sábado, 30 de dezembro de 2023

crônica da semana - prece

 Prece

Há muitos anos, fiz um curso com o Flávio. Àquela época o conhecíamos como Flávio, o italiano bonachão, carismático, bem humorado, que desejava ser padre e vinha de vez em quando para Belém atuar nas obras salesianas. Ordenou-se, exerceu o sacerdócio e foi além. Que eu conte, foi Bispo de Abaetetuba, Santarém e, agora por esses tempos comuns, é o representante de Cristo no Acre. Inspira uma reflexão muito atual porque toda vez que lembro dele, me vem o curso que ministrou sobre as ‘virtudes teologais’, que as traduzo como sendo as expressões do verdadeiro apostolado cristão.

Muita coisa mudou desde aqueles anos 80, quando eu me envolvia na fé e na vivência, em causas salesianas. De lá, a cá, posso dizer que minha certeza dilui-se em sucessivas frustrações e críticas profundas.  Dúvidas submersas passaram a regar a minha vida. No entanto, o que fica de bom, a gente não descarta.

As virtudes se expressam em “fé, esperança e caridade”. São conceitos muito complexos (vemos hoje como essas expressões são desvirtuadas, aviltadas, imoladas). Naqueles dias, a generosidade de Flávio subiu a régua e nos ofereceu a interação com a sabedoria abrigada na Igreja. As virtudes não eram temas do vulgo, e nas suas complexidades, eram tratadas como propriedades do alto clero. Ao menos a mim, que nunca ouvira falar delas, assim me pareciam.

Torno aos nossos tempos. Desses valores tão necessários, urge nutrirmos a esperança.  Meu Deus, me perdoe a minha descrença e, por ora, a minha leviandade, o meu pragmatismo mundano, mas humildemente te peço que me dê uma luz. Mostra para mim, meu pai, um caminho para ter esperança. E vou ser mais claro nesta minha reza. Pode rotular, não tem problema, de interesseira, dirigida, encomendada na inspiração de um descrente: Poupa, Senhor, os nossos jovens. As nossas crianças.

A eles, é dado o futuro. Não precisa ser só de acertos. Deixa que se realizem nas tentativas. Engalanem-se nos sucessos, reflitam nos fracassos. Deixa que tentem. Que vivam para experimentar as leis da natureza, para forjar milagres humanos, para remendarem e prolongarem o tempo. Venho, meu bom Pai, diante de vós, na minha loucura, na minha insensatez, na minha hipocrisia agnóstica, desavergonhadamente, sem pudor nenhum. Quedo-me desvestido das vestes engalanadas de cultos, como o Santo Chiquinho, a renunciar à minha soberbia, aos meus pendores sociais, e em trégua com minha desconfiança e distância dos designos celestes, te peço. Cuida dos nossos jovens, das nossas próximas gerações. Não podemos mais pensar num futuro descontaminado da dor, quando vemos enfileirados, caixões de crianças em Gaza. Bebês refugiados nos ermos, balas perdidas nas favelas, destruindo sonhos. Garotos e garotas perdidos no auge da vida, do despertar das mais desafiadoras experiências. Às crianças e aos jovens, está destinado o futuro do nosso planeta azul. Não os deixe sucumbir à negação ou ao aprisionamento do pensamento raso.  E que tua vontade, Senhor de tudo e das coisas, nos dê acreditar na esperança e não no pranto sem medidas ou na dor infinita e inapelável, como esta que de maneira tão cruel, nos abate, assim em um repente do dezembro. Esperança não importa qual. Se aquela advogada pelos cânones eclesiásticos ou esta nossa, de esquina, de vida vivida, de conquista do pão de cada dia, de carinhos às pessoas tão amadas.

Esta semana, minha razão foi abalada. A serenidade deste sexagenário foi questionada, a extensão da vida; dolorosamente o ciclo lógico da espécie sofreu um duro golpe. Acudi-me aos ensinamentos de Dom Flávio, que continham uma justa substância real, concreta, ponderável.  De religiosidade e racionalidade. E neles, busco o amparo.

Que o ano novo nos redima. E que a gente busque, na vera, na real, e de coração, viver na esperança... na fé e na caridade.

 

 

 

sábado, 23 de dezembro de 2023

crônica da semana - idas e voltas

 Idas e voltas

Plataformas de estação, salões de aeroportos, trapiches de beiras tantas de rio são, realmente, locais de desprendimento, de a gente não dar a mínima para o entorno e, na hora da despedida, se desmanchar em lágrimas. Chama atenção este quadro que a Astrid Fontenelle apresenta nessas últimas semanas no Fantástico. É daquele jeitinho mesmo que acontece. A hora da partida abala e não admite recatos.

Vivi e testemunhei muitas cenas parecidas com as que Astrid mostra no quadro do programa. Em Porto Velho, no início da década de oitenta, do século passado, todo mês, experimentava umas horas na rodoviária à espera do ônibus que me levava para a mina em que eu trabalhava. Ali, na plataforma daquela estação me emocionei quantas vezes, meus Deus, ao ver famílias inteiras desembarcarem, vindas de não sei donde, de olhos inchados, registrando a saudade das coisas e gentes deixadas para trás. Quantas histórias se reconstruíram ali, na descida do ônibus? Quantas memórias se dissipariam em doses diárias naquele sofrimentozinho implacável de abandono e solidão até que a alma se aquietasse na distância? Naquela época, a região tinha o maior fluxo migratório do Brasil. Todos os caminhos levavam a Rondônia. O meu foi dar lá,

Eu vivi os extremos. Em Rondônia foram quatro anos. No primeiro embarque para Porto Velho, parecia que o mundo estava se acabando para mim. Ainda no aeroporto, me reconheci como um garoto amamãezado que jamais havia saído debaixo da saia de Luzia. Naquele instante, quando dei às costas e entrei na sala de embarque, me apartando dos amigos, mamãezinha, Belém, a vida pobre e conquistada a cada dia, me danei a chorar. Passei a viagem toda fungando. Nem na hora dos lanches fartos da Vasp, que eram servidos a cada escala, e que foram muitas por esta Amazônia à dentro, eu dava um tempo. Comia as comidinhas de avião aos soluços, tremelicares de beiços, incertezas e apreensões. Depois, a cada final de férias, no retorno para Porto Velho, o chororô se repetia. Após o terceiro ano e já na reta final de minha jornada rondoniense é que me entreguei aos consolos e fiz um embarque mais sereno, sem sobressaltos sentimentais ou potencialização de dores e fungados. Razões havia para o apascentamento da alma. Tinha me apegado aos dias de Porto Velho, colhia amizades e paixões por aquele ocidente desbravado e grassava doçura nos nossos encontros. Estava domada a solidão.

Mais um ano e, por questões profissionais, partiria. Minha despedida de Rondônia foi atropelada. Greve de aeroviários, vôos cancelados, flutuei em despedidas e incertezas por uns 15 dias. Já estava com o numerário rareando quando as viagens voltaram ao normal. Não houve tempo para os sentimentos. No dia do embarque, só não estive sozinho no aeroporto porque apareceu uma amiga que morava na mina, filha de um companheiro de trabalho. Foi a única a se despedir de mim à entrada da sala de embarque.Tinha nome de ninfa. Nereida. Era gentil, generosa e tinha esta propriedade mítica de ajudar andarilhos perdidos que nem eu. E ao mesmo tempo, encartar corações. Deixei Porto Velho, após quatro anos, aos prantos. Troncho de saudade daquela gente maravihosa, das cachoeiras do Madeira, da Mad Maria, do friozinho de maio.

Agora por esta época, muita gente viaja. É tempo de reaproximações com familiares, terra natal, amigos. Por outro lado é também de separações. É a dimensão ritmada, ondulatória do ir e voltar. A sensação de quem fica, a reflexão de quem parte.

É assim revisitando este ambiente da memória, que desejo a todos meus onze leitores, minhas onze companhias semanais, um Natal pleno de bons encontros, e se forem necessárias, despedidas doces; amor e amizade nas bagagens. Por outra, se as lágrimas rolarem, que sejam de alegria e tragam um salzinho o justo para temperar o sorriso.

 

sábado, 16 de dezembro de 2023

crônica da semana - um mundo de sal

 O mundo será melhor

“Quando o menor que padece acreditar no menor”...

O fato deu-se, há anos, quando inventei a marmota de ir com minha namorada, a um restaurante famoso que havia em Belém, especializado em massas. Aconteceu o que a gente, pelo comum social, infelizmente, reconhece que não é raro acontecer. E não tem quem me tire da cabeça que foi dolo com a motivação espelhada no raso entendimento da desigualdade. Como se, no mais condimentado estilo de malinagem, nos servissem o aviso de que aquele não era o nosso lugar. Pedimos uma lasanha.

 (“Eu acredito que o mundo será melhor/Quando o menor que padece, acreditar no menor”, diziam os versos da canção que animava nossos encontros de jovens cristãos em retiros, reuniões e até nas missas realizadas na capela da Escola Salesiana. Era meu canto preferido. Tinha um quê comunista, comunitário, sinalizava com a confiança e a solidariedade entre os iguais. Davam uma potencializada na minha fé, os primeiros acordes dessa canção).

Quando dei a primeira prova, chega ardeu. O prato foi temperado, sem pena, com, imagino, a metade do sal existente em todo mundo conhecido. Tava bom era pra boi comer, que diga, tava não. Era de tal forma carregado, que o preparado servido para o gado, em cochos pelas grandes fazendas, certamente conta com compostos mais insossos.

A gente que não tinha o costume (jantar nessa pizzaria era uma extravagância, coisa de menino besta quando recebe o décimo. Lasanha então, era um di cumê que eu só tinha ouvido falar). Percebemos que estava minada de sal, mas sei lá, continuamos comendo, vai ver que é assim mesmo nesses restaurantes chiques, ou lá na Itália, que fosse. Mais tarde, em outras experiências, e também farejando a maldade praticada naquela noite, descobriria que não. Dou minha cara a bufete se não fomos mesmo é vexados pela turma do baixo clero do restaurante. Gente igual a gente, que não nos admitia ali. Aqueles risinhos sádicos, os olhares maliciosos, cochichos suspeitos, ao largo, davam a letra da vilania. Ainda mais que nos denunciamos como vindos da baixada.

Era época da macrodrenagem. Os sapatos nos delatavam. Traziam um contorno bem marcado por um cordão de laminha seca, resultante dos breados que tínhamos que atravessar pelos regos de rua aterrados, até chegar no asfalto. Àquela ocasião, era tudo na piçarra. Dava uma chuva e ficava aquele liso melado por uns bons estirões. Imagino que os colaboradores do restaurante, acostumados com outras peles, roupas e jeitos, quando viram aquele neguinho entrar com uma pequena até jeitosa e, todo garboso, ocupar uma mesa, logo que miraram nos sapatos. Identificaram um intruso, peão melhorado, um zinho apresentado só querendo ser o que a folhinha do ano não marca. E toma-te sal. Para causar aquele clima de nunca mais voltar lá mesmo, como de fato, não voltei.

“Eu acredito que o mundo será melhor...”

O tempo me mostrou que há uma distância inquietante dos versos da canção, numa reunião exclusiva e fervorosa de jovens, para os reais contornos sociais, ou os sentimentos subcutâneos de nossa apartada humanidade. Não nos damos com nossa parelha. Nos esquivamos das semelhanças o quanto podemos. Optamos pela disputa aos primeiros movimentos de uma convivência, ao contrário de rumarmos à partilha, à compreensão e à aplicação das similaridades. É só ver, todo abençoado dia, as menções de parceiros que pisam no pescoço da mãe para alcançar algo, ou reduzem a nossa importância, o nosso relevo, nos ombreamentos táticos pela sobrevivência, seduzidos pelo sistema, domados pela competição. Aqui ali, a gente flagra gente humilde abrindo bolsa de gente humilde em lojas de departamento. Constrangendo, humilhando.

A canção que cantávamos na igreja, apelava para que os pequenos e iguais se reconhecessem, e caminhassem juntos em busca de um mundo melhor. O projeto macrodrenagem resolveu o desconforto da laminha nos sapatos e asfaltou as ruas no entorno da Escola Salesiana. Até hoje quando me convidam para ir a uma pizzaria, me tremo todinho.

domingo, 10 de dezembro de 2023

crônica da semana - Durval, comprou?

 Comprou, Durval?

A gente tá bem assim, começando a semana, dia chuvoso, dezembro mostrando pra que veio, ressaca de mais uma pixotada do Botafogo, força, fé e foco na segundona. Nem seu Souza para o acaso, e com umas boas pautas na biqueira de se tornarem o tema da crônica da semana. Até que uma carapanã atentada de início de noite vem com beira e ataca. Sofro. Me tira de rota. Num pulo, vou atrás do remédio pra tratar a bicha. À primeira e dolorida ferroada, fechei tudo e joguei o produto em cada canto do quarto, na certeza de uma gotinha nociva acertar as contas da sacrista.

Enquanto o veneno agia, dei um tempo na sala, tomei uma aguinha, puxei prosa com a família sobre o friozinho do dia, arrisquei uma zapeada na TV aberta. E que surpresa! Dei com a exibição de Durval Discos, filme que marcou com graça, humor e uma inusitada apreensão, a nossa família, ainda nos tempos das crianças pequeninas, na Vila dos Cabanos. E foi assim, a modo de uma surpresa agradabilíssima para arrematar a cena da injustiçada segunda-feira.

O filme é de 2003. Já assisti em outros meios, tenho o DVD, mas assim no repente de uma olhadela despretensiosa no encarreirado de canais da TV, tem outro valor. O impacto é potencializado por um singular chamamento. Pelo caráter do encontro, sem aquela agenda liminarmente determinada, sem o dolo de um programa marcado no tempo e na decisão, o fato da gente ficar de palmo em cima com um filme tão notadamente marcante, parece uma coisa né. De alma, de sentido oculto. Por aí a gente tira: não é a gente que escolhe o filme. O filme é que escolhe a gente.

Foi logo que deixei a pauta pra outra hora, desencanei da carapanã encurralada sob torturada de uma arma química lá dentro do quarto e me ajeitei ante a telinha. Vi tudinho de novo. Renovei as risadas, fiz menção de espanto quando o roteiro dá uma guinada, cantei junto com os personagens, todas a músicas da trilha, e em especial, dei um reforço grave à voz de Zé Rodrix em Mestre Jonas. Fiz eco em todos os bordões que, inclusive herdamos e utilizamos até hoje nas nossas prosas em família. Pérolas como a do vendedor da loja, “bicicleta a gente não embrulha”; Ou na retórica do personagem principal tentando convencer um cliente a desistir do DVD e comprar um vinil, “Dá pra ver a faixa... e tem o lado A, e tem o lado B”; E na profunda, substanciada, nervosamente prática pergunta que a mãe fazia para o filho cada vez que um cliente saía da loja de discos, “comprou, Durval?”. Esta pergunta ganhou outras roupagens aqui em casa. Toda vez que alguém sai em uma missão, quando volta, não indagamos na objetividade da tarefa. Inquirimos com estilo: comprou, Durval? O sucedâneo da resposta vem bordado de simbologias.

E são essas preciosinhas histórias que se transformam em sentimentalidades poderosas dentro da gente, quando cai essa chuvinha doce na chegada do dezembro.

É o mês que me traz uns chiliquitos de emoção. Pode ter por base o espírito natalino, é provável, mas tenho pra mim que me amolece as razões, me atiça as sensibilidades, também por causa do choque térmico. A gente sai de um calorão amazônico úmido e desliza, num trisca, para a friagem e a chuvinha intermitente. Um blend de motivos que nos confina em casa, nos inspira doces lembranças, nos envolve em nostalgias. E ainda tem a ajudazinha da carapanã que nos atenta a vida, nos tira da lida e nos coloca diante das maravilhosas e duradouras invencionices que se criaram em família, nos acompanham e nos divertem. Quando vi que tava passando o filme, chamei minha galerinha pra ver comigo. Passei zap avisando meu filho, que mora em outro bairro. Dormi alegre e satisfeito com a eficácia psicológica desta rememoração.

No outro dia, quis saber se meu filho viu todo o filme. Liguei e perguntei no costume da graça: comprou, Durval? 

domingo, 3 de dezembro de 2023

crônica da semana - parece que vai chover

 Parece até que vai chover

Guardo esta lembrança desde que tempo. Era uma rotina. Eu estudava na Aparecida e minha mãe trabalhava no período da tarde em uma padaria na esquina do Museu. Era o custo de passar um pouquinho de meio-dia para eu me envolver em aperreios, em apreensões ante as nuvens se formando no céu. Recorria ao pragmatismo da fé. Rezava a seguinte reza: ‘Senhor, fazei com que esta chuva caia somente depois da mamãe pegar o ônibus e que dê tempo pra ela chegar ao trabalho e também peço que me ajude para que ela arrie apenas depois da batida da campa de entrada na minha escola. Espere, meu pai, que estejamos abrigados e protegidos. Depois, depois pode descer o pampeiro’.

Confesso que essa não era uma boa prática ou não representava uma relação global assumida com o clima. Era sim uma aspiração extremamente individualista, ou no mínimo, restrita a um mundo composta apenas por mim e minha mãe. Mas no fundo, no fundo, mostra uma rotina de contato que teria por toda vida, com os humores do tempo.

Mais tarde, já na lida como Técnico em Mineração e Geologia me convenci de que deveria, se não ter o domínio, ao menos reconhecer as variações climáticas pois que do contrário, meu trabalho corria o risco de ir pras cucuias. Temos então, eu e os padrões de chuva e estiagem, aqui nos limites amazônicos, uma certa parceria.

Por isso, quando olho para os cenários meteorológicos que se revelaram este ano, nem maldo. Quedo-me às incertezas comuns a este tema, revisito experiências de anos passados, procuro interpretações globais para anomalias identificáveis (como o El Niño) e fico na minha, só na mutuca, tentando entender. E tentando projetar. Afinal a minha rotina ainda depende dos repentes do tempo, seja para estratégias no campo profissional, seja para ir ali na esquina comprar pão. Só que para agir, desenvolver tarefas ou engenhar planos, temos que nos liberar de patrulhamentos e conservadorismos. Afinal, todo o conhecimento é válido. Cabe nos dobrarmos à ciência, à vivência, aos saberes populares.

Para ilustrar, conto um causo que aconteceu em Altamira comigo. Era o tempo dela e com ela, tinha vez que nem adiantava sair com minha equipe. A chuva, pelo comum, vinha pela parte da tarde, o que nos garantia pelo menos meio período de trampo produtivo. Mas tudo podia acontecer, era este o meu entendimento. Ao amanhecer, então, depois do café, olhava pro céu, avaliava a textura, a cor, a densidade das nuvens, observava os passarinhos, o farfalhas das folhas ao longe, na mata e decidia se a equipe saía ou não pro campo. Deu-se então, que numa ocasião, avaliei que deveríamos ficar. Faríamos atualizações de escritório, descrições e mapeamentos dos dias anteriores. Não iríamos ficar parados, esperando o tempo passar. Quando comuniquei pelo rádio minha decisão para minha gerência, tomei aquela bronca. Enfaticamente, fui orientado a reunir a equipe e me mandar para as frentes de trabalho (que ficavam a pelos menos uma hora de caminhada). Acionei a turma, arrumamos as tralhas e caímos no trecho. Não deu outra. Não percorremos nem a metade do caminho, o pampeiro arriou com beira. Não deu tempo de armar os abrigos. Tentamos voltar. Mas uma tromba d’água levou embora a ponte que nos ligava ao acampamento. Ficamos largados. Nos virando embaixo de árvores ou locas de pedra, encharcados, equipamentos e documentos inutilizados. Quem arriscou, sofreu com as dificuldades no trajeto de volta. Tivemos dois acidentes por escorregões e queda. O grosso da turma chegou ao acampamento, já de noitinha, após a chuva dar uma trégua. Estiolados, cansados e com fome.

Em mim ainda vinga a prudência e impressões catadas dos boletins da meteorologia casados com a vivência. Minha avó saía pro terreiro observava os sinais e nos alertava: parece até que vai chover.

 

domingo, 26 de novembro de 2023

crônica da semana - pai alterna

 Pai alterna

Meu pai era do mato. Riscador de seringueira. Comboieiro. Desse jeito se desenrola a história criada no seio de nossa família para manter viva a imagem, penso que, oportunamente romanceada, do nosso herói da floresta. Na real, conto essas memórias como invencionices de selar casos passados e incertos. Conto na conta do faz de conta. Porque, na vera mesmo, não tenho uma zinha lembrança dele. Tudo que eu sei de meu pai, tenho consciência disso, faz parte da arte de imaginar. O que dá lá dentro de mim, uma frustração aquietada, doce. Sem pretensões nem cobranças rúpteis. Não guardo, é certo, cenas apreciáveis de relações típicas de pai e filhos. Como tantas que se espalham por aí.

É inspiradora, por exemplo, aquela rotina de sábado que eu presenciava na Mauriti, quando moleque, em que um pai, naquele dia, na mesma horinha, atravessava o quarteirão que eu morava carregando as compras que havia feito na feira, e dentre elas, um maço robusto de alface sobressaindo-se além das grossas alças da sacola, ladeado dos filhos. Uma escadinha. O pai na caminhada em direção à Marquês e a meninada agarradinha. Um segurando no cós da bermuda dele, outro beliscando o braço ocupado; aquele maiorzinho pajeando a patota, dando a mão pra um, pra outro e limitando os movimentos da galerinha aos desníveis traiçoeiros das calçadas. E todos num diálogo atravessado de rua, às vezes em saltitos folgados ou em pequenas arengas. O pai altivo, ciente, competente nos cuidados com a turminha. Semblante compenetrado de cidadão responsável, e ao mesmo tempo feliz, como se compreendesse a razão daquela caminhada, num sábado de manhã, como razão da própria vida.

Uma revirada no enredado das lembranças é um pé da gente se atinar para o arremedo, quando da nossa vez. Não me ocorre ter realizado esta batidinha certa de feira com as crianças, em sábados sagrados. Por outro lado, elas costumam resgatar umas quantas varações pelas reentrâncias da cidade. Se puxar uma conversa a dupla destila logo o irrevogável descontentamento de um périplo que fizemos por toda a margem do canal da Pirajá, desde a Aldeia Cabana até adiante da ponte do Galo, já no Telégrafo, debaixo dum sol daqueles. Até hoje justifico argumentando que, chegados da Vila dos Cabanos, era imprescindível que conhecessem o perfil sócio-cultural-estrutural-marginal-invisibilizado-arquitetônico-convulsivo das baixadas. Virei e mexi para me mostrar um pai que dava às crianças, a possibilidade das experimentações. De forma que pra tudo quanto era biboca em que eu me metia, as crianças iam comigo. Então elas me reconhecem na música que escuto, nas confraternizações, nos saraus, no pôr do sol no veropa ou nos escaninhos da Pedreira. Hoje, quando vejo que a maioria dos meus amigos e amigas são amigos também da minha patotinha, entendo que a caminhada foi palmilhada juntos.

Até que houve a desvira. De repente, já não era eu que levava as crianças para as partes ou indicava esta ou aquela play list. Jovens antenados, a dupla era que me inspirava. Passei a acompanhar as crias nos programas delas, houve uma época que eu era de tal forma carimbado nas programações, que me diferenciava da rotina de outros pais. Daí, fui rotulado pela petizada de pai alterna. Aquele que tinha uma conduta alternativa. Uma relação pra lá de liberal com os filhos. Deu que me empavonei nas cores do decolado.

Aí veio outra desvira. Não me convidaram mais. Revisitaram aquelas play lists, até amigos foram selecionados. Com visões mais apuradas, deduziram que sou mesmo é caretão, conservador.

Vou organizar uma desvira para suavizar as diferenças da hora, é que é. Comprar uma sacola, recrutar todo mundo, até a netinha, para fazer a feira comigo no sábado... Instituir a alface como estrela do fim de semana... cortar uma seringa.

domingo, 19 de novembro de 2023

crônica da semana - volta de ônibus

 Volta de ônibus

Houve um tempo em que, eu molequinho bicando a adolescência, dava domingo de tardezinha, me aprontava, passava um talco, um extrato, alisava o cabelo com um tiquinho de Gumex, me ajeitava nos panos, nas vontades e saía, com o sol esfriando, para dar umas boas voltas de ônibus.

Trabalhava, nessa época, numa taberna na Marquês e o local foi usado durante um bom tempo como fim da linha do antigo Vileta. Atendia os motoras, cobradores. Sabia dos gostos deles. Uns encaravam uma merenda pesadona com tudo de direito, já outros, no término de cada viagem, só davam uma prova no cafezinho, ou num traçado com leite. Conhecia todos. Tinha 13 pra catorze anos na ocasião, e agora, gente do céu, no avançar da idade, a memória banca ‘as traição’ e não recordo os nomes. Um ou outro só, ainda me torna, como o de um motora muito popular que tinha o apelido de bombonela porque nos intervalos das viagens, nem lanche farto, nem a frugalidade do cafezinho. Preferia um punhado de bombons para adoçar a lida. Lembro dele também porque algum tempo depois, já nas minhas vivências políticas, o encontrei várias vezes atuando como dirigente do Sindicato dos Rodoviários.

Uma volta de ônibus no Vileta era um programa comportado para o final de tarde, de um domingo. O trajeto da linha é conservador. Não ousa. Não explora as reentrâncias da cidade. Faz um roteiro pelas vias principais dos bairros que atravessa. Para o domingo era uma diversão bastante austera. Passava o tempo, mas não encantava. Valia pela minha moral, porque parceirada que era, viajava sentado no capô, em prosa farta e dispensável com o motorista, não dando a mínima para a plaquinha fixada bem na nossa frente que recomendava falar com o motorista somente o indispensável. Nos momentos de menor movimento chegava até a ocupar a cadeira do cobrador enquanto ele esticava as pernas pelo corredor do ônibus. Era o máximo de minha soberba.

Eu era moleque pra frente, meio independente, tinha meu dinheirinho do meu trabalho de caixeiro. Fazia meus programas de domingo, nas voltas de ônibus até enjoar, sozinho.

Mas esta alternativa de lazer, tenho conhecimento, já foi programa de famílias.

Na Escola Técnica, estudou comigo um pequeno que contava que o pai dele juntava a petizada, não só no domingo, mas a hora que desse na telha, para dar uma volta de ônibus. Só que a linha dele era radical. Aquela que encarava as baixadas do Jurunas, da Pedro Miranda. Em alguns trechos o ônibus forcejava, andava de lado, enfiava-se em brandos atoleiros. Tinha emoção. E era, verdadeiramente realizado, o itinerário, como pauta comum de diversão. Havia a formalidade, todos colocavam roupa de sair. O pai assumia a liderança, pegava o mais novo pela mão, delegava o cuidado com os outros zinhos aos maiores, definia quem passaria por baixo da borboleta, quem passaria junto no apertacunha, e quem pagaria a passagem. Na janela coordenava a vez. Havia revezamento. Menos com ele. Viajava sempre no corredor, para as crianças terem a oportunidade de apreciar os movimentos da cidade pela janela. Na chegada, uma rodada de chope de uvita, groselha, tutifruti, com direito a repitota. Em tudo por tudo era um programa que ia deixando suas marcas.

E deixou.

Dia desses encontrei este amigo. Perguntei pela família. Contou daqueles que ainda estão na lida e com saúde. Lamentou a perda do pai. Demorou-se um pouco e revelou, sem conter a emoção, que a lembrança que mais reforçava a figura de herói, de seu pai, estava naquelas voltas de ônibus.

E eu mesmo que intuitivamente, mas operando no campo do desconhecimento, naqueles tempos, pensava que a palavra ‘indispensável’ que estava na plaquinha do ônibus, queria dizer que só quem podia falar com o motorista era o responsável. O pai ou a mãe. Hoje pondero que há sinais em tudo.

sábado, 11 de novembro de 2023

crônica da semana - meritocracia

 Meritocracia

Como são as coisas... Estava na primeira volta da caminhada, no Bosque, certo na dobra da Perebebuí para a Almirante Barroso, de confronte o sol. Ultrapassei duas senhorinhas e a prosa delas me chamou a atenção. Apontavam para o nascente, especulavam sobre os pontos cardeais, e do meio pro fim, uma delas abriu o coração dizendo, com algum saudosismo, que, ah, adorava aquelas lições. E emendou reconhecendo que se aprendia essas coisas tudinho nas aulas de Geografia, daqueles tempos. A conversa delas foi ficando para trás, me distanciei na direção do sol ainda baixo, ali pelas sete horinhas da manhã, abri os braços e me localizei. O norte é pra’li, pras bandas do Entroncamento.

Geografia foi meu primeiro curso não concluído na UFPA. E o mais rico em protocolos. Logo de prima, tranquei a matrícula. Passei, já quando estava beirando os trinta anos. Era arrimo, o homenzinho da casa e estava na pira do desemprego. Fiz a habilitação, mas adiante, consegui trabalho no Amapá. Rapidola, usei dos protocolos para trancar a matrícula e, ainda de cabeça raspada fresquinha, me mandei pra ganhar um tutuzinho, que estava era nos fazendo falta, lá pros lados do Cupixi. Mais papelada, ressalvas, requerimentos e destranquei a matrícula um ano depois, em 1994. Nem esquentei a cadeira. Quando estava preparando os apontamentos para a primeira avaliação, ganhei mundo de novo. Novo trampo, dessa vez em Barcarena. Marcou o curso de Geografia, a minha passagem mais rápida por um curso superior. Bateu na biqueira de um semestre. Mais dez anos e ingressaria novamente na Federal para fazer seis semestres em Geologia. Nova desistência, mas durou mais. Deu até uma gordurinha ao meu SIGAA.

Foi pouco tempo na Geografia, no entanto, marcante. Naquela oportunidade, tirei a prova dos nove do que é, na vera, um curso superior nas aulas concorridíssimas do professor Juan Hoyos, onde nos encantávamos com a oratória dele e os detalhes que divulgava sobre a esperança de reservas científicas na Amazônia; me vi abismadíssimo em exercícios semânticos e a descoberta da sílaba pretônica, com o professor Pedrinho de Português; quedei-me entusiasmado às aulas ao ar livre ministradas pelo Giovani e também com o discurso substancioso do Nailson sobre a Epistemologia da Geografia, abrigado em uma concentração extraordinária, imerso naquele transe intelectual, mesmo que desconfortavelmente acomodado, porque ele era grandalhão para aquela cadeirinha do professor, ao canto da sala.

Abandonei a Geografia sem adeus. Num dia sustentava atraentes prosas epistemológicas com meus colegas, no corredor do pavilhão... D? E? Não lembro mais. E n’outro estava com tralhas e bagagens atravessando a baía para iniciar minha jornada como peão de fábrica. Nem deu tempo de articular os protocolos. Fui jubilado à revelia, imagino.

A Geologia, em 2004, veio como a realização de um sonho que se repetia há anos. Sou ainda um apaixonado por esta ciência audaciosa, destemida. O sono me tirou o ânimo, me tirou da sala de aula, dos laboratórios, das folgas com minha turminha, conhecendo as mais novas combinações gustativas do jambu, em experimentos que se assemelhavam às vivências dos naturalistas- raiz do século 19.  Meus méritos se diluíram no sono e no cansaço. Em jornada de turno, ficava até 36 horas sem dormir, para poder trabalhar e estudar. Com as crianças pequenas, desobrigas domésticas e ainda um pouco de arte, não aguentei. Também foi sem protocolo.

A ilusão da meritocracia, aqui, ali, me derrubou. Às vezes com, outras, sem protocolo. E acho que caí mesmo foi naquele inverno amazônico de 1975, em que completara 12 anos, assinava minha carteira profissional pela primeira vez, batalhava como empacotar de supermercado e pirangava uma gorjeta dos barões com seus carrinhos cheios de compras.

sábado, 4 de novembro de 2023

crônica da semana - entrevista euclides

 Entrevista

Na horinha que sintonizei o canal, a entrevista já ia longe. Não identifiquei de prima o convidado, mas pela caracterização com bigode fino e dobrado nas pontas, traje elegante; e também pelo tema tratado no instante em que me liguei na entrevista, que revelava detalhes da carreira militar, pensei ser o Marechal Rondon. Só atinei para quem era, na certa, quando em uma das respostas, ele registrou o momento da vida em que conheceu Ana. Era Euclides da Cunha, o personagem entrevistado pelo jornalista Paulo Markun no programa daquela noite.

O programa é uma montagem em que atores representam figuras de destaque na história. E tão bem bolado, que a gente pensa que o Paulo Markun está, verdadeiramente de confronte com o protagonista histórico. Peguei certinho o dia de Euclides da Cunha. Escritor que se destacou narrando a Guerra de Canudos.

Observa-se no programa, o perfeito alinhamento entre o real Paulo Markun e o imaginário personagem histórico, pois que a conversa se dá em detalhes, ou daquele modo em que um assunto puxa outro e entrevistador e entrevistado, para dar o clima, têm que sem virar em espontaneidade. Tudo muito bem alinhavado.

De tal forma que presença viva do autor de Os Sertões, ali, na telinha, renovou em mim o juízo que faço da obra. Já deixei passar aqui, em outra ocasião que, quando aluno temporão de Geologia, provocava meus coleguinhas bem mais jovens vaticinando que não seriam bons geólogos se não lessem Os Sertões. Imagino como essa dica caía na cabeça daqueles estudantes envolvidos, com inarredável exclusividade, nos textos clássicos das Geociências, produções acadêmicas respeitáveis, referências darwinistas, proposições naturalistas, pautas do conhecimento científico. E, ora, ora, tendo como incitador, um colega de classe, já passado na casca do alho, jurando de pé junto que a obra literária iria agregar valor à profissão. Penso do mesmo jeito, ainda hoje. Inspirado por Euclides, o profissional que estuda a Terra é levado a colocar o homem, com seus anseios, suas cobiças, seus medos, prazeres e ilusões, no meio dos fenômenos naturais. A Terra tem várias camadas. E elas se integram, se destroem, se constroem. Desenham uma sina, um destino, onde todo futuro possível é sempre resultante de um acontecimento, uma revolução, uma catástrofe, uma euforia, uma constatação. Em tudo por tudo movimentos atados aos termos de uma combina com o ambiente.

É pegar o livro, e dar de encontro com surpresas. Não é tempo gasto, para um geólogo, conhecer as primeiras páginas de Os sertões. O leitor comum, sim, até por ali, em um terço da obra fica meio embananado com tantas palavras difíceis. No início da narrativa, Euclides detalha o espaço ocupado pelo nordestinho, oferecendo vastas informações sobre a Geologia, o clima, a Geografia, a Geomorfologia da região. Até chegar ao front, o autor se empenha nas conjugações de eventos naturais que resultaram na Guerra de Canudos.

Na linha de frente, nos mostra a guerra como ela é. Monstruosa, desleal, sem medidas, desprovida de traços mínimos de humanidade. Como as guerras atuais, Canudos reflete o que se sabe hoje sobre os massacres registrados em combates. Flagelos, estupros, humilhações, barbáries. Acontecia lá em Canudos. Acontece a qualquer tempo, do mesmo jeito. De forma bruta. Destruidora de corpos e almas.

Somente o talento de Euclides nos alivia a dor impressa nas páginas de Os Sertões. Ele é esmerado na escrita, tem estilo, é fiel às construções, às locuções. Pratica a língua com preciosismo. Valoriza as formalidades frasais. Reverencia a colocação pronominal. Quando cinco mil soldados rugem ante quatro sobreviventes de Canudos, o que nos atenua o horror é a arquitetura da narrativa. Arte tal que nos deixa levar pela sensação lenitiva de que a Geologia e a ênclise, ainda que, contraditoriamente, na erudição segregacionista da forma, nos redimem.

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

30 de operário em Barcarena - a história

 O choque

 

De volta à realidade e concluídas as fases de preparação (e sonhos), passamos a dar expediente nas instalações da fábrica.

Era uma legião de profissionais, todos com currículos enriquecidos nos cargos de supervisão ou em competências técnicas. Mas a fábrica não precisava só de gênios, supervisores e obreiros gabaritados. A grande maioria daquela mão de obra qualificada iria para o chão da fábrica.

Quando da viagem para Ouro Preto, já deu pra sentir a barra que era ser peão linha de frente. Meu treinamento foi na mesma área em que eu seria lotado em Barcarena. A empresa em Ouro Preto era bem antiga, alguns parâmetros de controle ainda eram manuais, outros analógicos e uma vasta lista de manobras de rotina era executada na base da marreta. Para mim, um golpe duro. Acostumado que estava ao longo da vida profissional a manejar apenas a lapiseira, quando me vi golpeando uma marreta sobre uma haste de válvula emperrada, quase que tenho uma piripaque de tamanha frustração.

O choque começou a se concretizar em escala que eu poderia classificar como humilhante, no momento em que, concluídas as etapas de treinamento e estágios, passamos a dar expediente nas instalações da fábrica. Ainda um caminho longo a ser percorrido para o início das operações e aquela ruma de gente se topando pelos prédios administrativos. A solução encontrada foi nos dar atividades alternativas. Por pouco, não fui servir cafezinho. Se fosse o caso de chutar o balde, chutaria nessa fase. Embora nosso grupo sinalizasse com adestramento sobre o sistema de cada área a partir das plantas e circuitos disponíveis, nosso chefe imediato declinava a cada vez que fazíamos a proposta. Decidia por nos distribuir tarefas outras. Passei um tempo na máquina de xerox. Nunca na minha vida, tinha sequer abelhudado de palmo em cima como funcionava aquela máquina. Resulta que algumas vezes, ainda fui admoestado por não gerar cópias conforme a vontade do solicitante. A sorte é que revezávamos na operação da máquina e um ou outro que já tinha um quê a mais de conhecimento, partilhava os macetes do manejo. Hoje em dia até me arrisco a fazer uma cópia frente e costa, certinho na fita e na métrica. Aquela experiência na xerox pode até ter segurado a minha vaga na empresa e emprestado alguma habilidade à minha trajetória pessoal, por outro lado, para  minha carreira de Técnico em Mineração com mais de dez anos de formado, aquela foi por certo, uma passagem vexatória. Pelo conhecimento que tinha, esperava bem mais.

Não considero esse meu sentimento, uma nesga de presunção, de ser o que a folhinha não marca. Fosse só comigo, até que então. Outros também passaram pela mesma crise. Operários da elite dos químicos de São Paulo, das refinarias de petróleo, acostumados a altos salários, benefícios vários, íntimos ao status de setores produtivos privilegiados, ali, revezando comigo na xerox, também manifestavam descontentamento.

Estávamos no mesmo barco. Ser forte para superar aqueles contratempos, era necessário por vários motivos. Eu acabara de saber que iria ser pai. Um motivo que me deu forças. Não era hora de pavulagem.

Como foi adiantado, teorias e construções intelectuais não eram a exigência para grande parte do grupo. A empresa já contava com um time para aplicar o conceito inicial da operação. Treinamento, estágio, realizações práticas, braços, sim. A fábrica precisava de cabeças que pensassem como ela pensava e de músculos. Naquele primeiro momento, a operação seria levada no muque, por aquela galera do rés o chão.

É nessa ordem que a história deixa de ser tratada pelo seu lado mais despretensioso, sai daquela insensatez do jogo de futebol de madrugada e das fantasias sentenciando que aqui na Amazônia tem leão, e vira radicalmente para a seriedade da tão falada relação capital-trabalho.

O regime de trabalho. A tabela de turno cruel

 

Depois da xerox, fomos acolhidos em um prédio destacado e lá sim, pudemos estudar as plantas e as fases do processo com detalhes.Sem tutor. Ficamos meio por nossa conta. Um que entendia mais abria um estudo, desenhava no quadro, simulava situações. Aquela era a ante-sala da partida da fábrica. A qualquer hora iríamos para o regime de turno. Não havia interferência das chefias, a não ser na questão da formação dos turnos.

E, pelo que avaliamos, aquele era o grande impedimento de rodarmos os turnos imediatamente. À época ainda formávamos como quadro da Albrás e éramos beneficiários do Acordo Coletivo em vigor. Para o trabalho de turno, a Albrás operava com 5 turmas em jornadas de 6 horas por turno. Este era o modelo de turno que apavorava a direção da Alunorte. No entanto era o modelo legal e referendado em acordo com o Sindicato.

Havia dentro da Alunorte, a defesa de uma outra tabela de turno com o emprego de somente 4 turmas que era o que o contingente inicial permitia para uma operação segura em números de operários. Naqueles dias, percebemos que a Alunorte entraria em operação com um quadro enxuto. E antevíamos uma sobrecarga de trabalho para aqueles que colocariam a fábrica em operação. Este modelo defendido pela empresa, embora estivesse fora dos parâmetros da legislação, poderia ser aplicada caso houvesse a aprovação da categoria e o referendo do sindicato por meio de instrumento jurídico próprio. Um Acordo celebrado exclusivamente regrando o trabalho de turno de revezamento.

Nessa época houve uma mobilização nossa em favor da ‘tabela da Albrás’, ou tabela francesa, como era conhecida a composição de turmas e jornadas. E da empresa, em favor de uma tabela mais enxuta. Aconteceram embates entre os representantes da empresa e os trabalhadores, lá no prédio destacado. A empresa elaborava listas com assinaturas a favor da tabela dela, nós fazíamos as contas, relacionávamos as perdas e a carga de trabalho. Era um movimento contínuo em busca do convencimento, de ambos os lados.

Nesse período, conheci e me aproximei do Sindicato dos Metalúrgicos. Era o sindicato que representava os trabalhadores da Albrás e nós, até ali, éramos funcionários da Albrás. Vivemos uma experiência de negociações para o Acordo Coletivo ainda na Albrás. Participamos, votamos, nos envolvemos e levamos as discussões da tabela de turno para ser encaminhada pelo sindicato.

A tabela só poderia ser modificada com o aval do representante da categoria. O sindicato sequer cogitou esta possibilidade.

E a fábrica entrou em operação com 5 turmas.

Com pouco tempo de operação, com os problemas aparecendo, ajustes, aprimoramentos, novas demandas, adaptações no modelo operacional que já eram até esperadas, verificamos que a composição das turmas não suportaria a carga de trabalho. Era pouca gente nas equipes para tarefas múltiplas por jornada. Das duas, uma. Ou a empresa contratava, ou mudava a tabela para 4 turmas.

A tabela mudou e da forma mais traumática e sorrateira.

 

sábado, 28 de outubro de 2023

crônica da semana - volta de dangue

 Uma volta de dangue

Domingo... Tem a ‘noite do fogos’. Tradição antiga que antecede o Recírio, os fogos de vista. Pelo que me torna e o que me deixa, agora sem os espocados barulhentos. Por conta dos bons modos, penso ser a pirotecnia limitada ao espetáculo visual. Sempre muito atraente e fascinante, ressalte-se. O colorido dos fogos de artifício em tudo me encanta. A arte de dar cor, de selecionar elementos que emitem luzes diferentes quando aquecidos, é valor incontestável da criação humana (entendo que devemos nos quedar à surpresa quando a nós, nos é dado saber que um dos componentes químicos da mistura pode ser um elemento chamando Estrôncio. Pois sim, heim, seu Estrôncio!). E quando a gente pensa que este tipo de manipulação dos agentes naturais data de sei lá quando, meu pai! E se desenvolveu sem as tecnologias refinadas, e até por acasos ou sustos, aí sim é que a atração é de entontecer. Há registros de os fogos tal como os conhecemos tenham sido aplicados pela primeira vez há dois mil anos. Já pensou! Eu fico bestinha da silva com esta rica engenharia humana Antiga, mesmo porque conheço as potencialidades do fogo, em meio a tanta modernidade, limitadas às bocas do fogão. E olhe lá, isso se tiver fósforo.

Os fogos marcam também o final da Quadra Nazarena, que é o momento intenso, aquele tempo aquecido de intenção, fé, paciência no trânsito e uns trocados para um passeio no Largo; quando desapregamos de nossa hermética rotina para celebrar mais um outubro da Virgem.

Eu por mim, com a bênção da Santinha, cumpri o rito. Dei termo à desobriga nos limites da minha entrega. E recebi de volta a tradição. Cumpriram-se as romarias, alinhou-se o sagrado e o profano, os estivadores fizeram a sua homenagem. Teve a chuva da Santa, a Chiquita agraciou os destaques com o desejado, porém somente por alguns conquistado, troféu; eu dei aquele  rolé pelo arraial e, como reza o costume, com toda a família.

Não sei se prestei o reparo suficiente, mas ao largo, por onde andei, não vi nem a maçã do amor, nem o algodão doce. Elementos que me enlouquecem de memórias afetivas e me atravessam de fora a fora de desejos. Se havia, passei batido. Falha técnica imperdoável dar uma volta no Largo e não voltar lambuzado dos doces do algodão e da maçã. Com o detalhe que, no caso da maçã, uma cerimônia de partilha genuinamente cristã marcava o momento. Nos anos contados anteriores, ocorria de ser apenas uma maçã para toda a família e cada um dava uma prova. Era a celebração do bem comum. A reiteração do compromisso comunitário, do usufruir coletivo.

É provável que tenha patetado nas guloseimas porque de uns anos pra cá tenho é me mundiado com tantos brinquedos novos e radicais espalhados pelo parque. Cada um mais desafiador, mais fibrilador que o outro. Sentar numa cadeirinha daquelas mais parece ser enfrentar um treinamento para astronauta sênior do que folgar-se em pueris rodopios. Nessa mesma e desproporcional conta, destaco a ausência do inofensivo e inegavelmente histórico carrossel, aquele com o sobe-desce dos cavalinhos. Não vi por lá. O que causa um vazio no passeio da família já que representava a oportunidade não só dos pequeninos experimentarem uma voltinha na velocidade da contemplação, como também dos pais, que logicamente faziam questão de fazer companhia aos filhos ali do ladinho, posando pras fotos, subindo e descendo.

Alguns brinquedos antigos se fazem notar de prima, como a roda gigante. Outros são apresentados com outros nomes, mas ainda os reconheço como tira-prosa e dangue. Ao longe, numa espiadela localizei a barraca da pescaria e das argolas. Não me atraem. Não por nada. É que na vida, não ganhei uma lembrancinha sequer nesses jogos. Acho até que tenho um trauma, sei lá, uma cisma. Quem sabe par’o ano tento a sorte.

sábado, 21 de outubro de 2023

crônica da semana - eclpse à noite vale

 Eclipse à noite também vale

Como diria aquele erudito, tirando leite das pétreas referências filosóficas forjadas do discurso principesco de Maquiavel, “o eclipse tinha que acontecer era de noite”.

E jura que eliminaria risco de a luz do sol nos magoar as vistas.

Esta possibilidade é um tanto de absurdo da negação pra gente nem dar trela. Mais porque o eclipse do Sol é um fenômeno de alta grandeza, um movimento natural meticulosamente traçado pelo precioso ciclo celeste. E também pela estranheza composicional do evento, colocando o sol pra trabalhar de noite. Nem se a Terra fosse plana seria combinação possível. Deixa estar que entendo. É por cauda da trabalheira que dá para ter êxito na observação diante do brilho forte e impactante do sol. E por entender, dou aquela assoprada. Existe sim um tipo de eclipse que acontece de noite. Só que não é do sol. É o eclipse da lua. Que se não é de igual beleza e valor, é parecido. E vamos nos aviar, que agora em outubro, antes do fim do mês, tem um.

Voltando para o dia claro, tivemos um evento raro se realizando no céu do Brasil, sábado passado. Em alguns pontos do país, mais completo, em outros, menos. Em todos os casos e modos, fascinante: o eclipse anular do sol.

Anular porque no momento de maior expressão, a imagem formada na combinação de posição Terra-Lua-Sol, lembra um anel. E pela emissão de luz, nas bordas, um anel de fogo. Isso acontece porque o sol não some totalmente atrás da lua. Quando some inteirinho, o fenômeno recebe o nome de eclipse total.

Eclipse quer dizer desaparecimento, abandono. É o caso de um objeto ser encoberto por outro. No caso do evento de sábado, tem-se o Sol ser empatado, ser escondido pela lua em seu trânsito regular ao redor da Terra. Uma comparação boa, já que falei de trânsito, é o trânsito de Belém. Principalmente quando a gente tá na parada de ônibus, esperando aquele que nunca vem e quando vem, um outro corta a frente dele, o motorista do nosso ônibus não nos vê. Ficamos eclipsados. Às vezes até nos vê, mas finge ser empatado pelo outro ônibus, desvia, queima a parada e nos deixa na mão. Este tipo de eclipse que nos deixa no maior abandono acontece direto aqui em Belém comigo.

Bem comparado, volto ao eclipse de sábado.

Foi um espetáculo! Em alguns pontos deu até pra ver as beiradas doiradas do sol ardendo em plasma. Uma maravilha! Quem teve cuidado, usou equipamento adequado, valorizou a segurança, teve a oportunidade de presenciar um fato raro que vai demorar pacas pra acontecer de novo. Da mesma forma, rara foi a preparação. A maioria não se deu conta, comeu mosca e na hora agá, sequer a plaquinha de soldador indicada, tinha em casa para fazer a observação. Foi o meu caso. E olha que sou ligado nas paradas astronômicas. Na batida da campa, recorri aos meus ralos conhecimentos de Física e montei uma caixa escura. Com a projeção da imagem que consegui, me dei foi por satisfeito.

Entretanto, sei de reações enérgicas de descontentamento, frustração. E até atos desesperados de rebeldia como olhar diretamente para o clarão do sol ou mirar de palmo em cima, superfícies reflexivas. Atitudes reiteradas vezes reprovadas por especialistas. Tudo com a intenção de captar o melhor momento do eclipse.

Não pode esmorecer, nem se afobar do jeito de ficar com problemas de vista depois. O eclipse solar é belíssimo, já ensejou medos e mistérios, foi decifrado pela ciência e não é coisa de se passar batido. Só que para ficarmos de confronte ao anel de fogo, todo o acervo de equipamentos e suportes de segurança ainda é pouco. Se não tiver o aparato, paciência. Fica para a próxima. Ou nos demos por satisfeitos com o eclipse da Lua que é de noite e se aproxima. Não precisa de nada, a não ser a atenção do olhar e, se não é igual em beleza ao eclipse do Sol, é parecido.

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

crônica remix - icoaraci belém

 Icoaraci-Belém ou vice-versa

No sábado, acompanhei um amigo romeiro até Icoaraci. Ele queria ver a chegada da Santa para a romaria fluvial. Meu amigo é romeiro meio de araque. É da barra. É rebento genuinamente pedreirense. ‘Vicici’ na corda. Só que agora, trabalha com ouro em Itaituba e quando vem por aqui se enche de pavulagem. Desta vez, quis porque quis se abalar até Icoaraci. Quis satisfazer algumas carências: rever o cruzeiro, a casa do poeta Antonio Tavernard, passear à sombra das mangueiras da Vila de Pinheiro, comer uma caldeirada na beira...

Feita a desobriga no trapiche, partimos para a recomposição de lembranças e depois de um farto repasto e umas quantas geladas, decidimos zarpar.

Meu amigo é gente do bem. Só que tem um problema. Não pode beber (até que pode. Não fica um porre chato nem malino. Aliás, fica até um porre consciente, tanto que o que vou contar agora, me foi relatado, com detalhes, por ele mesmo; mas fica logo bêbado e pra lá de despachado, engraçado e extraordinariamente descompensado).

Eu e meus meninos fomos de ônibus para a Vila Sorriso, bem cedinho. Ele foi de carro. Só que não me avisou. Daí, da feita que nos levantamos do restaurante, ele nos acompanhou. Subiu no Icoaraci-Presidente Vargas com a gente. No caminho, balbuciou meio sonolento: “amanhã venho buscar”. Perguntei o quê. “O carro”, ele disse. “Pô, deixaste o carro em Icoaraci”, ralhei. “E nem lembro onde larguei”, confessou. Depois, desandou a falar da devoção à Virgem de Nazaré. Contou a história de D. Fuas Roupinho, que nas suas caçadas pelas floretas de Portugal foi atraído por um veado para um precipício e foi acudido pela Santa, momentos antes da queda (minha avó tinha um quadro com esta cena em casa: o cavalo contorcendo-se no ar. O desespero do caçador. O riso cínico do demônio alado a planar sobre o vazio do precipício e a Santa Virgem Maria vencendo o mal).

A seguir, num repente, mudou o rumo da prosa e varou à margem do Murutucu, já contando a versão do caboclo Plácido. Tão confuso, quanto inaudível, foi baixando a voz e se entregando a um soninho. Me certifiquei estarem as crianças acomodadas naquele banco mais alto que os outros e me ‘interti’ apreciando a viagem, na paz. De repente, meu amigo despertou. Fez uma cobrança a si mesmo e, vexado, cedeu o lugar a uma gestante. Mal conseguia se manter em pé. Mas primou pelo cavalheirismo. Obsequioso, lembrou que íamos para a Pedreira e deveríamos pegar dois ônibus. “Desceremos no Bosque”, ordenou.

As poucos, foi sumindo no apertado do corredor, e quando atinei, meu amigo não estava mais no ônibus...

No outro dia, no almoço do Círio, ele me contou: viu umas árvores juntinhas, um bambuzal. Pensou que fosse o Bosque e desceu do coletivo. Na calçada ficou meio azuruote. “Cadê as grades? Cadê o muro? O Mapinguari?, Vai ver que desci na rua detrás”, convenceu-se. Não se afobou. Avistou uma parada coberta, largou sobre o banco a mochila (costume que trazia da mineração: andar sempre com uma mochila completa com as coisinhas do dia-a-dia, inclusive a carteira com dinheiro, documentos, cartões de crédito...) e se entregou a outro soninho. Lá pelas tantas, uma jovem senhora o despertou. “Onde estou?”, perguntou. “Na Augusto Montenegro”, respondeu a moça. “Indo ou vindo?”, inquiriu ele, com ar de extremada despreocupação. “Aí vai do senhor”, devolveu a zinha. “Tem razão”, rebateu meu amigo, “eu decido o meu caminho. E vice- versa”, filosofou. E ‘enchinou’ de novo.

Acordou milagrosamente munido de todos os seus pertences, aos primeiros raios de sol de um domingo, sem dúvida nenhuma, abençoado.

 

sábado, 14 de outubro de 2023

crônica da semana - A chuva da santa

 A chuva da Santa

Antigamente, antes dessa doideira climática que nós humanos ensejamos em termos e rumos perigosos, as chuvas do ano eram marcadas por referências bastante reconhecíveis e previsíveis. Eu sou do tempo da chuva da Santa, e ela vinha exatamente como agora, depois desta secura do mês de agosto e pouca indicação de chuviscos em setembro. Era batata. Batia outubro e ela começava a se assanhar. Podia até não cair, mas se assanhava até que no sábado ou domingo do Círio, arriava. Os dias absurdamente quentes deste ano, a falta de ensaio e os alertas de ondas de calor me fizeram crer que passaríamos batido na chuva da Santa dessa vez. Mas quando, homem de pouca fé! Para a Santa não tem dificuldade que não seja superada. Quando estava na Presidente Vargas, sábado, benzinho na chegada da romaria fluvial, alertei a família para uma nuvem se formando em cima de nós. Tínhamos a netinha como a mais nova integrante da nossa patota, na recepção à Santa e uma correria ali pra proteger a pequenina, naquele instante por causa de uma chuva repentina nos deixaria num sufoco. E agora a gripe certa, depois por causa do mormaço! Rapidola fizemos um plano de dispersão. Só que a nuvem fez menção, fez que despencava, mas não despencou, foi-se com o vento. Agora, no domingo, depois da procissão, o pampeiro deu o desconto e arriou valendo! Bem na hora em que nos aviamos no almoço, acolhidos pela sombra generosa do quintal. Foi um corre-corre pra livrar a terrina do pato, a panela da maniçoba, a bandejinha com salada, da chuvarada que não tinha termo e nem direção. Foi, porém, o custo de tudo de arranjar para folgarmos a valer. Nos divertimos segurando a tenda armada no quintal para que o vento não a levasse pra longe, manejamos rodos e vassouras esgotando aqui, ali uma sensação de alagamento dos pés; a molecada piriricou nas biqueiras e em regozijo, apreciamos a reedição de um evento cultural e religiosamente íntimo de todos nós paraenses: as bênçãos da mãezinha vindas do céu, nos mostrando que mesmo que a gente tenha maltratado o planeta e que o tempo dê suas destrambelhadas, ainda há uma chance. Ainda podemos mudar o curso da história, recuperar um pouco do prejuízo ambiental, represar as ameaças e garantir por mais uns bons anos, um Círio molhado. Ninguém cria que ia chover nesse fim de semana. Choveu e choveu bem. Não foi milagre, foi conformidade. Está escrito na história dos Círios, descrito nas estatísticas e memórias, que uma horinha, ao tempo e à vez, chove. Sabemos disso. Reconhecemos e nos entregamos de gosto à chuva da Santa com fé, satisfação e aquela algazarra boa que se instala sem travas nessa hora. Sem nenhuma barreira de recato ou pavulagem. Me meti foi com beira também naquela desordem redentora.

Estava precisando desopilar. A semana que antecedeu o Círio foi brabíssima. Daquelas chumbadas de três esferas que pesam dentro da gente e nos levam pro fundo. Bem aos olhos da Santa! Difícil pra mim conviver com a brutalidade, a insensatez. A alienação do que nos faz iguais. O distanciamento da propriedade que nos torna fruto da mesma árvore: o trabalho, a batalha diária. Me abalam posições, reações que nos põem, nós os peões, em desalinho. Choro, me recolho nos escaninhos da revolta. Chega me dá até um tremor, uma febre. A minha valência é poder partilhar. Tenho uma rede segura, afetuosa de amizades que me aparam. Meu ouvem, me entendem, enxugam minhas lágrimas, se colocam ao meu lado. Foi essa energia que me lançou à rua no sábado para o encontro certo com a Santinha, na chegada da fluvial; e o que me reintegrou ao seio reconfortante da minha família. Círio para mim, entre tantas e às vezes desajustadas interpretações, é família.

Esta mesma que me estimulou a lavar a alma com as benditas águas da chuva da Santa no domingo.

 

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

crônica da semana - abraço de tamanduá

 Amar e outros medos (abraço de tamanduá)

O estudo do movimento literário não faz parte mais da grade do ensino médio. Fiquei chocado quando soube desta triste realidade. Porque no meu tempo de Escola Técnica, fazia. Conheço o Victor Brecheret dessa época, ali pelo início da década de oitenta do século passado. E nem foi pelo que ele escreveu. Era artista plástico.  E sim por ser um dos nomes de destaque na Semana de Arte Moderna de 22.

Agora, depois de formado, me embrenhado nas matas dessa Amazônia deslumbrante, navegado rios caudalosos, velozes e furiosos; neste instante da vida em que minha caminhada cheia de repentes e aventuras se apascenta e se aquieta nos fachos pelas matinês acaloradas de Belém, pleno domingo circulando com a família pela Cidade Velha, olha lá quem encontro. O Moderno Brecheret com suas obras e inspirações a olhos marejados e vistos em exposição no Museu do Estado. Entre as criações mais instigadoras, a peça “A luta da onça e do Tamanduá”, me mundiou. Consta ser uma ressignificação da natureza que eu nem que me derrubem a bufete conto aqui como é que é. Dou é a dica: vão é logo lá que a exposição já está indo para os finalmentes.

E pois bem. Calhou de a Escola Modernista de Literatura nos ser apresentada em aulas ministradas pelo adorável Alfredinho. Nosso professor de Português no último semestre da disciplina. A ETFPa encaixava na grade os relevantes movimentos artísticos representados em Escolas nas suas particularidades específicas. E era uma sequência que na formalidade cronológica culminava com o Modernismo, e também, na culminação do curso. Iniciávamos com os clássicos portugueses, Camões e os Autos Teatrais. Descobríamos o Brasil do Boca do Inferno Matos Guerra. Passávamos de ano e nos encontrávamos adiante com os Árcades, mais a frente com os corações esmigalhados dos Românticos; Do meio pro fim, Machado, Eça, as peripécias comuns dos Realistas e o doce azulado dos Simbolistas, até... O Brasil brasileiro prospectado pelos Modernistas.

Quando nos falava do surgimento de uma narrativa Modernista, o professor Alfredo tomava o cuidado de contextualizar e cravar na Semana de Arte Moderna de 22, o grande momento das várias formas de arte. E nos dava a escalação: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Villa-Lobos, representantes da música e da literatura; Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, e Victor Brecheret compondo as harmonias das artes plásticas. Não esqueço essas aulas. Até hoje ainda monto o time. Faltam alguns aí na minha lista. Eram bem mais que uma onzena.

Eu entendo a arte, dentre outras coisas, como um ato de amor. E estendo essa minha impressão ao medo de amar. Quantas inesquecíveis histórias foram enredadas nesta trama humana tão desafiadora que é apegar-se a outra alma e mais ainda, sem certeza alguma, numa união de risco altíssimo, de durabilidade sem garantia alguma. Qual a sensação, o que levaria para a vida um estudante do ensino médio ao dar com um final arrasador articulado por um Camilo Castelo Branco; ou uma terceira via para o sofrimento, arranjada em narrativas abusadas, por Eça de Queiroz? Que medidas dar ao coração neste passar do tempo até as Angústias de Graciliano e os conflitos de Riobaldo?

Retirar o ensino da literatura e das manifestações da arte nas possíveis composições estéticas, do ensino médio, em mim me realça o medo de nos perdermos no leve e frágil presente e abrirmos mão de um futuro. Nos reduz as oportunidades de conhecer todas as formas de amor. Penso que nos confina no mimetismo asfixiante de Brecheret em representar a luta da onça com o tamanduá.

Não percam a exposição. Tá no MEP, por outra, conhecido como o antigo palácio do governo, (e sabe, bem que poderíamos ter um museu também aqui na Pedreira. E nem precisaria ser um antigo palácio). 

 

sábado, 30 de setembro de 2023

crônica da semana - o sul é ali

 O sul é ali

Meu olhar se perde no longe. A vista alcança a dúvida, a indiferença, divisa o infinito instável e a descrença. Num revide, brotam de mim palavras silenciosas devoradoras de medos, chamando por uma força suprema, um deus que venha do céu, ou ao menos uma alma boa que se aproxime com afetos e doçuras. Há uma paixão latente nesta minha zanga. Uma novela de desejos, tentações, traições passando pela minha janela espiã e indo se despir no igarapé lá embaixo, aos pés da imensa castanheira. O sul é ali. Um ponto cardeal. Não, cardeal não. Cordial. Aquele ponto que se instala no hemisfério esquerdo do peito e bate descompassado a cada fantasia, em oportunas invenções de carinho, nos incidentes de mãos dadas, abraços escondidos, aquecidos. É um lugar que vai além dos vãos do universo e dos instintos siderais. Só existe numa caixinha lacrada de idealizações. Já o outro sul cardeal é do lado oposto ao norte. E ficava bem ali adiante no rumo do igarapé e da grande castanheira.

Fazia um trocadilho quando Sueli passava, de braços com o japonês, companheiro dela. Moravam na vila, depois da ponte. Apontava para o caminho dizendo pra mim mesmo, no protegido da janela telada, como se dissesse para ela ‘ei, Sueli, o sul é ali’. Aquela intimidade ocorria só no meu pensamento. Sueli tinha uma vida recatada, de poucos alardes. Saía raramente de casa e quando saía, era com o japonês. Nos encontrávamos mais de perto, à tardinha, no jogo de vôlei. Durante as partidas, se soltava um pouco. Vibrava, reclamava se errava uma jogada, abria sorrisos absolutamente mundiadores quando fazia ponto. Sacava com elegância, embora nem dominasse as técnicas. Bastava sustentar a bola no ar que para ela a jornada da tarde já estava ganha. Criei uma afeição contida. Todas as tardes, reparava nela. Era jovem e tinha uma beleza reprimida. Se cuidava pouco. Não tinha vaidade. Na quadra arriscava um pitó para prender o cabelo e este arranjo lhe dava um aspecto juvenil, inocente. Nem parecia que já era casada. Com o japonês.

O sul é ali e o trocadilho me vem com uma sonoridade perturbadora. Inspirando aquelas inquietações no lado esquerdo do peito. Meu ponto cordial se deixa levar pelos ventos sem rumo certo. O igarapé, a castanheira, um olá respeitoso para o casal da minha janela e as convulsões, os respondidos explodindo dentro de mim. Meu esconderijo telado, a realidade turva pela poeira; e toda aquela revelação verbal comprimida, apertada dentro da razão, volta-se para o céu em clamores, culpas, perdões. Chama por uma energia compensadora, uma prenda pós-morte, um paraíso de prazeres sublimados. São as revoluções provocadas pela paixão. Dominam meu ser em pensamentos e intenções. Prazerosos pecados. Delitos deliciosos. Conflitos excitantes, Medos delirantes. Felicidades em risco. A paixão clandestina, silenciosa, perigosa, insidiosa, Indicando a direção. O sul é ali.

De minha boca, as angústias explodem em palavrões pedindo céus e nuvens e chuva e Deus e força e choro farto e resignação e um amor só meu e a vergonha social e o flagelo da clausura e uma demência estratégica e... silenciam.

Até que um dia, me chegou notícia contando que Sueli havia fugido de casa. Sem que ninguém maldasse, sem nenhuma pista na quadra de vôlei que insinuasse. Pegou o circular cedo, antes do japonês chegar do turno da noite. E sumiu no mundo. Levou a beleza pura, sem enfeites, o pitó juvenil e aquele sorriso avassalador de quando fazia um ponto, sem técnica, quase sem querer, no jogo. Nunca mais se ouviu falar dela.

Dali a alguns dias, o caminhão passou pela minha janela levando as coisas do japonês. Estávamos sem rumo. Sem pontos cordiais a bater no coração.

Nunca mais se ouviu falar dela. A não ser agora, quando olho pro horizonte e a localizo... ali, no sul.

 

 

 

sábado, 23 de setembro de 2023

crônica da semana- Feira Pan

 O feldspato e o tremelique nas razões

Escrever no dia seguinte à jornada intensa da Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes tem a medida exata e ainda fresquinha dos atropelos comuns aos instantes incomuns. É que hoje, a minha carruagem virou abóbora. Todo o fulgor, aquela convulsão, as imersões em descobertas, o papo cabeça vão se apagando a uma velocidade da luz sem luz e dão lugar à rotina operária, à tensão produtiva, ao labor inclemente e duro, ao humor contido, ao amanhecer sedento de ânimo e de energia. A atmosfera literária, intelectual, abstrata e agradavelmente despressurizada, dá lugar à concreta valia, ao relógio de ponto, à rigidez implacável da produtividade. O dia seguinte à Feira Pan, requer a mudança de personalidade, o desapego de adornos e discursos, a reviravolta no ser e estar. Faz a exigência de um outro eu a me dominar. Mas já foi de muito mais impacto esta viração de casaca. Já ocorreu o tremelique das razões. O choque já foi de volts tantos de não se medir. De me deixar meio atarantado, por um isso assim em tempo de errar a letra e a fala. Hoje sai de cena o escritor e volta ao comum dos dias, o operário. Abandona-se o autógrafo em favor do carimbo. Deixo o limbo leve das palavras e me lanço ao chão frio e bruto (ao mesmo tempo, sagrado provedor de cumê e algum prazer), do chão da fábrica. Num sacolejo de entontecer os pensamentos. Digo até que agora, é destrambelho fácil de se arrumar sem grandes contorcionismos de conduta. Mas há alguns anos, a liga era mais intensa. Ainda tinha o feldspato...

Foi no tempo em que eu era aluno temporão do curso de Geologia, trabalhava de turno, tinha duas crianças pequenas pra cuidar e ainda traçava estas heróicas linhas a hora do dia que desse. Era quatro em um. Vivia várias personalidades numa velocidade alucinante e que ganhava relevo nesta mais espetacular sequência: saía de Barcarena ainda com a estrelas pinicando no céu. Enfrentava a travessia e rezava a todos os santos pra chegar e pegar ainda o final da primeira aula na Federal. Nessa época, fazia uma disciplina ligada a Mineralogia e a estrela da vez era o feldspato, um mineral que até a Universidade nem maldava que tinha tanto valor científico. O bichinho na vera era o astro naquele período. Tomou todo o semestre. Adentrei naquele mundo miudinho e que contava com a tecnologia das lâminas de vidro, do microscópio, requeria umas apreensões de ótica, das revelações da luz polarizada. Era uma disciplina que eu considerava engalanada, empoada nos poderes acadêmicos. Ali, sentado, decifrando a história do feldspato no microscópio eu me via como um ser superior, dominador das ciências. Até que batia a campa, eu saía correndo, me despindo pelo caminho dos rigores científicos, atravessava a baía meio-dia e pegava o turno da fábrica já abraçado ao cabo de uma pá, ao comando de uma máquina, ou à assepsia do ambiente de trabalho. Do cientista, nem lembrança. Depois de bater o ponto, casa. As crianças dormindo (raramente dava pra exercer a versão pai). No outro dia, de novo Federal e de novo trampo de peão. Virava a escala e ia para o turno da madrugada. Federal durante a manhã. Tentava ser pai de tarde, e à noite cumpria minhas oito horas na lida. Entre uma jornada noturna e outra, sem dormir um tico, aparecia o escritor. Nem tinha computador nessa época. Era tudo na minha Olivetti. Um pouquinho de pai de novo e tirava uns dias de folga. Enquanto descansava do trabalho, carregava as ‘pedras’ de feldspato, me aviava como pai e buscava inspiração para um verso, uma prosa. Era quatro em um. Mas não aguentei não. Abandonei o feldspato, adaptei outros eus e busquei dias mais brandos, mas de forma alguma distendidos ou levianos. Muito pelo contrário. Densos, ainda densos, como estes de adaptação, ao pós Feira Pan. 

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

crônica da semana - a onzena

 A onzena

A chuva ia, vinha e, às vezes, forte. Numa das amainadas daquele chove e molha do sábado à noite consegui chegar ao Hangar, me acomodar na mesinha número dois do Estande dos Escritores Paraenses, e aqui, ali, receber leitores, amigos e amigas para a sessão de autógrafos do meu novo livro Igarapé Piscina. Tudo muito bem, tudo muito bom, gente da mais fina estampa, companheiros e companheiras da lida poética, e da arte da boa prosa por perto, mas... Estava numa cuíra! Ocorre que nos anos outros contados em que me lancei em sessões de apresentação dos meus livros, na Feira Pan-Amazônica, era dada como certa a presença de pessoas muito queridas que me acompanham ali, rente como pão quente, na coluna de sábado, no jornal. Leitores que ainda adotam o modelo clássico de tratar a crônica. Preferem sempre o meio impresso, recortam, colecionam, chegam a fazer molduras e detalhes na margem do papel para aqueles textos que mais admiram. Destacam e indicam para amigos e parentes, mandam recados para o autor, por email. Assim, do jeitinho mesmo que eu fazia com as publicações em jornais e revistas do Veríssimo, Sabino, Ubaldo, Scliar e tantos outros ídolos que admiro na escrita simples e ao mesmo tempo elaborada da crônica. Meu aperreio era que, a noite estava se adiantando e nada dos fãs históricos chegarem.

Houve então de a chuva dar aquela trégua providencial, o público adensou no Hangar e quando dei fé, Dona Walda despontou no corredor. Meu coração sossegou. Aquietou-se envolto a uma névoa doce de contentamento. Dona Walda é leitora de anos. É dito e certo que recebia a edição de sábado, do jornal, sem falta e no calmo da manhã, juntava-se ao amado Fernando para ler a crônica da semana. E não só isso. Interagia. Interpretava os causos contados, refletia, tecia críticas generosas, atinava e se lhe aprouvesse, fazia contato comigo para que eu explicasse melhor esta ou aquela passagem. Não por acaso, a foto que escolhi para que marcasse a passagem de Dona Walda pela minha noite de autógrafos, mostra nossa atenção ao livro aberto e denota a natureza dessa relação literária amiga que temos. Nos demos ali a bons e férteis comentários sobre o que líamos à vez.

Sou um cronista que me reconheço dentro dos meus limites. Sei também que por vezes salto fora deles e, di rocha, crio textos que a mim mesmo causam admiração por causa de algum evidente refinamento. Outras vezes, nem tanto, só o caldo da sustância, do respiro literário. Variando nesta senoide, oscilando nos meus máximos e mínimos, penso alcançar a simpatia de um time que, assim, na graça e na brincadeira conto, de forma simbólica, como uma onzena de leitores. Faltavam dez então.

Os portões do Hangar se fecharam e eu fui pra casa me perguntando se a chuva não jogou contra meu time.

No domingo, voltei ao Estande para repor os livros e traçar um papo matinal com visitantes. E eis que cedo do dia Dona Dora me faz uma super e agradável surpresa. Veio como em outras e tantas oportunidades, com a família. Percebo que faz questão da companhia deles, é como se estendesse o apreço que me tem às outras gerações. Me apresentou a todo mundo, atualizou opiniões e cenários que já fazem parte da nossa ligação literária. Fiquei muito feliz de ver Dona Dora e como sempre, assim, com a família. É um recado de união, de convivência segura. Fiz questão de saber como ela superou esses anos de dor e inquietação que se sobrepuseram impiedosos após 2017, ano em que lancei “Janeiros” e que nos vimos pela última vez. Folgamos em nos sabermos resistentes, sobreviventes, vitoriosos. Fizemos um registro. Eu, o Igarapé Piscina, Dona Dora e toda a família, juntos, como deve ser.

Daqui a pouco, tô pelo Estande dos Escritores Paraenses de novo.

Nos vemos por lá. Ah, ainda faltam nove, do time.

 

sábado, 9 de setembro de 2023

crônica da semana - espelho sem aço

 Espelho sem aço

Se minha avó estivesse vendo o Sílvio, um humorístico bandalho com o Zé Trindade, uma profanação das regras com a Dercy, mesmo uma trivialidade, na tarde calorenta de Belém e alguém passasse ou estacionasse a frente da TV, era logo que vinha o carão: “sai da frente, espelho sem aço”.

Isso acontecia naqueles anos de chumbo, solidão e incertezas quando, recém-chegados do Acre, ainda nos acostumávamos com as reações de minha avó ante uma invasão do seu precioso espaço.

E o espaço era a casa da Marquês, que nos abrigou naqueles primeiros dias, depois emendou numa prorrogação, nos viu ficar sem pai, e por fim, não houve escolha: varamos, os acreaninhos, um bom tempo a adensar a coletividade que habitava aquela parede- meia. No pico da convivência, deu a conta certa de 10 moradores. Já pensou? Era muita rede atada. Um só banheiro. Cumê pra essa gente toda, meu pai! Além da alta e grave probabilidade de alguém atravessar na frente da TV em hora de diversão da vovó. Que sufoco!

Nada que a solidariedade, a esperança de um numerário que viria da herança do papai e, sim, sim, o amor envolvido, não superassem.

Por onde se enxergasse, tirávamos os dias na paz. Mamãe arrumou uma marretagem e contribuía no que desse das vendas para o orçamento do conglomerado. Sem luxo, passamos os tempos. Sobrevivemos. Fomos todos pra escola. Consegui uma ‘vaga do governo’ na Aparecida e minhas irmãs se arranjaram todas no Josino. Antes, passamos pela pedagogia da palmatória na aula particular da professora Lurdes, que ficava defronte de casa e a gente não podia nem faltar. Desemburramos com ela. Ao entrar na Aparecida, já sabia boa parte da tabuada e recitava um Ivo viu a uva na maior intimidade com as fricativas.

Durou pouco a minha soberba. Quando a gramática subiu o nível, eu desci a ladeira me embolando com notas baixas. Minha valência é que ao pegado da professora Lurdes morava um rapaz muito considerado na rua, mais ainda depois de fazer jus à boina dos universitários. Foi assim naquele ano (não sei se era desse jeito em todos os certames vestibulares do período plúmbeo militar). Os calouros que raspavam a cabeça ganhavam uma boina.

Pois bem. Conheci, com o calouro de boina, as formas nominais do verbo e descobri que o particípio passado do verbo imprimir era ‘impresso’. O rapaz de boina com muita paciência incutiu na minha cabeça conceitos que guardo até hoje sobre aquelas temeridades do tipo oração coordenada, predicação verbal, partes do discurso e os vários porquês. Me ensejou a salvação quando eu estava na biqueira de uma repitota de série, por causa dessas armadilhazinhas da língua. Graças a ele, passei arrastado, mas passei com um cinquinho na recuperação e me livrei de uns carões da mamãe.

Durante um tempão, ainda cumprimentava o rapaz da boina quando o via pela Pedreira. Fazia com que lembrasse de mim, dava pistas: as casas geminadas, do outro lado da rua, o particípio passado. “Impresso”. Meu cinquinho na recuperação, meu tio. Quando falava do meu tio, ele tornava. “Ah, sim, sim, lembro!” Eram amigos.

Por agora, nas minhas caminhadas pela Marquês, tentando um ganho de oxigênio, uma aeróbica que me dê mais qualidade de vida, passei na frente da casa dele e vi uma placa de venda.

Não o vi mais pela Pedreira.

Reflito que sequer tive curiosidade de pesquisar o sentido da expressão ‘espelho sem aço’. Ou mesmo, como seria um espelho com aço. Aquele, sei o que resultava no comportamento de minha avó. Um carão. E este, com aço, lhe aprazeria? O rapaz da boina teve muita paciência comigo, porque, confesso, por um tempo sustentei que o particípio do verbo falar era ‘falo’. Houve superação desde aquele condomínio de 10 pessoas numa casa de barro geminada. Houve tolerância e, estou certo, uma ponta de amor.

A herança não veio.

sábado, 2 de setembro de 2023

Crônica da semana - No Acre faz frio

 No Acre faz frio

Bem a calhar os últimos vagares dos dias. Esses instantes de conversas frouxas, leves, de mesa de bar; de tiradas espontâneas pra preencher o tempo ou dar liga para dedicar um raminho meu às saudáveis relações sociais. Foi na prorrogação da sessão de autógrafos do meu livro, sábado próximo passado, quando uma turma animada quedou-se aos saberes muitos e prazeres tantos de uma cerveja bem geladinha, ali pelas penumbras da 25. Ainda no pique, com energia (e sede) pra completar a festa de lançamento do Igarapé Piscina, meu oitavo livro. Conversa vai, conversa vem, e como o Acre integra um dos tópicos das minhas narrativas, alguém me perguntou se eu tinha morado mesmo, de verdade, em todos os lugares que cito no livro. ‘Até no Acre?’ Acrescentou, com curiosidade inquieta, uma voz feminina ao extremo da mesa.

Eu mesmo me espantei com a resposta. Não. Ao contrário dos lugares que pautam a minha saga Amazônica, no Acre, nunca morei não. Sou nascido, não criado e em circunstância nenhuma, domiciliado. O que é uma pena. Gostaria. E penso até que por não ter vivido naquelas terras, de forma compensatória, o lugar anima a minha criação.

Exatamente porque tenho poucas experiências vividas na vera, é que muito do que escrevo sobre o Acre é invencionice, entra na conta da minha lavra ficcional. Houve um tempo que eu dizia ser o Acre a minha Macondo, forçando, sem que minha cara tremesse, uma incabível comparação com a cidade fantástica criada por García Márquez no romance “Cem anos de Solidão”. Com todos os perdões do consagrado escritor colombiano, até acho justa a minha apropriação do nome da cidade. No contexto e no frigir dos ovos, entendo ter um sentido. Se a gente for pros lados da ilusão, da fantasia, da literatura pautada no absurdo dos fatos, é que nem: A história de uma chuva de peixe que eu reconstitui nos escondidos do seringal São Miguel, a partir dos relatos da minha avó e, por outra, o risco luminoso de um tiro, rasgando o céu, disparado das margens do rio Ina, saído de um 22 com cano serrado, e indo atingir São Jorge Guerreiro na plena lua cheia, são causos que saíram da minha pena e migraram para o imaginário alheio como verdades inquestionáveis.

Deixa estar que, por outras e pavimentadas vias, o imaginário alheio se deixa ir também. Na mesma conversa de bar, logo surgiram as impressões imprecisas sobre o Acre. A existência do Acre como federado da nação foi logo colocada em destaque. Asseguro. O Acre existe sim como unidade federativa deste imenso Brasil. Ouros termos sobem à tona misturando alhos e bugalhos. Fuso horário é menos? Chico Mendes e Marina Silva são como siameses ambientalistas à luz do dito comum; e o garoto que desapareceu por cinco meses e que tinha umas pinturas esquisitas tomando todas as paredes do quarto reforça aquelas tendências aos mistérios.

O crível e certo é que o Acre se alinha a um contexto cruel de um país desigual. Geograficamente apartado, socialmente discriminado, ambientalmente atacado. Sazonalmente árido. O Acre se apruma como uma entidade física, administrativa, real. Com seus encantos, sua revolução e sua brasilidade. Estamos na luta nós, os exilados e outros tantos nativos a buscar rumos neste mundo de disputas.

A mim, nos causos, me apraz idealizar um Acre, um pai, minha vó Raimunda, meu vô Firmino, o chá da miração, a seiva rica escorrendo do pé de pau, os cachorros rompe-ferro e rompe-mato, as lavadeiras no baixo dos barrancos chapinhando nas águas rasas, minha mãe lançando olhares esperançosos para o horizonte comigo no colo... Porque deles sou tão vazio como os vagares dos dias.

Ah, não fui residente, tampouco domiciliado no Acre, mas sei que lá faz frio. E também que uma viagem de avião de Belém para Rio Branco demanda um dia inteiro. Demora que só.