segunda-feira, 27 de março de 2017

crônica da semana - A chuva de peixe

A chuva de peixe
Aquela era uma tarde tranquila do mês de Outubro, em Xapuri. Os seringueiros passavam em comboios procurando bons negócios para as pelas de borracha. Na Rua da Gaveta, as crianças brincavam soltas e corriam alegres. Ao pé da janela, vovó Marieta cerzia na moderna Vigorelli, uns panos de prato. Tudo na santa paz, a não ser aquela nuvem vindo-que-vindo. (depois do caso passado, minha avó reconheceria que havia sim, algo de estranho no ar: “lá pras bandas do campo de aviação, o céu era de um negrume só. Por cima da mata, o arco-íris tomava o céu de fora a fora, e no horizonte, uma luz fraquinha amarelava a tarde”. Tem também o relato de um comboieiro que naquela hora ao atravessar o Ina, percebeu o igarapé estranhamente mais raso, a correnteza pouca e um rumorejo veloz a animar as árvores da margem).
Quando o pampeiro arriou, o povo já se tinha aquietado dentro de casa, as crianças já estavam agasalhadas com os casaquinhos de lã e meias nos pés, e as lamparinas já estavam estrategicamente distribuídas pelos quatro cantos.
Os raios riscavam o céu um após outro. O estrondo dos trovões fazia balançar as casas e um mundo de água formava rios pelas ruas da cidade. Minha avó juntou as cianças em torno de si e rezou em voz alta para todos os santos, para que os guardassem.
De repente, o mais forte dos trovões soou ensurdecedor. E um clarão se abriu no céu, revelando o inacreditável...
O estatelar pesado no telhado, o deslizar truncado, e o estrebuchar sólido no chão, chamaram a atenção de minha avó. “ Meu Deus, o que é isso?” Vovó ajuntou as crianças num canto do quarto e num repente de coragem, abriu a janela pra ver. Era fantástico! Desesperou-se com o que viu e mais que depressa se danou a gritar pela comadre: “Joana, Joana, me acode, mulher, tá chovendo peixe! Tá chovendo peixe!”.
Apavorada, pegou os pequenos e atravessou o terreiro sob a chuva de piabas que caíam do céu, aos montes. Foi bater na casa da comadre Joana. (o que se conta até hoje, na cidade, é que na hora do grande trovão, a barriga do arco-íris se rompeu e as piabas que ele havia tragado do leito do Ina, naquela tarde, desceram como chuva, de volta à terra.
A vizinha, já acostumada com as coisas estranhas que aconteciam naquele lugar, acalmou a minha avó, que nascida em Belém, acompanhou o marido que foi fazer a vida lá pras bandas do Acre. “Que coisa esquisita, estranha, impressionante mesmo”, resmungava ela para a impassível comadre Joana.
Minha avó ficou por lá, sob a segurança da comadre, até que as últimas piabas ainda despencavam sobre as casas, árvores e postes de luz. Caíam num fio de água, serpenteavam nas valetas, varavam na rua Coronel Brandão e, de lá, eram levadas pela correnteza de volta ao rio.
Anos depois, nas tardes quentes de Belém, sentada na cadeira de embalo, minha avó repetia esta história pra gente, uma platéia de olhos arregalados e atentos, com tal seriedade e convicção, que não suscitava uma duvidazinha sequer. Nos olhávamos sem dar um pio. Égua, chega dava um arrepio na gente.


sábado, 18 de março de 2017

crônica da semana - 5S

Cada qual com o seu cada qual
De tantas disparatadas passagens narradas no romance “Cem anos de solidão”, o momento em que a aldeia é submetida ao mal da insônia é aquele que dou reparo especial.
A doença começa pela falta de sono e evolui para o esquecimento. A memória dos habitantes vai definhando, desaparecendo.
A população reage de uma maneira bem prática. Primeiro, escrevendo o nome do objeto. Depois, eles passam também a descrever para que serve aquele objeto. A seguir, ainda somam a origem, modo de fabricação, quantidades existentes, et cetera. É nesta parte da história que dou reparo especial, porque relaciono esta prática de etiquetagem e a um programa que conheci aí, nas minhas lidas de operário.
O programa se chama 5S, porque é formado por cinco palavras em japonês que começam com a letra “s”. Trata-se de uma técnica criada no Japão, que reúne algumas disciplinas com a finalidade de, obviamente como estamos falando do mundo dos negócios, aumentar os lucros. É baseado na otimização de tempo, valorização de equipamentos, limpeza e racionalidade nas ações. Nas empresas é ferramenta exigida como meta dos trabalhadores e tratada como profissão de fé.
A gente que está neste meio, se adapta a este novo trato. E, naturalmente, importa para casa algumas das práticas. Um “s” que batalho para que a gente faça uso em casa, é o segundo, que em japonês se conhece por ‘seiton’ e que significa ordem, organização. É aquele senso que prega que cada coisa tem que estar no seu devido lugar. Quando venho com esta conversa aqui em casa, a galera cai de pau. Diz que o trabalho tá me pondo doido, que isso aqui não é empresa e que coisa e loisa e mariposa. Desisto. Mas quando passo meia hora pra achar a chave do portão ou quando vasculho mundos e fundos atrás do maldito carregador de celular, volto à carga. Me animo na luta. Não significa sucumbir a todas as vilanias do capitalismo a gente admitir que, ter um lugar certo para guardar as coisas, e na hora que precisar ter sempre o que necessita à mão, pode ser até uma conduta que elimina muito estresse. Tenho aqui um texto impresso que se eu soubesse por onde diabos de piriricas de buraco soquei meus óculos, citaria uma pesquisa interessante sobre o caso. Mas não sei por onde andam meus olhos. Fica pra próxima.
Não vamos ao extremo também. Este mesmo “s” inspira ações como a de José Arcádio Buendía nos disparates comuns encontrados em “Cem anos de solidão”. Se não domarmos o senso, vamos sair etiquetando tudo em quanto. Nem tanto, né.
Perco a batalha em casa, pela implantação do 5S, quando o tema é ‘seiri’, o primeiro “s” (hã hã, por isso não comecei por ele). É aquele que determina que a gente só pode guardar, ou ter perto, aquilo que é útil e necessário. Neste aspecto sou indisciplinado pacas. Tenho coisas do arco da velha e que precisariam de etiqueta para lhes dar finalidade, porque nem para que servem, sei mais. Mas não jogo fora nunca. Minha mulher fica na ira para aplicar este “s” em mim, de com força, mas aí digo que aqui não é uma empresa e que não vamos pirar por causa dessas invencionices dos japoneses.
 

sábado, 11 de março de 2017

crônica da semana - o rato roendo

O rato roendo meu dedão do pé
Reza a lenda que, na biqueira de formular a teoria da Relatividade, e ainda envolto em dúvidas atrozes para definir um pensamento científico revolucionário, durante uma cochilada rápida, Einsten sentiu uma chamegamento no dedão do pé. Um roc roc até gostosinho, simpático, relaxante. Diz-se que, durante a soneca, um ratinho encantado veio roer-lhe as dúvidas e ao acordar, o cientista, já estava com a teoria consumada, batida e arrematada, no cocuruto.
Pode até ser uma invencionice, esta história do ratinho roendo o dedão do gênio, destarte, intenta um proseado curioso para ilustrar o momento único da criação. Mas tem um sentido. Este alheamento, este sumiço do físico e palpável, provocado pelo sono, certamente, dá espaço para a transcendência, para a abstração. O espírito voa em sonhos. E o ratinho vem nos inculcar decifrações, revelações.
Acho que todo mundo já passou por situações parecidas. Um trabalho urgente que não sai, mas que depois de uma horinha de sono, de repente se concretiza. Uma tarefa de escola complicada, que não se esclarece de jeito e maneira, e que, no dia seguinte, no abrir dos olhos, abre-se límpida e inquestionável no pensamento. Um encalacre doméstico sem solução, porque envolve vaidades, grana, posturas vãs, transformado em rio navegável, contornável, possível de ser negociado, após a calma de uma noite de sumiço geral, de apagão. Sabe o que é isso? O ratinho, aquele mesmo do físico alemão.
Este conhecimento, no entanto, é fugaz. Se não for trabalhado no mesmo instante, se a gente não anotar, se não houver registro seguro, impressão e certeza, arrisca fugir de novo. Cair no limbo. É o que acontece comigo quando escrevo, em sonho, meus escritinhos aqui na coluna.
O ratinho vem roer meu dedão, como sem falta, todo dia, na viagem para o trabalho.
É bem cedinho, o caminho é longo, o ônibus que nos leva oferece um certo conforto, recosto a cabeça na almofada da poltrona, fecho os olhos e o ratinho vem.Nem tão prodigioso como o do Einsten, mas marca sempre a presença. Do dia, é o meu período mais fértil. No relaxado do roc roc no dedão do pé, por vezes, elaboro uma crônica inteirinha, durante essa meia horinha de viagem. E toda arrumadinha, com recortes de humor, com pesquisa, uma pitada de lirismo. Justa e encorpada. Sem presunção, o melhor da minha criação literária surge nessa hora do ratinho.
Por vezes, faço duas crônicas, um poema e descrevo a paisagem que imagino estar passando ao largo (porque estou de olhos fechados na antecâmara do sono, do jeito que o ratinho gosta), tudo ao mesmo tempo, em ambientes textuais diferentes.
Este desenvolvimento, no entanto, é um lampejo. Assim que Einstein tornou daquele sono, foi ao bloquinho e rabiscou a essência da teoria, reza a lenda.
Não tenho o costume de andar por aí com um bloquinho de anotações e nem a memória guarda os recados que o roc roc abrandado do ratinho em meu dedão, me entrega. Tão logo o ônibus chega, me despeja à realidade do dia, e minha bota com biqueira de aço toca o chão, tudo se esvai em brumadas lembranças.
 

sábado, 4 de março de 2017

crônica da semana- pandegolândia

Meu reininho da Pandegolândia
Éraste! O pobre é ralado. Um ser adversativo. Sempre tem o feixe ‘mas, porém, contudo, entretanto, todavia’ compacto se emboletando na vida dele.
O camarada tem uma semana por acolá de estressante, no trabalho e nas artes? Tem. Tem um alívio quando tudo termina bem? Tem. Pra completar tem um feriadão de carnaval que não acaba mais? Ora, se tem. Mas não esqueçamos: o pobre é ralado. Na batida da campa da sexta-feira ele gripa.
E uma gripe estranha. No meu caso, que sou amamãezado, uma exposição repentina à umidade noturna, a mais doce brisa do terral, uma lufada de respingos da chuva da tarde, já me são o princípio do fim do mundo de coriza e febres por dentro altíssimas, avalie uma gripe estranha com dor de garganta e quebradeira no corpo. Como dizia minha mãe: “chama o carro, chama o carro, que o homi tá mal”.
O que torna é que minha patota ganhou o mundo no sábado gordo e eu fiquei sozinho em casa, dizque, me recuperando.
E até que me recuperei rápido. Na verdade eu estava era cansado pacas. Uma preguiça imensa. Vontade de dormir para sempre. Dei o desdobro para não viajar. A idade, Esse menino, a idade me cobrando quietudes.
Não estranho a solidão, mesmo que seja batendo de frente com a euforia do carnaval. Houve uma época, nos ermos das minerações por onde passei, que meu carnaval era acompanhando o Chacrinha (e em programas gravados). No frigir dos ovos, tô é bem na foto em Belém. Na cidade das mangueiras, na Pedreira, do samba e do amor, com intenções e possibilidades, ali, na biqueira de se concretizarem. Se quiser vou batucar por aí, arriscar uns passinhos atrás do Mangal dos Urubus, concentrar, Irrecuperável,  no Boiúna do Mário. Ver o Piratas passar ali na esquina. Vai de mim. Mas não vou.
A mim, me apraz curtir essa liberdade doméstica alcançada pela sedutora solidão. Ninguém pra concorrer comigo na Netflix. As toalhas dispostas à mão, na tentação de eu pegar qualquer uma sem que o dono me ralhe: “ei, essa toalha é minha!”. E eu peguei qualquer uma. Meu sonho! E peguei mesmo qualquer uma rá rá rá. Isso não tem preço. Carnes, verduras e legumes na geladeira e opto, sem remorsos, pelo macarrãozinho com ovo. Maravilha! Missão sagrada: a comida da gata, esta não pode falhar. Mas no resto, me entrego às leis que não regulam nadica de nada no meu reininho solitário da pandegolândia. A pia, por acolá de louça, e ainda falta água. Pai d’égua, um álibi.
Cerveja a dar na canela só pra mim. Mas de álcool, nadinha. A missão é recuperar. Um suco de acerola pra dar aquele reforço na vitamina C e anoitece.
Nem tinha dado ibope pro celular. Vou ao zap e vejo lá, fotos da família se divertindo. Lá pelas tantas, uma mensagem chega, perguntando se estou melhor. Gravo um áudio: Vou navegando.

No dia seguinte, todo mundo de volta. Reclamações sobre o lixo que não pus fora, sobre o computador que não desliguei, e porque não troquei de roupa. Tava sentindo falta disso. Tusso violentamente, espirro espirros vulcânicos. Caio prostrado. Peço que alguém me faça um chazinho. E sigo, navegando, curtindo uma febrinha por dentro.