sexta-feira, 23 de junho de 2017

crônica da semana- pai alterna

Pai alterna
Era um show de um rapazinho fofinho, gente boa pacas, adorado pela petizada. Por força das interações, convivência e conivências com minha filha, até sabia umas músicas dele. “Tempo de pipa” era a minha preferida. Fui junto. Fiquei lá espremido junto à grade, bem pertinho do palco, durante boa parte do show. Ao final, acompanhei o cortejo de fãs até o camarim, supliquei para o baixista chamar o cantor lá dentro, e quando ele veio, esperei pacientemente, a vez, para fazer o retrato dele com Amaranta. Foi tudo muito perfeito e prazeroso naquela noite. O desfecho feliz, autógrafo, quetais, coquetes e salamaleques. Mas o começo de tudo foi tenso.
Era noite. O local do show era uma mistura de casa de espetáculo e bar. Minha filha tinha pouco mais de dezesseis anos. Apesar de todos os papéis solicitados pela produção, na hora de mostrar as identidades, a menina foi barrada. Um segurança de uma envergadura monumental, que se fosse medido, bem medidinho, somaria uns três quilômetros de tórax e que se alçava a uma elevação comparável a um prédio de oito andares, nos impediu de entrar, sem papo e sem apelo. Pensa num pai pê-da-vida. Olhei pra cima, comparei nossas posses, ponderei que o paletó preto que encapava o segurança, poderia fazer alguma diferença em favor dele, na hora do vamos-ver-quem-tem-razão, já que, só de bermuda, camiseta e percata, eu estava. Relevei a afronta, desisti do enfrentamento radical e passei à conversa. Ele me cobrou uma autorização do juiz. Aí eu peguei o bacana na dobra. O que seria uma autorização do juiz senão uma autorização minha, do pai, autorizando o juiz a autorizar a entrada da minha filha naquele recinto. Estávamos pulando etapas, ora. Eu já estava ali. Estávamos economizando tempo, aliviando a carga de um servidor público aquilatado, desestressando a magistratura dessas coisinhas bobas. E dei o xeque-mate, anunciando a ele e aos passantes, que eu autorizava. O próprio pai estava ali para autorizar a menina. Fui aplaudido pela galera que fazia fila na roleta. Sem defesas ele capitulou, não ficou de todo convencido, não, mas vergou o corpanzil, ajustou a pulseira de plástico com uma tarja verde no meu braço, no braço da minha filha, e abriu caminho. Depois foi tudo as mil maravilhas. Showzaço do Cícero. Minha filhinha feliz.
E virei pai alterna. Uma marca surgida por causa dos lugares meio diferentes, em que eu era visto acompanhado dos meus filhos. Encontro de poetas, batuques em praça pública, arrastões de bois, e estes shows de cantores pouco conhecidos. Era comum eu levar as crianças para estas partes. Com o passar do tempo, eles é que passaram a me levar. E foi assim, no show do Cícero fofinho. Eu,  em muitos casos, ainda, chancelando a identidade e segurando a onda com seguranças porrudões.
Depois de amanhã, Amarantinha completa 19 anos. É dona do próprio nariz, responsável e programadora de si mesma. O lado bom é que já é ‘de maior’ e não precisa mover mundos para ter direito ao divertimento que lhe apraz. O outro lado, é que não convida mais o pai alterna para ir às partes com ela.


sexta-feira, 16 de junho de 2017

crônica da semana - senhr,senhor

Senhor, Senhor!
Parça do meu convívio. De conversas repentinas, assuntos rápidos. Só que, infelizmente, dia desses, emendamos o papo.Vai daqui, vai dali, e ele foi desfiando vantagens. A água da casa dele era ligação direta do tubulão da rua. Paga só a taxa. Luz, toda noite, joga o bode na rede de alta para garantir os 220 volts do ar condicionado. Internet, tem pelo menos duas senhas clandestinas garfadas da vizinhança. Cai uma, usa a outra. TV a cabo, emenda cabos, conseguiu antena na feira do Barreiro e, em dias de jogos, declina da seleção de filmes para adultos e vibra assistindo aos jogos do Papão estirado no colchão de mola que comprou de um terceiro, sem nota. Tem uma carteirinha de meia-passagem, apesar de ter abandonado a escola há mais de 20 anos. Contava essas estripulias, digamos, pareadas à contravenção, com certo orgulho. Fazia caras altivas, presunçosas. Tipo eu sou o talzão. Olha, fiquei besta com aquele enfileirado de trambiques. Teve uma horinha, que me permitiu a palavra e eu indaguei se de nada lícito ele tinha em casa ou no uso para contar. Silêncio. Depois de uns instantes, lembrou que tinha o diploma de Pedagogia, mas sobre ele pairava uma pendência ainda. Pagou o curso direitinho, mas deu rolo no registro do MEC. Não soube explicar ao certo. Desconversou. Puxou o celular, buscou a foto e me mostrou a testa do rapaz tatuada.
Este mesmo parça, já o vi em novenas de rua, daquelas que acontecem ao pegado do Círio. No meio dos outros, aparentando fé ardorosa. Em certos momentos mais aquecidos, de mãos dadas com os demais devotos, olhos fechados, cenho franzido, é tradição chamar com voz suplicante: “Senhor, Senhor”.
Movimentava o celular à minha frente para que eu percebesse o detalhe, para que a humilhação do adolescente se mostrasse para mim em vários e grotescos ângulos. Enquanto manipulava o celular, fazia uma narração cheia de ódio. Declarava sem a menor prudência, que se fosse ele que pegasse aquele ladrãozinho, faria até pior. Arrancava as unhas dele, faria um furo na bochecha, lanhava as costas com cinturãozadas. Quebrava uns dentes. Senhor, Senhor!
Um choque, aquela cena de horror. Passei um tempo sendo submetido àquele transe selvagem. Dentro de mim, me questionava sobre esta coisa ruim, este instinto bruto que temos dentro da gente. Esta medida de uma única via que julga, condena, menospreza alguém que sequer sabe quem é, e, por outro lado, abstêm-se de culpas mínimas; salva-se a si mesmo de tatuagens ou penas leves, pela prática de delitos socialmente inocentes (como usar do gatonet). E além de tudo, posta-se de bem com torturas e vilipêndios.
Informações de várias fontes me chegam dando uma versão diferente para aquela barbárie. O garoto sequer era ladrão contumaz, padece de um desequilíbrio mental. Foi torturado por puro sadismo. Outras notícias dizem que uma vaquinha foi organizada a fim de patrocinar uma cirurgia plástica para remover a tatuagem.
Outubro se avizinha... Não adianta clamar “Senhor, Senhor” e acender uma vela para a tortura e outra para a brutalidade. A Santa, mãe de Deus, tá vendo.


sábado, 10 de junho de 2017

crônica da semana- recomeços

Recomeços
Éraste,  parece uma coisa, olha! Ô paradinha pra dar certo no jeito e na cor. A gente nem dá o particípio, nem corre nos intercâmbios, sequer recorta os entornos ou dobra as calendas e, tibum! Mergulhamos nas mais doces coincidências.
Calhou d’eu entender que este momento que vivemos, embora permeado de dramaticidades e extravagâncias, seja também de reviravoltas, de revoluções. Não que eu esteja sendo acometido de um otimismo vão, sem sal e sem aval. Também não sou assim, bestão, alienado. Tenho consciência de que o cenário é delicadíssimo. Ao mesmo tempo, porém, é de decisões.
Penso que segui um princípio de sobrevivência, um juízo inquebrantável. Vamos resistir. Pensando bem, algumas feridas abertas neste corpo-Brasil são reveladoras, expõem diferenças antes camufladas, exibem as hipocrisias. Assim, o caminhar até que é mais seguro, vamos reconhecendo as vilanias, e daí, criamos defesas, superamos as hostilidades com o combate da hora.
Isto, em todos os campos de relacionamento. Naqueles que atingem o bolso, ou em outros que nos esmigalham o coração.
Pois não é que calhou!
Vi olhos, neste início de junho, brilharem como antes não brilhavam. Vi horizontes se descortinando num comportamento múltiplo, em escalares desafios, e medo nenhum percebi, tecido ou trançado ao largo. Pai d’égua, isso! Vi passos decisivos no rumo de recomeços.
E eu que reitero, reinicio,  reeescrevo. E eu que meto meu bedelho no fundo do olho do mundo nesta arte de “reiterar o já dito, o já vivido, o já pensado”, acho muito dos seus pai d’égua essa história de ter serventia para que alguma paradinha aconteça e mude mundos, mundinhos, Raimundinho! Mundinhos, Raimundinho!
Vi também, sorrisos reeditados, exposição de encantos sazonais, humildade, afeto perto-longe, conivência. Vi na simpatia de D. Dora, leitora aqui da coluna que desde 2013 comparece às edições da feira do Livro, no Hangar, para ter uma prosa assim comigo.Vi naquele carinho, a dimensão completa e repleta de responsabilidades, que têm as palavras que digito todos os sábados aqui. E eu? E eu acho muito pai d’égua, esta cumplicidade!
Então calhou, que por causa do título do meu novo livro, eu desenvolvesse uma dedicatória, na hora dos autógrafos, que sinalizasse para recomeços. Por causa do mês de janeiro, por causa da sobreposição de temas. Uma explicação tecnicamente possível para a edição da coletânea, deste ano, enfim. Em outro sentido, não pensei, não maldei.
Mas o mês de junho começou ditando vieses que nem janeiros. E eles se desenharam no campo do amor à vida, na esfera do trabalho, no reencontro com D. Dora. No fortalecimento de velhas amizades. Na crença em revoluções e resistências.
Não era esta a intenção. Mas calhou, ora se calhou!
E minhas noites têm sido de sono profundo e reconfortante. E minha alma me anima doce e abrandada. E minha razão reconhece o mais concreto e certeiro que possa ser o futuro. Alcançável, ora.

Ô coisa pra dar certo! Assim, apontando os particípios, os tais intercâmbios, aqueles entornos, as ditas dobras e calendas. No rumo das mais doces coincidências

sábado, 3 de junho de 2017

crônica da semana- janeiros

Janeiros
É o quarto episódio de uma aleatória temporada da série que mais com pouco explico. Vai ter sessão de autógrafos hoje. Sei que aos sábados, tenho muitos leitores que me acompanham aqui na coluna. Em outros lançamentos, tive oportunidade de conhecer alguns de vós. Seria bom nos vermos. Apareçam.
Fosse outro o caso, eu poderia até oferecer um caldo de cana com pão doce, um Q-suco de groselha com broa polvilhada. Mas, Deus te livre e guarde! Não pode. O regulamento da Feira do Livro é rígido. Não permite seduções e nem prazerosos intermediários. A coisa é ali, entre o autor e o leitor. Ninguém se mete.
“Janeiros” é a realização de um desejo que venho cultivando desde 2013. Tô querendo guardar em livro, as crônicas que venho publicando no jornal. É uma missão. São quase quinhentas crônicas. Isso em uma única edição sairia uma fortuna, então, venho picando as publicações, em episódios, sempre que aparece uma graninha. Nesta leva de intenções, a série vai se ajeitando. Na sequência das edições vieram “O rio do meu lugar”, “A rainha do rádio”, “Corrente” e agora, este “Janeiros” que vos apresento. Por enquanto está tudo nos conformes. O bom pai tem me ajudado e meu projeto tá caminhando rente como pão quente.
As outras edições da série foram temáticas ou enquadradas em razões para se realizarem. Ora conceituais, ora sentimentais, ora estilísticas. “Janeiros” obedece a esta cobrança formal que me imponho.  A composição do livro é inspirada em uma dinâmica textual muito usada por Nelson Rodrigues, e evidente em “O Óbvio Ululante”, coletânea que terminei de ler dia desses. Arremedando a pegada do autor, “Janeiros” é formado pela repetição de temas. Nos meus escritos, encontrei eco no método abonado e assumido, por Nelson. Reparei que abordo o mesmo assunto umas quantas vezes. Mas dei, também, que este é o grande desafio, o grande barato. Dar movimento, tratar tramas constantes de formas variáveis, esta é a motivação. Sinto benzinho essa pressão nas crônicas que escrevo no mês de janeiro. É o mês de aniversário de Belém e há anos dedico a coluna à cidade. Com o cuidado de dar roupagens diferentes às histórias. Um ano falei da geografia, em outro mirei na arquitetura, mais outro e apontei para o coração de quem ama Belém. Uma versão que me deu muito gosto fazer foi a que expressei a relação com a cidade, do ponto de vista de alguém que está distante. Centrei a narrativa no Acre e criei uma personagem inspirada em minha mãe. Muitos segredos não vividos se revelaram para mim, naquela experiência.
Uma construção cíclica, tendo uma Belém inalterada sentimentalmente, e em contrapartida, travestida de incertezas, exige sempre um recomeço e uma guinada estratégica ao racional. Reescrever, reiterar o já dito, o já vivido, o já pensado, é sentir-se à vontade para nascer de novo e ver o cotidiano com outros olhos, com outra voz, com braços e pernas livres. Novos olhares são novos saberes, são novos prazeres. São janeiros.
A reinvenção de temas pauta o meu novo livro. Todo janeiro, me renovo.  Em “Janeiros” me reinvento. Borilá. Espero vocês à noite, no Hangar.