sábado, 28 de março de 2015

crônica da semana - águas de março

As águas (e as viroses de março)
Pra onde a gente se vira é gente se batendo com a tal da virose. Dizque são vários germezinhos de cepas diferentes, por isso a dificuldade de um ataque certeiro ao pestezinho, com uma vacina ou com uma ‘piula’. Aí, a gente é que pena. Ainda vou criar vergonha na cara, estudar as coisas na real e descobrir qual a relação das gripes gerais com o período chuvoso. Mamãe dizia que é porque a gente fica exposto ao serenado das noites, aos respingos das marquises, à roupa ‘enxombrada’ e secada no corpo. Dizia que a gente ficando muito tempo ‘mulhado’, dá o enfraquecimento e a gente baqueia. Já alguns especialistas dizem que, como as chuvas estimulam o confinamento, a gente acaba dividindo nossos milhões de vírus, a cada espirro, com mais gente. O contágio é turbinado no período chuvoso (uma boa explicação: e quem já pegou um ônibus naquela hora que todo mundo fecha a janela quando a chuva arria de com força, imagina o estrago que um espirro deve fazer naquele ambiente abafado).
Março tá mantendo a escrita. Tá chovendo e não é do trisca não. As agências de meteorologia projetam a média acima de 500 milímetros para o mês. Para nosotros, pobres mortais, não é fácil traduzir na risca, esta medida para a rotina, mas dá pra ter uma ideia. Pela quantidade de alagamentos que Belém sofreu na chuva que desabou na última lua nova, a gente percebe o transtorno que 500mm contados no mês causam à nossa cidade, à nossa paciência e aos nossos narizes corizados.
A chuva, deixo claro, é sempre coisa boa. Inspira, irriga, esfria. Contratempos, feridas ambientais, gripes são consequências das nossas insensatas relações com as águas.
Em março, comemoramos o dia mundial da água. É uma chance que temos de reconhecer nossa amizade e de proporcionar a reativação plena de cada gota. É tempo de pensar em reuso, em proteção, em economia e utilização racional dos nossos recursos hídricos. É tempo de entender e agradecer à natureza por este bem absolutamente imprescindível à criação e à manutenção da vida.
Neste mês, no dito dia 22 da água, comemoramos também o aniversário do sarau do quintal. Há dois anos, a petizada da família teve a ideia de fazer um vitrolaço aqui em casa, valendo-se da curiosidade pelo funcionamento do meu três-em-um e da pilha de vinis que eu havia trazido de Barcarena. Nos reunimos no sábado, pusemos a vitrola pra tocar, foi chegando gente, cada um com um instrumento, cada qual com sua poesia. Varamos a madrugada tocando, recitando poemas, praticando a amizade, a comunhão dos talentos. Tomamos gosto, repetimos o encontro a cada mês e lá se vão dois anos de sarau. Contando sempre com muitas e bem vindas surpresas, com convidados ilustres e com uma galerinha jovem que abrilhanta a noite.

Por fim, arrematando o traçado de datas a prestar reparo, alego a importância do dia 27 de março. Num dia como esse que ontem nos proveu, há nove anos, publicava pela primeira vez aqui na coluna. São contados, portanto, nove marços ininterruptos, lembrando causos, registrando fatos, proseando nos dizeres das ruas, da mamãe, da vizinha e da madrinha; buscando aproximar a minha traquinagem literária da incerteza que a gente tem da vida; e da convicção que a vida tem da gente. Vencendo as gripes, entendendo, e ao mesmo tempo, levando fé nas águas pródigas de março.

sábado, 21 de março de 2015

crônica da semana - rondasa

Os artistas da Rondasa
Os ventos sopraram de Belém para o extremo oeste do Brasil por aqueles dias e semeou na planície do Madeira, uma legião de mentes-sementes iluminadas. Eram os artistas da Rondasa.
Uns cantavam, outros faziam artesanato, muitos eram craques no palco. Jorge, Ciça,Valéria, Pipico...Todos viajantes, conquistadores, paraenses, amantes das artes.
Em Porto Velho, eu procurava me enturmar. Mesmo na mineração, na lida bruta das matas, não perdia a ternura, uma horinha que tivesse de folga, religava meus fios e energizava meus pendores a outros ofícios, corria atrás das minhas artes. Me dei com uma galerinha finíssima da música. Binho, Bado, os imigrados do Maranhão, Zezinho, Dicap, Neidinha. Deu certinho que o Estado disparou as inscrições para o Femuro (Festival de música de Rondônia), eu frequentava a casa dos meninos maranhenses. Aprendi coisas com eles. Percebi que jovens audaciosos, destemidos, revolucionários, também podem ser reverentes, comedidos, ter na família o lastro, a segurança. Eu ficava demais admirado da relação dos meninos com o pai deles. Não imaginava que aqueles carinhas rebeldes, que de guitarra em punho, num show em praça pública, piravam nas harmonias vanguardistas; em casa, formassem a típica família de interior, daquelas que os filhos tomam bença, beijam a mãos dos pais. Era fã deste comportamento dos meninos e do verso ‘denominadeiro’ de Zezinho: “de quebra o amor é pouco e eu fico louco por você rainha”. Com a licença da música, me acheguei ao lar deles. Aprenderam a melodia composta em Belém pelo mago Arlindo Francisco, do Hera da Terra. Neidinha decorou a letra (minha) e durante as minhas visitas, a gente cantava “Desexistir”, um poema montado sobre um neologismo fabricado por mim, aos 19 anos, fiel em desfazer em versos os males que enfrentamos em dores. E alimentamos a esperança de ir para a final do festival com ela.
A Rondasa era uma loja, de automóveis se bem me lembro. Era a referência para se chegar à casa dos artistas paraenses. Estavam sempre juntos, eram compromissados, cultivavam a amizade, quase uma irmandade. Cheguei até eles pelos maranhenses e também pelo Éder, pela Berna, meus irmãozinhos que circulavam pelas artérias culturais da cidade.

Eu tinha uma curiosidade em saber a origem daquela confraria. O que fez aquele grupo de talentosos artistas se abalarem para tão longe? Também não perguntei. Não era o caso e nem era condição imperativa para nossas prosas. Era só pra eu saber mesmo. O certo é que no alvorecer dos anos 80, Rondônia era uma espécie de El dourado. Havia saído da condição tutelada de território para a autonomia pujante de Estado no início da década e apresentava condições e tentações para realizações de sonhos, inclusive, artísticos. A realidade é que meio mundo estava indo pra lá experimentar. Os artistas da Rondasa, imagino, navegavam nestas águas. E era bom demais encontrar com eles. Na casa que moravam acontecia de um tudo. Performances, exposições (meu amigo Fernando Perdigão deu uma canja em óleo sobre tela por lá), muita música. Poesia, instalaçõs. Anos mais tarde, os encontrei, de forma salteada, a todos os artistas da Rondasa, em Belém, cuidando da vida. Estavam de volta. Haviam cumprido o ciclo. Experimentado. Os maranhenses ficaram por lá e minha música não ganhou o festival.

sábado, 14 de março de 2015

crônica da semana - café com pão

Café com pão
Era o meu primeiro final de semana em Porto Velho. Estava ainda tareando o ambiente, reconhecendo alguns sinais, respirando os ares do ocidente adentro. Fizemos uma combina e nos largamos a conhecer a emblemática Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Eu até já tinha um ‘a ver’ com a ferrovia, não assim na concordância do significante, mas na distorção dos significados: é que na época, havia em Belém, um grupo musical que se chamava “Madeira-Mamoré”. Lembro que vi um show deles, certa vez, no gramado do colégio Gentil. Todo metidão, ali na beirada do Madeira, já me achava íntimo daqueles estirões donde, reza a lenda, cada dormente representa uma vida.
Antes do passeio, uma parada obrigatória no museu do Rondon, o marechal que deu o nome ao Estado. Olhares atentos nas coisinhas dele. Na escrivaninha, nos botões doirados do uniforme, nos teodolitos mais antigos ainda do que o antigo “Vasconcelos”, naquela maquininha telegráfica tec tec tec. Ao lado do museu havia um espaço amplo que servia de área de atracação dos vagões e também de embarque. À época, a locomotiva, a afamada Mad Maria, fazia um trajeto curto, servindo apenas ao turismo. Chegava apenas até a cachoeira de Santo Antônio, lugar onde Porto Velho nasceu, a uns oito quilômetros do centro. A lenha queimou na caldeira, o maquinista puxou a cordinha, a fumaça saltou da chaminé junto com o apito. Piuiiiiií! E trilhamos o caminho bem ao pegado do rio. Café com pão/ Café com pão/Café com pão. Lá vamos nós.
Não sou do tempo da Bragantina, né, então para mim aquela viagem de Maria Fumaça era uma experiência única. Tava num pé e noutro de sassariqueiro. Vagava de vagão em vagão. Estacionava na varandinha do último. Imaginava uma cena de caubói, o bandido se enxerindo detrás de uma rocha, no corte estreitinho da estrada. Pêi, pêi. Corta! Meu pessoal mandando eu me aquietar e apreciar a viagem da janela, como todo mundo, assim, naquele balangado lateral legal. Pra lá e pra cá. Pra e lá e pra cá. Café com pão/Café com pão.
Mais adestrado, sosseguei o facho e me juntei à turma. Alguém sacou um pandeiro, outro puxou um tamborzinho e fomos colocando pra fora o acervo que tínhamos trazido para uma tarde na cachoeira. Rolou o samba. O ano era 1983 e o Arco-Íris tinha arrebentado no carnaval paraense. Ronaldo Carneirinho que era do Rancho; Ciroca, um apaixonado pelo Quenzão e eu, Pedreirense do Império, nem ligamos para o bairrismo e sapecamos o refrão: “Pinta sete, sete cores do meu coração...”.
Com pouco mais, com o samba aquecido e as emoções ativadas, começou a chegar gente no nosso vagão. E todo mundo cantando o samba... “Vem comigo, meu amor”. Mina de paraense tinha naquele trem. Acabamos ecoando ali, naquelas reentrâncias abertas na rocha ou na amplitude da planície do Madeira, um ritual de saudade. Parecia que a gente estava no último arrastão da Presidente Vargas num daqueles domingos em que as escolas passavam e se diluíam em confrarias e batuques, na praça da República. Era março. Logo ali atrás, acontecia um dos maiores carnavais de todos os tempos, em Belém. Na Maria Fumaça muitos de nós procurávamos aprumar nos trilhos do futuro como novos rondonienses.

O inconsciente coletivo da comunidade paraense nos uniu naquele vagão. Naquele domingo, nos largamos a conhecer a famosa Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Parece até que acordamos tudinho antes. Café com pão/Café com pão/Café com pão. Aquele balangado lateral legal. O samba do Arco-Íris. Saudade. Emoção. Gente cantando e chorando, pra todo lado. Piuiiiií.

sábado, 7 de março de 2015

crônica da semana- mãe Rute

Dia da mãe Rute
A luz pouca vinda das fretas ou teimando lá de fora do poste da rua catalisava a letargia. Um cansaço incontrolável sobre o sofá da sala. Um visgo sedoso, desleixado, brilhando no pescoço. Calor. Desaparecido de mim, quantas vezes me perdia ressonando desafinado naquele sofá, chegado não sei donde, chirrado, sem responsa, desabado. Como um filho, sem zelo, me estirava relaxado amarrotando o cortinado que cobria o sofá da sala. E ela, quantas vezes, como um filho, me tratava, me atendia, me amparava.
Em silêncio, tateando na penumbra, com o maior cuidado para não fazer barulho, provia um lençol, tirava os sapatos, voltava meus braços caídos para o leito do sofá. Destacava duas tariscas da veneziana para cima e fazia uma brisa boa entrar confortante pela sala. Nessa hora eu sentia um geladinho no pescoço, imaginava um anjo por perto, mas não despertava. Virava de lado e tornava o ressono. O braço saltava vulnerável para as carapanãs. Ela percebia a minha instabilidade, a minha inquietação. Devia pensar “esse zinho bebeu demais”. E ficava por ali, velando. Era só a carapanã sentar e ela contra-atacava. Com velocidade e sutileza, esmigalhava o inimigo sem bulir um tiquinho comigo. No outro dia me contava tudo, todo o caso passado: “se eu não estivesse ali, os bichos te engoliam”, dizia com um ritmo maternal. E não saía dali de perto mesmo, até que a noite esfriasse, eu puxasse o lençol e me protegesse das carapanãs. Tomava um café, ajeitava uma coisinha aqui, outra ali, esmigalhava outra carapanã. Só se aquietava quando percebia a calmaria do sono profundo em mim.
Durante o período que vivi em Rondônia, fui enlaçado pelo carinho irrestrito, fui abrigado pelo colo aconchegante, fui protegido pelo amor imenso de mãe Rute. A rainha do lar dos Borges Guimarães. Mulher sem limites para o bem, sem reservas para as doces humanidades. Fui adotado, me acheguei à mesa da família, sempre sob a égide de mãe Rute. Sabia ela, o quanto eu precisava, ali naquele longe.
Nas malárias, me acudia. E foram três das mais radicais. Internado na solidão de um quarto branco e silencioso, eu sabia que ela uma horinha apareceria. E podia ser uma tarde mormacenta de domingo com as ruas desertas e caladas. Quando eu dava fé, lá s’stava ela ao lado da cama, vendo se o soro tava na veia, verificando um roxinho no meu braço, sentindo uma febrinha na minha testa, acionando a enfermeira para controlar aquelas pontadas no baço. Passava um tempão comigo. Conversava. Falava das novidades da Alexandre Guimarães com a rua Sete, a esquina mais acolhedora da cidade; dava a letra sobre a última peripécia do Saulo, confirmava aquela curiosidade pródiga da Chiara, “ah, e quem cozinhou hoje foi a Cláudia. Berna elogiou que só”. E eu só imaginando as delícias da mesa naquele domingo... “Carneirinho tá pra mina, Éder almoçou com a gente depois foi tocar lá pras bandas da Rondasa. Joferinho tá subindo o rio e chega pra semana. Bena sempre aparece.”
Não descartava um doce para ajudar no tratamento. Levava goiabada cascão. Tinha que recuperar o fígado.
Havia aquele momento que a gente lembrava de Belém, do início de tudo, do casamento, do mercado da juta, do nascimento dos meninos. Do emprego de telefonista.
E me fazia companhia e me fazia recordar e me ajudava a sarar da terçã. E ficava ali, do meu lado, como se minha mãe fosse.

Para Rute que, de fato, minha segunda mãe é, as felicitações e minha mais sincera homenagem pelo dia Internacional da Mulher.