sábado, 28 de novembro de 2015

crônica da semana - intelixente

Intelixente!
Quando morávamos naquela casa de enchimento encravada numa vila geminada fazendo limite com uma nesga de calçada alta à frente, a vida na Marquês de Herval era quase de interior. Sem muitas novidades. Que eu me lembre, a Copa de 70 e o primeiro morador da rua a passar no vestibular foram os acontecimentos que abalaram a rotina da Marquês. No mais era a bola da rapaziada no leito de piçarra da rua, as ousadias etílicas da turminha do Bar Pedra Noventa e as arengas e maledicências comuns entre vizinhos regulando os dias.
A minha batida era aquela de menino que fazia o Primário na Aparecida e que convivia em paz com a minha sensaboria, com a minha sensalzice.
Para a mamãe, eu era um fenômeno. Medindo a minha trajetória de cortadorzinho de seringa no Xapuri a aluno esforçado na Aparecida, se entusiasmava. Alardeava a minha alta capacidade. O menino é inteligente, dizia. E com tamanha paixão que o gê ia ganhando volume, intensidade. Articulava a palavra com tão ferino enlevo que o gê ia tomando a envergadura de um xis sonoro e prolongado. O menino é intelixxxxente! Sabe contar toda a novela Irmãos Coragem. Sem tirar nem pôr.
Mal sabia a minha vida na Escola. Não era um aluno ruim nem displicente. Mas também não era esta excelência toda que mamãe pregava baseada na ignorância da minha vida pregressa e no domínio de uma novela de aventura. Dava minhas mancadas também.
Uma emblemática, na Aparecida, que eu não esqueço nunca. Prova de Matemática. Conjunto. A questão pedia pra ligar os elementos iguais dos conjuntos. Sendo eles: casinha, bolinha, florzinha. Não sei o que me deu na telha, que destrambelho ou desmiolamento me acometeu que fui ligando tudo errado. Casinha com bolinha, bolinha com florzinha, casinha com florzinha. Hoje, uma pessoa de boa fé, diria que eu interpretei mal o comando. Mas quite, foi patetice mesmo. O que torna é que, depois da prova, nos ‘comentários finais de Grimoaldo Soares’ sobre as questões, reunido com a minha patotinha, me dei conta do furo. E pior, na minha inocência de acreaninho das brenhas (juro, não houve dolo nesta ação), voltei lá com a fessora, borracha em punho, e pedi a minha prova para as devidas correções. Pensa num carão que peguei.
Ah, mamãe, contar as cenas dos próximos capítulos na rodinha de vizinhos era fácil, agora ligar os desenhinhos dos conjuntos exigia uma concentração que eu não tinha.
Com o tempo, mamãe foi desvanecendo a idéia que fazia do meu brilhantismo. Era chegar o boletim com os meus errezinhos, os meus cinquinhos; Era constatar os meus aperreios, os meus malabarismos para passar arrastado que ela tomava pé da mais incontestável realidade. Eu não era um geninho.

Fui um aluno regular, repeti de ano uma vez por causa de umas paradas, hoje condenadas pelo ECA, que já contei aqui, mas foi uma única vez. Quando engrenei, passei sempre direto... regularmente, mas passei. Contudo, se mamãe me visse hoje, todo prosa contando causos no jornal, ligando desenhinhos da memória, certamente se entusiasmaria, faria uma rodinha com a vizinhança e cravaria: intelixxxente!

sábado, 21 de novembro de 2015

crônica da semana - a casa ao lado

A casa ao lado
Havia um calor dissimulado, amenizado pelo salpico de talco no pescoço e por um comportamento liminarmente imposto: da feita que me empoava, mamãe sentenciava, não podia me abalar para nada, suar, podia suar apenas aquele pouquinho, inevitável, na caminhada cadenciada pela Barão do Triunfo, procurando aqui, ali, a sombra das pequenas árvores alinhadas no meio da rua.
Era um menino das brenhas do seringal. Tinha uma vaga do governo numa escola particular. Nada da cidade dominava, a não ser aquele traçado inalterável que me levava até a igreja de Aparecida. Mas, nos primeiros dias, independência, isso não significava. Nunca ia sozinho. Minha tia, no caminho para o trabalho, sempre ia comigo. Era aconselhável acompanhar as crianças, principalmente naquele período calorento, silencioso e solitário da uma da tarde.
Antes de bater a campa, a turma formava uma fila protegida do sol por uma mureta que limitava o acesso à sacristia pelo lado da Barão. Era meu momento de interação com os meninos da cidade. As primeiras e importantes informações, aquelas que a família não sabe passar. Aquelas, que só a molecada domina e entende e com jeito e manha, partilha.
A escola que funcionava na Aparecida era da Igreja. Tinha um público distribuído pelas famílias tradicionais do bairro. Junto com o Josino Viana fazia a vez no ensino básico. Entrei lá na Alfabetização, fiz a Primeira, no meio do ano passei para a Primeira Adiantada, e fui me aviando de lápis e caderno na mão, até o final do curso primário. Na Aparecida, foram criadas as minhas bases de vivência, de percepção. A realidade foi se construindo sobre meus pés apertados dentro do Vulcabrás. Era uma escola que tinha merenda, cantigas para cada coisa: para a hora de merendar, para receber visitas, para homenagear os mestres. Lá, a gente até tomava a bença das professoras. Havia um enlace íntimo entre a pedagogia da Aparecida e o entorno pedreirense. A maioria dos pais que deixava os filhos na porta da escola, também frequentava a missa aos domingos. E muitos se conheciam. Eram parentes, amigos de porta.
Mas naqueles primeiros dias, eu era apenas um imigrante do Acre. Fazia a caminhada empoado, me comportava, reconhecia na cartilha o enredo de que Ivo viu a uva e tinha vergonha da minha casa.
Na volta, quem me trazia da escola era a mãe de um amiguinho que morava lá pras bandas da Passagem do Arame. Morávamos com minha avó numa vila construída com enchimento de barro e que em muitos pontos apresentava vastas áreas descobertas, exibindo apenas o esqueleto de finas estacas farpadas na fachada. Me sentia embaraçado para mostrar que morava naquela casa velha de enchimento quase sem enchimento. Parava na casa de alvenaria, ao lado, e com tal folga que parecia que morava ali. A mãe do meu amigo me deixava na calçada, eu me debruçava sobre o muro baixo e dizia algo leve como vou ficar aqui, apreciando o movimento, depois eu entro. E só quando os dois desapareciam além da Lomas é que eu me adiantava para minha casa de barro. Atormentado por aquele acanhamento besta.


sábado, 14 de novembro de 2015

crônica da semana -alinhado no prumo

Alinhado no prumo
Sou dado a curiosidades bestas e inquietudes vulgares. Isto dito reiteradamente, por aqui, já é causo retinto das nossas prosas. Me bato com cada coisa. Cada presepada, cada invencionice. Olha que quando cismo de viajar nas idéias, viajo pacas. Nem vai longe o tempo em que amanhecia os dias e varava as noites querendo entender o que seria a horizontal. Sim, esta linha inspirada logo ali na frente, na beira do fim do mundo; traço que define a planura do solo que pisamos. Me peguei com tudo quanto foi teoria ou impressão e não deu em nada. Meu cocuruto não conseguiu intuir nem conceituar. Mas não abandonei a barca não. Depois de tanto penar, tanto bolar pelos leitos irregulares das incertezas, cheguei ao segredo horizontal pelo caminho mais reto e seguro. Vi o pedreiro tirando o prumo na parede aqui de casa e deu aquele tóim óim óim no meu imaginar. A vertical do pedreiro é uma direção. E é a direção mais certa, imutável, irrevogável. O pesinho aponta sempre para o centro da terra, formando um alinhamento sagrado e se a parede sai torta, por certo, o obreiro sentou tijolo numa segunda-feira braba de ressaca, porque, culpa do prumo não foi não. O prumo não falha.
Além do alívio, do conforto no espírito e da leveza no trato, a descoberta de que a horizontal é uma direção tirada em quina de 90 graus do fio de prumo, mudou minha vida.
Ou melhor, não mudou, ratificou uma certa retidão que tinha no meu ser e no meu estar. Me reconheci e me assumi como um ser invariável. Ortodoxo e orto-operandi. Posso citar vários exemplos dessa minha tendência a fio de prumo. Uma que é bater e cravar: Uso sempre a mesma roupa. Tenho foto. Aos domingos, um grupo de escritores se encontra na barraca do Escritor Paraense, na praça da República. Lá pelas tantas a gente se junta para um registro. E não é que um dia desses, repassando as fotos em domingos diferentes, reparei que eu estava com o mesmo look. O testemunho era contundente. Não que fosse intencional. Não. É aquela minha retidão, minha cômoda invariabilidade. Só vou na certa. O mesmo conjuntinho camisa-bermuda-chinelinho. Repetidinho, mas limpinho.
No tempo das locadoras de filmes, era batata. Não experimentava. Alugava toda vez, os mesmos filmes. Blade Runner... aquele do Brad Pitt que ele tenta porque tenta escalar o monte Nanga Parbat, no Himalaia... Os meninos, em casa, haja reclamar.
Umas das minhas mais singulares fixações é o apequenamento, a análise fina, a repartição de um todo. É só eu pegar um papel para esboçar um texto ou um riscado que já vou dobrando, reduzindo as faces. Um papel A4 rapidola se encolhe em minhas mãos. Sobre uma superfície mais limitada, mais domável, me sinto seguro, concentrado e assim, mais à vontade ao riscado. Boa parte das crônicas que escrevi à mão, antes de ter um computador, foi escrita neste abrigo liliputiano, em terra pequena, nas entre-margens mirins.
O fio de prumo me alinhou de tal forma que toda vezinha que de punho escrevo a palavra atenção, mesmo sem atenção alguma, escrevo todinha a palavra, só depois é que volto e ponho o cedilha.


sábado, 7 de novembro de 2015

crônica da semana - Radinho

O Radinho, o Raimelo
Este ano, participei de uma edição comemorativa alusiva aos trinta anos de fundação da Rádio Cultura do Pará. Uma coletânea onde os autores foram provocados a criar textos que falassem do rádio. Para mim, nada mais estimulante: o rádio sempre esteve presente no meu dia-a-dia desde o tempo do Raimelo.
E talvez esta do Xapuri, seja a lembrança mais distal que eu tenha da presença do rádio na minha vida. Era uma propagação restrita, daquelas de poste. Cobria a beirada do rio Acre do extremo da igreja matriz até a sorveteria Sibéria, no final da praça. O nome da estação, deduzo agora, refletia a aglutinação de ‘Raimundo Melo’, o proprietário do transmissor. Quando meu pai deixava as ruas de seringa e nos dava a conhecer as ruas da cidade, folgávamos a valer, nas tardes de domingo, nós, os pequenos acreaninhos, nos lambuzando com o mel geladinho dos picolés e apreciando lá de cima, dos alto-falantes do Raimelo, o Wanderley Cardoso revelar para todo mundo ali da beirada do rio que “você não é doce de coco, mas enjoei de você”.
Quando chegamos a Belém angariamos bens que iam pouco além de duas ou três redes. E um rádio. E era sagrado, o amanhecer para a luta, sintonizado nas lambadas, na guitarrada, no merengue, no bater de panelas “alô dona Maria, passarinho que não deve nada pra ninguém já está de pé, vamos acordar!”. Minha mãe ajeitava o radinho sobre a pernamanca que atracava a janela, e o dia se definia ali. Coava o café, areava uma panela no jirau com areia e limão, passava uma vassoura rápida na cozinha, separava uma boneca de anil para o molho das roupas, dava as benças, as recomendações e ganhávamos o rumo das lidas. Antes, rodava aquela rosquinha de plástico até um clique desligar o radinho e reservá-lo para mais tarde.
E foram tantas as interações: as várias entonações para o ‘boa tarde’, no programa do Kzan Lourenço; a sorte na roleta para ‘responder’ou ‘perguntar’, nas manhãs do Costa Filho. A alegria matinal de Gilberto Martins, a polêmica vespertina favorita do ‘combatido, porém, jamais vencido’ Eloy Santos; as denúncias do Paulo Ronaldo, as mentiras do Braguinha Oséas Silva, o vozeirão de consciência pesada do José Guilherme, a secretária Iracema, as esquetes de A Patrulha da Cidade ao sol do meio dia. Os reclames dos empórios, dos armarinhos, das distribuidoras de secos, molhados e estivas em geral.
Estamos emboletados há anos, eu e meu radinho. Não nos desatarrachamos. Acho que é por causa da influência do lar... das marcas que ficaram...
Inesquecíveis também as noites de blecaute na cidade, quando a luz que se tinha era a dos pirilampos que aqui, ali, luziam sobre o capim da rua. Saíamos todos para a porta, o radinho na mesa de centro. Aprendi canções belíssimas com a mamãe, ouvindo a seleção musical de Joel Pereira. Ou por outra, atávamos as redes na sala e sem luz nenhuma, acompanhávamos Emilinha “assim se passaram dez anos”, enquanto encontrávamos as mãos para somarmos força nos embalos para o futuro.

Inesquecível a sorveteria Sibéria às margens do rio Acre... O Wanderley Cardoso, o Raimelo... Mamãe.