? Caí no poço e voltei com a perna minada de chamichuga. As águas caem do céu sem barreiras, fartas, indisciplinadas, livres sem prestar conta a ninguém. Abro o guarda-chuva, mas tem uns 5 ferrinhos tortos ou quebrados e a um golpe de ar, minha proteção vira do avesso e levanta voo. Gotas deste tamanho me atacam. Não resisto, lambo os beiços daqueles pinguinhos que dão uma coceirinha no buço, aperto e depois arregalo os olhos. A Pedreira lá na frente. Notícias dão conta que a maré tá cheia. Hummm. Não é pra’gora.

Então um chá para acalmar se caminho não há. Faz arrodeio, vai por ali, ‘dizem-me alguns com olhos doces, estendendo-me os braços, e seguros de que seria bom se eu os ouvisse...”. O Acampamento não é opção. O Galo transbordou. A Marquês é interflúvio inseguro, de baixa altitude, sem garantia. Voltar na mesma pisada não volto.

Um chá para acalmar. Minha Pedreira querida, do samba e das superações. Do amor e das decisões. Não vou por ali. enrolo a calça. Isso não é chuva que me pare. Laços fora, guarda-chuva fora, medos fora, orgulhos e soberba, fora. Sigo abeirando. Liberdade, conquista. Intimidade com o meu lugar. Carinho, afeto, solidariedade. Põe a geladeira em cima dos tijolos, levanta o sofá. Liga a bomba. Rodo pra cima e pra baixo. Vizinha, me acode que eu te acudo. Menino com água na canela se diverte. Carrega isso, muda aquilo de lugar. É noite de muita agitação. Ninguém dorme. Maré cheia. Chuva forte. Planície de inundação, reação natural. Um plus para a lixarada flutuando aqui, ali, e que, parando na boca de lobo, contribui para a baixa vazão dos canais. Entra prefeito, sai prefeito, poder público sem nome, macro, micro, zero drenagem. Não tem combate. O jeito é se virar. Sobe piso, faz parede, reforça contenção. Não adianta, a água mina. Explode em cada canto da casa, da rua, das consciências, das nossas noites sem dormir, do lixo boiando, da voz miúda, do grito contido, da vergonha e humilhação, da petizada em êxtase, dos mergulhos noturnos no canal, minha Santa ajude! Debaixo do jambeiro, do pé de jucá, da quina da mesa. Mina água, exsuda desilusão. Me acode, vizinha, que te acudo.

Desconfio que o pampeiro este ano vem daquele jeito. Na brabeza, com beira e eira.

Aqueço uma água. Em casa, escaldo os pés, cato chamichuga dos escondidos do corpo, reflito minha aventura. Varei na baixa da Pedreira debaixo dum toró. Vi coisas que pouca gente vê. Parece fala do replicante Roy em Blad Runner. E ainda teve raio, corisco, relâmpago, notícias falsas, notícias verdadeiras, forças diversas atuando. Zumbido no ouvido, tristeza, revolta. Mas não foi minha hora cravada e certa de desistir.

Quando dei na Aldeia Cabana, estava perto de casa. Só mais um suspiro. A biqueira que derivava do telhado ondulado, estava afinando, a chuva amainava, lá ao longe, na imensidão do universo, uma pinta brilhosa denunciava um rasgo na cumulonimbus. Perdi minha chinela.

Essa chuva no início de janeiro, dá a letra e sinaliza confirmar umas teses de intensidade. Contei um período de julho a setembro, de secura total. Tem instrumento que não registrou uma gota de água em mais de quarenta dias, naquele período. Se o revés for proporcional, como prega a lei da ação e reação, pode se preparar que o inverno amazônico vai dar de dez e as águas vão subir além das nossas razões, das calçadas do centro histórico de Belém e também dos longes e marginais limites do Galo. Nos aviemos no  chá, pra acalmar. 

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

crônica remix - não vou sair

 Não vou sair, não vou deixar este lugar

Hoje, é bem mais fácil de entender. Abro o Google Earth e num instantinho reconstruo a viagem que fiz desde os férteis barrancos do rio Acre até a indefinida foz do Amazonas. Na imagem, revisito os retorcidos rios ocidentais; a inesgotável bacia hidrográfica; o sufocante estreito de Breves; a imensidão marajoara; a mansidão do Arrozal; os acintosos espigões; a simetria britânica e a perdoável arrogância das torres do mercado de ferro do Ver-o-Peso...  Belém.

A baía do Marajó nos deu as boas vindas com um furioso banzeiro que levava o Domingos Assmar a uma perigosíssima coreografia alternando-se em audaciosas inclinações a bombordo, a estibordo. E a gente enjoando, se desesperando. Mamãe cuidando. Acalmando. Até que, impotente diante da forças das águas, nos juntou os quatro pequenos no camarote e nos uniu em fervorosa oração.

Deus sabia que queríamos ser paraenses, e quando ouvimos a quebradeira do mato, quando sentimos o ronco dos motores suavizar-se num surpreendente desafogo, quando percebemos um deslizar cômodo e seguro sobre o tapete líquido do furo do Arrozal, paramos de chorar, e nos abraçamos felizes com a certeza de que chegaríamos naquela Belém que mamãe tanto falava. Naquele lugar mágico margeado por florestas, rios grandes, sonhos e desejos. Naquela terra prometida em que reconstruiríamos as nossas histórias e reinventaríamos a vida longe das ruas de seringa e dos enlatados imperialistas.

(A mais determinante seqüência, desde a partida naquele batelão de linha, lá no Xapuri, que trago na memória é esta: a saída daquele furor líquido da baía do Marajó, a reconfortante estaladeira de mato, a calmaria do Arrozal e... As torres do Ver-O-Peso).

Se alguém um dia me pedir para definir Belém, não vou ter dúvidas. Belém é a minha bonança. A minha paz.

Tudo conspira, né. Todas as circunstâncias contribuíram para que eu admitisse que Belém seria a minha redenção, o meu fim, o meu desprendimento, o meu suspiro de alívio (depois daquele frenesi, na baía do Marajó,  então, Belém foi uma graça alcançada).

Desembarcamos no galpão Mosqueiro-Soure dizendo “é aqui” nesta beira de rio.

E foi mesmo. Meus momentos mais marcantes da infância, da adolescência, da juventude e agora, já fazendo a rima com o ‘enta’, foram sempre à margem desta baía.

Um beijo, um porre, um pensamento mau, um dinheirinho suado, uma desilusão, um assombro, um arrependimento, uma despedida, um reencontro, uma poesia, um palavrão, uma maldição, meu bem, meu mal, minha indiferença, o pôr-do-sol, o luar, a cachaça de Abaeté, uma nota no violão, a chuva fina, o amanhecer, os olhos farinhados de sono, as pimentas coloridas e o verde das folhas orvalhadas pela madrugada, o mistério das ervas, o imprevisível humor das ondas que às vezes vão buscar a gente lá longe, a brisa amiga e refrescante no final da tarde, a minha saudade e o sal das minhas lágrimas que rolam agora sem embaraço nenhum...

Certa vez, depois de algumas adaptações, e um casamento perfeito, debandei. Passei dez anos vagando por aí. Trairei Belém. Me apaixonei por Porto velho, tive um caso quase que irreparável com Altamira, me iludi com os apelos calientes de  Manaus, destrambelhei completamente por Macapá. Mas um dia... Um dia voltei aos aconchegantes braços da minha cidade.

E daqui, não saio mais.

Na beira deste rio quero descansar. Um dia (não agora, ainda não) atendendo a um convite irrecusável da natureza, o que restar de mim, “é aqui” que gostaria que repousasse para sempre. Quero me misturar às águas deste rio e virar maresia, maré cheia, Acará, Guamá, Guajará...

 

domingo, 7 de janeiro de 2024

crônica da semana - Paula e Bebeto

 Paula e Bebeto

Um tibum bem mergulhado no ano novo nos dá oportunidade de prestar reparo no efeito baladeira, aquele exercício de reflexão que nos leva lá atrás, nos enche de aprendizado, lições fundamentais e depois nos joga pra frente, cheios de motivações. Por isso o título da crônica faz referência a uma canção do Milton Nascimento. Não exatamente com os mesmos nomes, do jeito que está aí em cima. Pelo meu enredo, o título seria Zé Carlos e Bebeto. Pus o título da canção do Milton, pra funcionar como um chama. É música conhecida. Pode-se entender como uma licença do cronista a uma pegadinha. No frigir dos ovos, tudo busca um sentido porque pelo certo e reto, pesquei um verso desta canção que nos alerta sobre o peso das palavras não ditas. E me agarrei a ele, eu que não sou besta nem nada, para iniciar o ano falando da minha mais absoluta admiração por esses companheiros.

Barcarena fez 80 anos, no dia 30 de dezembro próximo passado. Contada mais para trás, a história da região passa a ser centenária. Um dos vetores principais da Cabanagem, Barcarena se eleva como portadora das ânsias e das lutas populares. Aos historiadores cabem as medições e dimensões dos mais diversos setores sociais na construção da personalidade da cidade. A mim, me cabe superar as palavras não ditas e sustentar que a história de Barcarena, entre tantos ilustres, tem que ter umas páginas dedicadas a Zé Carlos e Bebeto.

Eu os localizo na primeira geração sindical do município ligada à atividade de transformação. São da época da implantação do pólo industrial. Assumiram o desafio de implementar uma versão operária à organização local, ramificada  das veredas, dos escaninhos e varadouros de rio que caracterizavam a região como extrativista e comercial. Esta nova estrutura da produção demandava outras visões e entendimento do que nos acostumamos chamar de relação capital/trabalho. E foi no meio das reflexões hidratadas por ações decisivas de organização e conquistas que conheci Zé Carlos e Bebeto. Me permito colocar os dois no mesmo bolinho de afeto, porque eram assim, meio que unha e carne. Talvez haja aí um lapso, um desvio não contado no tempo, e outros líderes tenham se destacado no chão da fábrica, contudo, ainda no alvorecer do processo industrial, foi com os dois que me dei e foi ao lado deles, inspirado neles que meu espírito se animou a grandes batalhas em favor dos trabalhadores e do desenvolvimento do município.

Agora na virada do ano me veio que demos uma virada na vida. Há muito nos desligamos da lida sindical, cada qual cuida das suas posses e das suas lembranças nos termos e jeitos que a vida nos dá. A essência, tenho plena consciência, de cada um, ali intacta, inabalável. Não nos encontramos mais, como as vontades ditam, entretanto, nossos caminhos se firmaram na margem boa da história. Bebeto, com o ímpeto, a iniciativa, aquela leitura lúcida, uma eletricidade prática, imediata de fazer o bem, é sempre uma boa companhia no front. Zé Carlos, um cavalheiro, doce. Intelectual. Naqueles tempos, era um dos poucos da peãozada a dominar o inglês. Acudi-me algumas vezes dele para traduções ou mesmo composições de textos para divulgação nas estranjas. Houvesse no Brasil hoje, umas boas dúzias de Bebetos, outras quantas pencas de Zé Carlos, certamente seríamos um país mais feliz, mais orientado e mais decisivo nas buscas por igualdade, paz e justiça.

São essas as palavras que não foram ditas. Às vezes ocultadas pela vaidade instantânea ou por aquela trava besta que nos impede de elogiar, dar valor a quem tem. Penso que meu coração se contenta, a alma se alivia e meu ser se inclina à humildade quando expresso amor, carinho, admiração por quem dedica a vida à construção de novos dias. Como canta Milton: “no meu canto, estarão sempre juntos”... A mim.