sábado, 26 de abril de 2014

crônica da semana - pé de galho

Pé-de-galho, o mistério continua
Certa vez formamos contra os meninos da Passagem do Arame. Tinha um amigo que morava lá, o Lourival, que estudava na Aparecida comigo, e ele reservou um horário e o pneu número cinco para uma partida tira-cisma. Sabíamos que ali era a casa deles. Sabíamos que havia uma trinca de garotos malinos que nem jogavam, ficavam só arengando, triscando fogo ao largo. Eram figuras batidas nos porradais do Areal. Mas topamos a parada. O juiz era nosso. Um colega que morava atrás do Pará Clube e que naquele dia tava com uma bifede no peito do pé e não podia chutar. Pé-de-galho foi simplesmente decisivo neste jogo. Parecia que o pneu número cinco era maior que ele, mas quando ele dominava a bola e avançava, as perninhas junteiras destruíam a mais sólida defesa. Numa dessas, a bola sobrou e ele emendou de primeira. O goleiro deles rebateu, a bola fez um passeio um pouquinho além da linha do gol e lá na frente, ele defendeu de novo. Houve um instante de dúvida, mas no momento seguinte, nosso juiz correu pro meio e confirmou: a bola entrou. Foi gol.
Pra quê! A galera que estava fora e só queria um pé, partiu pra cima do nosso juiz. E foi só a conta do alvoroço para que os nossos adversários se multiplicassem furiosos e avançassem contra a gente. Não teve nem conversa. Saímos em desabalada carreira, varando pela passagem do Arame com medo da peia dos moleques malinos. Mas apesar do medo, Pé-de-galho gargalhava e gritava “gol”, “golaço”. E olha, pernas pra que te quero, nessa hora não tinha que dissesse que ele era junteiro.
Naquele tempo as rédeas politicamente corretas não eram puxadas e a molecada não atinava para as eiras das conveniências nem para as beiras da discrição. O apelido foi atribuído ao garoto por causa das pernas juntinhas. Uma conformação anatômica que aproximava bem os joelhos em ângulo obtuso divergente. A gente percebia a colisão nos joelhos mais quando ele estava de calça comprida, o que era raro. Mas sabe como é que é, né, teve um engraçadinho que sacou aquele conflito no andar e tascou o apelido. Não mais vi esse menino, desde quando, no final de mil novecentos e setenta e três, fui morar na casa 71 da Vila Mauriti. Mas ele ficou comigo, na minha memória, nas carreiras felizes de superação que ele dava atrás da bola pelos estirões da Visconde.
O Areal fazia parte de um complexo esportivo forjado pelo povo. Era uma área imensa, no final da Visconde de Inhaúma e fazia fronteira na porção Norte, com o irrevogável igarapé do Zé. No final de semana, parecia um formigueiro de tanto moleque fervilhando pelos quatro alastrados cantos. Limitando o Areal aqui para as bandas da Marquês, ficava o  campo do Asas do Brasil, palco dos disputadíssimos campeonatos de bairro.
A molecada se concentrava mesmo era no Areal, mas numa folga das competições da federação, a gente aproveitava e invadia o campo do Asas. Até grama ele tinha. Traves com redes e marcações do campo com cal (anos mais tarde, já pelo Internacional da Mauriti, joguei neste campo bacana em torneios algo solenes, com organização, tabela de jogos, súmulas, juízes de verdade e pés calçados com chuteiras).
Nestas paradas em que Pé-de-galho era protagonista, a gente jogava ali era no peito e na marra. Invadia, ocupava e resistia. O calibre da minha turma da Visconde era de molequinho ainda e os grandes, de vez em vez, davam uma forra e deixavam a gente fazer uma onda de pés descalços nos gramados.

Eu disse aqui, uns sábados atrás, que o Pé-de-galho, de vera, não existiu. Mas, ran ran ran! Enganei todo mundo. Pé-de-galho existiu sim.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

crônica remix - 45 bico largo

45 bico largo
Uma provação. Uma provocação...Fiz 45 anos, e agora?
Sinceramente, não estou preparado para uma idade tão emblemática. Ter 4 ponto 5 é dispor-se a enfrentar a idéia de que se está mais para o lado dos doirados 50 do que dos prateados 25 anos. É começar a contar o tempo em outra escala, não mais em anos. Agora a contagem é em séculos. Estou indo para meio século de existência. E isso é sério.
É barra essa história de ficar mais velho. Mas eu, é porque sou besta mesmo de revelar a idade. A maioria dos meus contemporâneos estacionou nos 40. E as pessoas nem maldam.
Eu, por mim, fico arrumando atenuantes, aferindo aqui e ali para ver como tá a pegada: na cabeça, arejada, moderninha, acho que tenho pouco mais de 30 anos; no coração, realmente, tá além, o bichinho tá meio maltratado e a coisa anda pelos 40 e poucos mesmo; ali, na marca do pênalti, sem mentira nenhuma, juro! Chuto uns 19 aninhos; nos joelhos, algo perto de 65 anos, muito pela cirurgia que me tirou um dos meniscos e também pelo peso, que apesar, de um regime forçado, nos últimos meses, ainda me está acima das posses; se for tirar pela altura, reflito pueris 12 anos, a idade do meu filho que já está do meu tamanho. Tirando um pelo outro, como diria minha mãe, dá uma média de 33 anos.
Não é nada, não é nada, mas dá aí pra ir convivendo com esta fantasia.
Cartola, numa das pérolas da música brasileira disse que de cada amor herdaremos somente o cinismo. Creio que o cinismo, também, é o legado que ganhamos com o passar dos anos. Além, é claro, de algumas abstinências, dores adicionais nas juntas e a vista cada vez mais curta.
E isso é dito e certo. Só pra ilustrar, no dia do meu aniversário, dos convidados, todos ali na parelha comigo em termos de longevidade, nenhum consumiu bebida alcoólica. Não rolou uma gelada sequer. Quando ventilamos a possibilidade de mandar trazer umas duas ali da esquina, para um brinde, foi mais quem deu pra trás alegando uma restrição de estômago aqui, uma alergia ali, uma pequena cirurgia acolá. Se meu médico souber, me engole, disse um que tava tomando antidepressivo. Um outro cuidadoso disse que estava dirigindo e...
Mau sinal. Esta situação impensada, até pouco tempo, só me abona a idéia de recorrer ao Cartola e ao cinismo como uma saída para eventuais constrangimentos.
Algo de bom, porém, deve nos apresentar a vida, para nos redimir dos pecados amealhados pela idade, para nos mostrar que a fase não parece uma coisa bizarra como um sapato 45 bico largo. Não.
O aprendizado, acho que é o nosso troféu. Com o tempo passamos a entender mais as coisas. Por exemplo: a libido para mim, deixou de me perturbar como um intrigante caso em que o artigo no feminino se aboleta com o substantivo no masculino, resultando numa das mais salientes silepses de gênero já registradas na língua portuguesa. A libido para mim, passou a ser simplesmente uma conquista diária. Incontestável e irrevogável.
Agora estou mais atento mesmo é às questões de gênero. Arraigadamente atento. Às favas as silepses.

Mas, bom mesmo, foi no dia do nevessário. Abracei os meus colegas da Universidade, almocei camarão rosa na casa da Engenheira Paula Fernanda, ganhei dois livros porretas num sorteio da rádio, encontrei a futura bióloga Rutinha (um exemplar raro da morenice barcarenense, mas que ainda tá me devendo uma pesquisa sobre aquela árvore lindona que tem no caminho da Federal), que há muito eu não via, e apaguei 45 velinhas ao cair da noite, cercado das pessoas que amo, e que por certo, me amam também...Com a casa decorada por singelos balões amarelos. 

sábado, 19 de abril de 2014

crônica da semana - Argos

Argos
Na época eu já era algo enxerido pra escrever, e me assanhei, me apresentei, no restaurante, como um cara que estava a fim de compor uma história esquecida no tempo.
A minha passagem por Rio Branco, foi cheia de surpresas. De prima, me assustei com minha destreza. Me larguei do aeroporto parecendo um nativo. Atravessei a ponte, chaguei ao centro, tracei roteiros. Tudo de ônibus. Muito achado, eu me achava.
Estava de passagem na capital, indo pra Xapuri. Desde minha saída, ainda bebê, do Acre, aquela era a maior chance de conhecer melhor minhas raízes. Já havia ido uma outra vez, mas fui de gandaia, aproveitando uma folga de fim de semana, no tempo que eu  trabalhava em Rondônia e pouco me bandeei às questões atávicas. Fui com uma turma da mineração, animadíssima, e os apelos etílicos e os souvenires comprados na fronteira com a Bolívia foram atrativos bem mais sedutores que o reviver de histórias da vida passada nas brenhas do seringal.
A fome bateu. Parei num restaurante pra um cumê provedor. Arrematei a refeição com uma sobremesa docinha pra dar sustância, um tanto de energia e fiquei por ali fazendo hora com uma cerveja até chegar a vontade de marchar.
Aí me apareceu a segunda agradável surpresa. Na mesa ao lado, um rapaz traçava um papo com o dono do restaurante. A conversa da hora era o muro de Berlim, que naqueles instantes históricos, estava vindo abaixo. Prestei atenção, dei uns pitacos. Rolou a empatia. Mudei minha cerveja para a mesa do companheiro e continuamos a conversa em outros e variados temas.
Tinha um jeito despojado. Reparei na sandália que ele usava, que, para mim, me pareceu confeccionada com pneu de carro. Cabelo desgrenhado encaracolado, barba abundante e mal cuidada. Era professor respeitado da Universidade do Acre. Intelectual. Formador de opinião. Uma pessoa doce, generosa e companheira. A ele foi que falei que estaria ali para escrever a minha história pedida pelas ruas de seringa.
Muito solicito, disse já ter ouvido falar dos Sodreres do Xapuri, me orientou como chegar à cidade e depois de umas cervejas e muitas idéias em comum, se ofereceu para me levar até a rodoviária. Antes da viagem, me levou para conhecer a “Casa do Seringueiro”, prédios históricos, praças, os pontos de movimento e diversão.
Para chegar à rodoviária, poderíamos fazer o trajeto normal, mas segundo ele, não havia sentimento neste itinerário. Cortamos o bairro central, a pé, margeamos um pontal com casas na beira d’ água, pegamos uma canoa e atravessamos o rio Acre até a outra margem (entendi, por esta aventura, o que ele queria dizer com ‘sentimento’. Tempos depois, quando escrevi sobre esta tarde em companhia do professor Reginaldo, dei o nome de Argos à canoa que nos atravessou. Fez parte da minha narrativa, abstrair aquela passagem como sendo a saga de Jasão, afinal, não estava eu atrás do velocino, da prenda e do argumento para minha reentronização no reino do látex?).
Aquela tarde em Rio Branco me apresentou uma alma muito dada, muito digna. O professor foi um amigo de altíssimo quilate, mesmo me conhecendo um issozinho assim no ensejo de uma opinião sobre a queda do muro de Berlim. Nosso contato fugaz me fez perceber que somos amazônidas muito iguais (ele me mostrava aquela batidinha de ‘tudo índio’ que temos, pelas ruas de Rio Branco) e isso me fez entender a unidade ativada pelo convívio com esta densa rede de rios, com estas ricas florestas. A tez amazônica nos horizontaliza a personalidade e nos faz irmãos. Anos depois me vem a certeza de que histórias ternas e de gentes doutas e  boas como Reginaldo Castela devem ser contadas.


quarta-feira, 16 de abril de 2014

crônica remix - cometa

Caça ao Cometa
Tem um no céu. E cometa a gente sabe como é, né. Uma eternidade pra aparecer de novo. Provavelmente a gente não vai viver para reencontrar o astro. Então, façamos um esforço.
Chama-se Lulin. Por agora, dá o ar de sua graça no início da madrugada, e até o final do mês, pode ser encontrado em Virgem. Em março, vai charlar, durante boa parte da noite, junto à constelação de Leão.
Aqui na faixa equatorial, sob forte influência da Zona de Convergência Intertropical, temos que rebolar pra localizar o bichinho. Vivemos mergulhados em céu plúmbeo, tomado de cumulunimbus pelos quatro cantos. Por dias e dias é difícil de ver a luz da estrela mais fúlgida e até o escandaloso brilho de Vênus, que dirá um pontinho embaçado com um rabicho de acanhado esplendor (os especialistas dizem que podemos ver Lulin com um binóculo ou com uma luneta simplesinha, mas a olho nu, temos que recorrer a um lugar com a mínima iluminação incidente, ou seja, um escurinho possível somente no ‘interlan’, às margens de um rio grande e silencioso – Ah, que saudade do Xingu!).
A quem interessar possa, vamos lá: a partir de agora a gente pode fixar um ponto qualquer no leste. Em Belém, o leste é aquela região entre a Terra Firme e o Guamá; para quem está em Barcarena, procure o olhar dadivoso de Nossa Senhora do Tempo e aqui na Vila dos Cabanos, é no rumo do Laranjal. Vou ser sincero. Tenho dificuldades para reconhecer a constelação de Leão, mas a de Virgem (embora alguns duvidem) é fácil. A partir do anoitecer (ali praqueles lados que falei, não podemos esquecer), quando aparecer no horizonte, uma estrela brilhante, bem mais brilhante que as vizinhas, estamos diante da constelação de Virgem. A estrela chama-se Spica que vem de espiga, de milho mesmo, e é um legado da Antiguidade para identificar o tempo de colheitas e farturas. As previsões dizem que no final de fevereiro, Lulin estará luzindo por estas paragens. Boa sorte. Eu por mim, já vou ‘atrepar’ no meu abacateiro munido com a minha humilde luneta, à caça do cometa.
Um outro evento muito interessante que acontece agora, e cada vez mais e mais comprometido socialmente, é o equinócio. Ele se aproxima. Para nós, as consequências deste arranjo astronômico são várias. Uma delas, que resulta da conjunção de fatores relativos ao deslocamento aparente do sol, é esse tempo chuvoso que vivemos e vamos viver até meados de maio. Uma outra e bem mais pertinente a nosostros ribeirinhos, é a subida da maré. Entramos agora, no tempo das águas grandes. Estava vendo aqui na tábua de maré deste mês, que a maré começou a se assanhar agora no plenilúnio. Então, na lua nova, do dia 24, quem costuma curtir o carnaval deixando o carro nas areias de Atalaia, fique ‘velhaco’, a caranga pode submergir. Para as mães, mais cuidado ainda. Lembremos sempre que em Salinas, a ‘praia enche pelas beiradas’.
A maré maior, mesmo, aquela que dá a Pororoca e alaga as Casas Pernambucanas, acontece só em março. Todos os anos, admiro a subida das águas lá em Itupanema. Este ano, porém, vou mudar de estação.  Desde agora, vou acompanhar o movimento na Vila do Conde. O lugar tem sido vitimado por vários e assustadores agravos naturais (e muitos outros ‘sobrenaturais’), nestes últimos anos e merece um certo zelo. No ano passado, parte do terreno que desenha a orla desabou. Houve vítimas, prejuízos e dor (não posso dizer que foi por causa das altas marés, outros fatores estão presentes para a baixa resistência das falésias, mas, prevenir nunca é demais). 

Tenho fé, no entanto, que as grandes marés, este ano, vão nos dar apenas as boas águas.

sábado, 12 de abril de 2014

crônica da semana - Golpe beiçudo

Golpe beiçudo
Golpe pra mim, até uma certa idade, sempre foi um talho no pé que se abria em beiços salientes e se sumia pra dentro do calcanhar em carne viva. Invariavelmente, era tratado aplicando-se uma tira retirada de algum trapo à mão, um polvilhado de sulfa, um nó apertado para estancar o sangramento e um cachingamento previdente na ponta dos pés para não magoar a ferida. Para ser um golpe de verdade, com todas as propriedades golpistas tinha ainda que ter como agente causador, um afiado e escondidinho caco de vidro, normalmente à espera de um pé-de-moleque, próximo à linha de fundo de um campinho doméstico ou nos gramados da Duque. Neste caso, do canteiro da Duque, fora dolosamente deixado por lá, por um daqueles sacaninhas insatisfeitos que empastelavam a pelada e jogavam vidro. No caso doméstico não havia dolo não. Era um lixinho do lar esquecido desde a última limpeza no quintal.
Depois, mais taludo, a palavra ‘golpe’ passou a ter uma conotação bem mais dolorida que uma brecha pustemada no pé. Mas não foi assim, tipo zap-zap não.
Quando meus amigos começaram a desvendar as malinagens que os militares estavam fazendo, no poder, eu ali na calçada daquela sorveteria, na estrela, dois cantos após a Escola Técnica, fiquei perplexo. Um tantão assim desnorteado. Não era fã dos militares, mas também não tinha bronca deles. Até admirava o pessoal da farda. Apreciava o garbo, a altivez; atinava para o ar soberano dos pelotões nos desfiles militares. As referências que tinha, inclusive experimentadas na família, é que eram pessoas de caráter inatacável, de índole rebuscada. Lembro que tínhamos um amigo que era PM. Ele nos visitava. Portava sempre um tresoitão. Inspirava respeito. Pisava forte com o par de coturnos sobre o assoalho que se estirava pelo corredor, quando ia tomar um cafezinho lá na cozinha de casa. Lembro. Vez por outra sumia. Depois, muito depois, liguei as conversas que ele traçava conosco, nas suas reaparições, com a guerrilha do Araguaia: viajava para as campanhas.
As histórias que os meninos contavam ali na calçada da sorveteria ajudavam a montar alguns cenários. Fui tomando tento, deixando de ser um moleque alienado por aqueles dias em que a gente se juntava depois da aula e ficava até altas horas da noite trocando experiências, construindo amizades, refazendo destinos, gastando nosso dinheiro da passagem de ônibus em picolés; e depois indo na pátria amada pra casa sob a luz das estrelas, deixando para trás a Estrela, rua que margeava a Escola Técnica, se estendia pros arrabaldes e vinha me deixar na Pedreira.
Éramos uma turma de amigos que mais tarde entenderíamos porque um golpe beiçudo no pé era menos penoso, menos remoso, menos desditoso que todo aquele engalanado pelotão militar que governava o Brasil.
Houve de fazermos uma grande passeata em favor da meia-passagem já no início de uma nova era, a incompreendida fase oitentista. Mas o pau ainda comeu feio na Avenida Nazaré. Uns quantos caminhões ‘tormara-que-chova’ enfileiraram-se ao longo da rua despejando levas de soldados furiosos. No corre-corre, meu amigo de repente parou no meio da rua e apontou corajosamente contra um contingente denso que se aproximava: “desgraçados, desgraçados! A lei de Deus há de pairar sobre vossas cabeças!”. Não mais o vi. No meio da confusão, peguei um transpesco e desabei sobre um caco de vidro. Fiquei assustado quando levantei. Estava com a bata da Escola Técnica. Saquei uma tira da bainha e amarrei minha mão com força para estancar o sangue. Na palma da mão, uma teba d’uma brecha me esclarecia de vez o sentido da palavra ‘golpe’.



sábado, 5 de abril de 2014

crônica da semana - cruzeiros

Cruzeiros Novos
O dia 31 de Março é uma data marcante para o país, mas para mim, tem uma carga um tanto além. Foi o dia em que perdi meu pai. Há tanto tempo. Contados 45 anos. Na segunda-feira, durante o jantar, juntei meus meninos, engasguei a voz um pouquinho, as mãos tremelicaram de leve, os olhos ensaiaram marejar: anunciei a dor que sentia pelo aniversário de morte de meu papaizinho. A reação dos pequenos foi natural, perfeitamente coerente. Desconversaram e desfizeram o clima mostrando-se surpresos pela minha sensibilidade fora do tempo. Pelos anos passados, disseram eles, já era pra eu ter desopilado desse sofrimento.
A verdade, é que dou, realmente uma valorizada, fantasio. Crio um pesar, até sincero mas, convenhamos, descabido. No entanto, de jeito e de termo, ainda sinto um vazio dentro de mim, confesso.
O aperreio me sacoleja lá por dentro, acho que mais porque nada, absolutamente nada tenho que lembre meu pai. Pra não dizer que nada há, tenho comigo um quadro, uma daquelas reproduções de fotografia, muito mal retocada, em fundo azul desbotado, que retrata meu pai e minha mãe no dia do casamento. Esta ausência de uma relíquia mais aquela de substância ou afeto me leva à invenção, me induz a forjar temas e circunstâncias. Muito do que falo sobre meu pai é prosa criada, ficção. Uma produção alentadora elaborada para me preencher o coração, para me acudir dos tormentos atávicos.
Um socorro, se não de provisões, me vem das impressões. E que bom, porque essas, sim, ficam tatuadas na memória. Minimamente, mas muito confortavelmente, tenho lá no fundo do meu cocuruto o registro, embora sombreado, da voz de meu pai. E em recortes muito particulares.
Penso que se realizaram na minha mente, não nas lonjuras do Acre, porque de lá, além da friagem, não guardo nada. Mas sim, em uma das vindas do meu pai a Belém, para visitar a família, por aqui, já estabelecida.
O que me está envolto nesta espessa bruma de recordações que tenho é um notável enlevo no jeito de falar. Devia ocorrer assim, quando ele chegava dos ermos da floresta, dos comboios, das grandes jornadas. Alguém perguntava das andanças. Ele impostava a voz e desandava em trinados altivos, solenes. Da mesma forma, o mosaico da memória se reconstrói na sonoridade de suas vindas a Belém. Com certeza, minha avó, minhas tias, mamãe lhe buscavam detalhes da viagem. E o eco do tempo se faz em entonações elegantes, perfeitamente modeladas, na expressão “Cruzeiro do Sul”. Era aquela soberba dicção, confirmando a companhia aérea que viajara. Redesenho a opulência de meu pai na hora em que declamava os termos “Cruzeiro do Sul” e conjecturo, naquela hora, um seringueiro das brenhas falando como um homem rico, engalanado, referindo-se a empresa aérea como se fosse a própria constelação.
Outra locução idealizada é aquela que se refere aos negócios, aos embates nas transações com a borracha. Diria, o meu seringueiro, ainda aos seus ouvintes curiosos, demonstrando entusiasmo com o conhecimento que tinha da dinâmica monetária do país, que agora as operações pecuniárias eram todas realizadas em “Cruzeiros Novos”. Uma pirotecnia multicor invade meus espaços mais silenciosos, quando recrio, hoje, a cena de meu pai sentenciando: “fazemos negócios em Cruzeiros Novos”. E a tal bruma nem se faz tão densa. O céu se mostra azul, a transparência do tempo reduz distâncias e a cadência condoreira, o ritmo sedutor no falar daquele seringueiro que mal sabia as quatro operações, nos põe frente a frente, eu e meu papaizinho. E nem parece que 45 anos se passaram de cá à época dos Cruzeiros Novos. 

terça-feira, 1 de abril de 2014

crônica remix- onde o filho chora

Onde o filho chora e o pai não ouve
Aqui estou eu, na frente do computador neste domingo de sol que antecede o dia dos pais. Lá fora, o mundo girando. As vans lotadas para o Caripi transportando ansiedades e disposições no colorido da manhã. No caminho, uns contratempos: mau humor, apertos e o desconforto. Mas também, tecnô. Muito tecnô para aliviar a dor.
Pelos quintais, churrasqueiras fumegantes aquecendo reuniõezinhas semanais. Sob a claridade da manhã, inofensiva tesouragem e uma gelada no jeito, porque ninguém é de ferro.
E eu, ah, eu aqui, na frente deste computador, me aperreando com saudade de pai...
Agora por essa época, na biqueira do dia dos pais, tô assim, ó, de banzo.
Um não sei quê amargoso me consome, uma agonia malcriada me persegue...Uma invencível sensação de abandono me deixa atarantado, atado ao inquebrantável fio da solidão...Ai, ai, ai chega me dá um aperto aqui no peito.
Meu pai morreu quando eu tinha 5 anos. Para mim, pouca coisa ficou da presença de um pai. Eu era um bebê quando ele partiu e isso explica a pouca lembrança. Trago na memória somente alguns lances surreais (como aquele em que o meu herói me salvou cavucando meu nariz com um grampo para retirar um caroço de feijão que eu havia colocado ali numa brincadeira perigosa com os outros meninos. Saiu sangue e doeu bastante, mas logo passou porque meu papai estava ali, para me acudir).
O mais que sei, me chegou pelas prosas saudosas de minha mãe. Sei que meu pai era seringueiro lá pelas terras acreanas (e me ocorre agora, a lembrança da barba rala, mal feita, do meu pai. É uma lembrança meio indefinida, mas que resiste ao tempo: o meu pai chegando nos comboios, vindo lá das entranhas da selva e procurando os filhos para carinhar daquele jeito que ele fazia: abraçando, roçando a barba na gente, fazendo ‘cosquinha’. E a gente se arrepiando, tecendo manhas, se aninhando nele. Procurando abrigo, conforto no colo aquecido, suado, do homem da floresta).
Sei também que, com um metro e cinqüenta e um de altura, não puxei pra ele. Aliás, nenhum dos filhos herdou a altura do meu pai, que era, segundo as insuspeitas declarações da minha mãe, “um pedaço de moreno”.
Mas o que eu sei mesmo, é que tenho muito orgulho do meu pai. Sinto-me envaidecido por ter sido gerado por um homem que ralou pra caramba socado nas matas, atrás do látex. Um homem que enfrentou as mais impensadas adversidades impostas pela selva em busca de dias melhores. Um homem que na sua simplicidade venceu tantos obstáculos e procurou sempre ser feliz e levar felicidade aos outros.
A vida vinga lá fora, e cá estou, pegado no computador, neste domingo de sol, 5 de agosto, dia da independência do Acre, escrevendo a saudade do meu herói.
Perdi meu pai há um tempão e, confesso, agora, já na quebrada dos quarenta ainda sofro um bocado, pela falta de pai.
Não é fácil passar por situações em que a gente precisa de carinho ou de segurança, e não encontra mais o colo do seringueiro para se aninhar; é frustrante encarar circunstâncias em que a gente não pode se defender com aquela definitiva frase “vou chamar o meu pai” (e quantas e quantas vezes eu quis dizer esta frase, e não pude, aliás, acho que ontem mesmo).
Entendo que o pai tem a nobre missão de atender ao chamado do filho quando ele pede por abrigo, por carinho, ou mesmo quando o clima esquenta como naqueles desconcertantes conflitos infantis. Mas insubmissas histórias e destinos ingovernáveis nos levam a uma realidade onde o filho chora (como agora, enquanto escrevo estas sinceras linhas), mas o pai não ouve.