Folhas
Hoje, remexendo as minhas coisas, achei uma agenda antiga. Do século passado. Do tempo em que as minhas agendas ainda eram temáticas e engajadas (mas, assim como hoje, serviam mais como porta-bagulho do que como depositárias de registros imprescindíveis ou programas inadiáveis). Sabendo que aquela encadernação de capa dura desviava da função a que era destinada, dei a folhear as páginas garimpando surpresas. Foi tiro e queda. Organizadas nos vincos das páginas centrais, encontrei uma sequência de folhas bem estioladas. Desclorofiladas. Todas muito mofinas, desmilinguidas, já apresentando bainhas pulverizadas e limbos transparentes. Eram folhas de seringueira.
Ao contrário de entender o estado daquelas folhas como indicador da decadência e do desânimo, como era de se prever, preferi compreender aquelas partes carcomidas da Hevea brasiliensis  como sinais de amores outrora vividos e de jeito e maneira, extintos. Admiti aqueles testemunhos de vida, como energias preservadas. Ricas heranças acreanas. Carinho latente. Desejo e saudade. Lembranças debilmente sólidas, mas solidamente fiéis de meu papai.
E sabe, pensando neste sentido mesmo, projetando a instituição de um símbolo, deduzo hoje, foi que coletei as folhas, numa viagem que fiz ao Acre, em 1992 em busca das histórias daquele seringueiro desconhecido e amado.
Não havia mais pai. Mas quem disse que nossos ídolos morrem?
Encontrei-o num jazigo modesto ao pegado do túmulo do Chico Mendes. Ao largo, um declive com plantas rasteiras e num nível mais abaixo ainda, umas poucas mais grandinhas, mais verdes e viçosas. Alguém me chamou a atenção para uma pequena árvore se destacando entre as ramagens. Era uma seringueira adolescente, fazendo sombra aos heróis da floresta.
Procurei algum lugar pra sentar, desfolhei um raminho da seringueira mirim e joguei sobre a laje um punhado de folhas sadias. Era como se estivéssemos nos apresentando um ao outro (depois de tanto tempo apartados pela incompreensão, pelo desconsolo e pelo silêncio distante), eu e meu pai. Era como se as folhas de seringueira nos unissem pelo verde e pela força.
Dali pra frente, desandei a falar. Tudo. Desde aquele dia em que deixamos o Xapuri, embarcados num batelão de linha.
Contei do tropeço que levou a minha irmã para as profundezas escuras do rio Acre e do milagre que a trouxe de volta assustada, chorosa, mas viva para o colo da mamãe; Do espetáculo impressionante que as luzes de potentes porongas proporcionavam, multiplicando-se pelos barrancos da cidade grande de Rio Branco; Dos três anos de viagem a bordo do Domingos Assmar, baixando o Amazonas; Do banzeiro que nos apavorou e nos pôs a chorar baixinho agarrados à barra da saia da doce Luzia, quando despontamos à jusante de Breves, já a poucas horas de Belém; Descrevi o alívio que a paz do furo do Arrozal nos trouxe, a emoção de ver o Mercado de Ferro de longe, as incertezas do desembarque nas Docas do Pará, a primeira viagem num carro de passeio modelo Aero Willys e elogiei aquele pedacinho de céu que nos abrigou em Belém conhecido como bairro da Pedreira.
Completei a minha catarse revelando como havia conseguido regressar ao Acre depois de tantos anos (luta, papai. Muita luta). Confessei minha saudade e minha tristeza por ele ter partido tão cedo.
Mas quem disse que pais morrem?
Recolhi as folhas espalhadas sobre o peito silente de meu pai, as acondicionei entre as páginas centrais da agenda temática e deixei o Acre orgulhoso de meu adorável seringueiro. Sabia que, num dia como hoje, nos reencontraríamos de novo.