A chuva de peixe
Aquela era uma tarde tranquila do mês de
Outubro, em Xapuri. Os seringueiros passavam em comboios procurando bons
negócios para as pelas de borracha. Na Rua da Gaveta, as crianças brincavam
soltas e corriam alegres. Ao pé da janela, vovó Marieta cerzia na moderna
Vigorelli, uns panos de prato. Tudo na santa paz, a não ser aquela nuvem
vindo-que-vindo. (depois do caso passado, minha avó reconheceria que havia sim,
algo de estranho no ar: “lá pras bandas do campo de aviação, o céu era de um negrume
só. Por cima da mata, o arco-íris tomava o céu de fora a fora, e no horizonte,
uma luz fraquinha amarelava a tarde”. Tem também o relato de um comboieiro que
naquela hora ao atravessar o Ina, percebeu o igarapé estranhamente mais raso, a
correnteza pouca e um rumorejo veloz a animar as árvores da margem).
Quando o pampeiro arriou, o povo já se tinha
aquietado dentro de casa, as crianças já estavam agasalhadas com os casaquinhos
de lã e meias nos pés, e as lamparinas já estavam estrategicamente distribuídas
pelos quatro cantos.
Os raios riscavam o céu um após outro. O
estrondo dos trovões fazia balançar as casas e um mundo de água formava rios
pelas ruas da cidade. Minha avó juntou as cianças em torno de si e rezou em voz
alta para todos os santos, para que os guardassem.
De repente, o mais forte dos trovões soou
ensurdecedor. E um clarão se abriu no céu, revelando o inacreditável...
O estatelar pesado no telhado, o deslizar
truncado, e o estrebuchar sólido no chão, chamaram a atenção de minha avó. “ Meu
Deus, o que é isso?” Vovó ajuntou as crianças num canto do quarto e num repente
de coragem, abriu a janela pra ver. Era fantástico! Desesperou-se com o que viu
e mais que depressa se danou a gritar pela comadre: “Joana, Joana, me acode,
mulher, tá chovendo peixe! Tá chovendo peixe!”.
Apavorada, pegou os pequenos e atravessou o
terreiro sob a chuva de piabas que caíam do céu, aos montes. Foi bater na casa
da comadre Joana. (o que se conta até hoje, na cidade, é que na hora do grande
trovão, a barriga do arco-íris se rompeu e as piabas que ele havia tragado do
leito do Ina, naquela tarde, desceram como chuva, de volta à terra.
A vizinha, já acostumada com as coisas
estranhas que aconteciam naquele lugar, acalmou a minha avó, que nascida em
Belém, acompanhou o marido que foi fazer a vida lá pras bandas do Acre. “Que
coisa esquisita, estranha, impressionante mesmo”, resmungava ela para a
impassível comadre Joana.
Minha avó ficou por lá, sob a segurança da
comadre, até que as últimas piabas ainda despencavam sobre as casas, árvores e
postes de luz. Caíam num fio de água, serpenteavam nas valetas, varavam na rua
Coronel Brandão e, de lá, eram levadas pela correnteza de volta ao rio.
Anos depois, nas tardes quentes de Belém, sentada
na cadeira de embalo, minha avó repetia esta história pra gente, uma platéia de
olhos arregalados e atentos, com tal seriedade e convicção, que não suscitava
uma duvidazinha sequer. Nos olhávamos sem dar um pio. Égua, chega dava um arrepio
na gente.