Tucandeira
O
mês de maio inicia com as comemorações e reflexões pelo Dia do Trabalho. Mesmo
com a correnteza do livre pensar entendendo que a comemoração deva ser pelo
Dia do Trabalhador, não há conflito na base ou no chão da fábrica de
referendo sobre o sentido de uma ou
outra opinião. Penso que ambas são válidas. Ainda no meu tempo de militância
sindical, reconhecia as duas referências, embora eu seja simpático, até
recorrendo a uma visão Evolucionista, à versão que define o primeiro de maio
como o Dia do Trabalho: reconheço a capacidade de realizar trabalho como uma
propriedade essencialmente humana, evolutiva (que vem desde o aumento de volume
do cérebro, passando pela mutação que gerou o polegar opositor, até a
elaboração química que nos permitiu abstração e as formulações cartesianas
dentro do cocuruto da gente), e que por toda a história tem o poder de
modificar as coisas, o mundo, a vida.
Na
origem, ora veja, trabalho é palavra ligada à dor.
Vem
do latim tripalium e representa um
instrumento de tortura. Com o passar dos anos, a palavra foi associada a este
dom que temos de modificar as coisas, e mais: formou um conceito de troca de
valores. O trabalho é tido também como mercadoria, como peça de uma engrenagem
produtiva lubrificada pela alma das gentes.
Se
o dia do trabalho ou do trabalhador é motivo de festa ou de dor, vai da gente.
Depende das nossas análises pessoais, conjunturais e até à luz do dito humor do
mercado. Eu, desde que era sindicalista, encapetado que era, e hoje,
apascentado e ainda na lida da fábrica, faço do meu dia a dia, um oportuno
laboratório que me dê perceber qual o real sentimento que habita o coração do
operário ante o mundo do trabalho.
E
sempre recorro ao marco cravado para a celebração da data e que se pauta na
luta e na repressão de operários de Chicago, em manifestações pela redução da
jornada, que chegava a 16 horas por dia, no final do século 19. Conto essa
história, destaco que a reivindicação dos trabalhadores não foi atendida e
ainda, que a manifestação resultou, segundo a versão mais conhecida, em
enforcamento de sindicalistas. Aí, a reação que mais percebo nos meus
companheiros de trabalho é um assustador distanciamento, um alheamento do
desfecho, em alguns casos, com teor condenatório e pessimista. “Tá vendo, lutaram tanto e perderam”, ouço, desnorteado,
de parceiros que dividem a lida comigo, todos os dias e que hoje cumprem
jornadas de, no máximo, 8 horas, conquistadas a partir da dedicação dos
enforcados. Ouço que se referem aos condenados, na terceira pessoa: como
‘eles’. Eles perderam e não ‘nós perdemos’. Não se incluem no processo de lutas
históricas.
Penso
ser este desnorteamento, a minha dor. Meu tripalium
rotineiro... doído.
A
rotina do trabalho, porém, me legou outra dor, uma dor física insuportável,
causada por uma ferrada de Tucandeira. Foi em Rondônia.
Eram
meus primeiros anos vendendo a minha mercadoria-trabalho. Nem reconhecia o
certo dos direitos, deveres, instintos ou impressões que permeavam meu mundo de
trabalhador. Desenvolvia as atividades dentro das minhas oito horas, com
intervalo para o almoço. Tínhamos um restaurante exclusivo para nos atender,
coordenado por uma chefe exigente, disciplinadora. Todos, antes de entrar no
restaurante deveriam fazer a higiene lá fora, se lavar, tirar a poeira e não
entrar de botas no salão. Deu então que me cuidei, me ajeitei, deixei a bota na
sapateira, e antes que eu chegasse à porta do prédio uma Tucandeira me pegou no
caminho. Vi estrela, Fui na lua e voltei direto para os horrores da tortura que
aquele veneno viajando desinibido fazia desde a ponta do dedão do pé até meu
mais límpido espírito.
Alguém
que ainda estava de bota viu a formigona desatracando de mim, esmigalhou a bicha
na bicuda, mas a bronca já era feia. 24 horas e eras de dor imensa me
esperavam. Resisti. Resisto ainda às ferroadas.