sábado, 27 de setembro de 2014

crônica da semana - tatu

Aquela do tatu
Da minha fase em Rondônia a área que passei mais tempo acampado foi aquela de Ariquemes (a cidade de 300 mil casos de malária). Tinha uma equipe grande. Uma peãozada diversa. Gente de tudo quanto é canto do Brasil. Aprendi coisas ali. Não fazer muitas perguntas, por exemplo. A conta foi eu me animar numa conversa com um baiano. Prosador. Gingador. Uma simpatia. Tinha uma cicatriz que cortava o lado esquerdo do rosto de fora a fora. E eu, menino besta que era, caí na leseira de perguntar a origem daquele talho. Pra quê. O camarada emburrou. Me deu uma dura naquele estilo, “essas coisas não se perguntam pra ninguém”. Rapidola que entendi a parada e mais cuidadoso fiquei com os meus repentes curiosos. Um belo domingo, tive que interromper a minha folga na vila que eu morava e correr para o acampamento. Passaram um rádio de lá dizendo que o baiano tinha tomado umas catuabas e virado cavalo do cão. Pegou um terçado de uso da equipe de topografia, amolado não! E saiu dando planada no qual pega em meio à galera. Acertou uns dois. Foi contido pelos acreanos macetudos, amarrado e jogado num pé de árvore até que a polícia foi buscá-lo. Passei a noite no acampamento e na segunda fui à delegacia negociar com o delegado a soltura dele. Quando cheguei lá, já com o termo de demissão dele assinado e com a cachorra (mala) dele arrumada, qual não foi aminha surpresa. O baiano estava no maior flozô com os investigadores. Era um quiquiqui, uma atenção. Fazia mandado, passava um café, comprava cigarro na esquina. Preso, preso, não estava. Quando foi liberado, saiu dando tiauzinho pros policiais e sumiu no trecho. Figuraça.
No rol dos transcendentes, figurava o Geléia. Era acreano. Dividíamos o barraco dos graduados. Ele era chefe de acampamento, o líder da turma e também, uma espécie de guru. De conselheiro, sábio. De noitinha juntava a turma no barraco e, à luz de velas, enveredava por filosofias, testemunhos. Tinha uma hora que rolava um transe e ele disparava frases do tipo Deus é oligirei dinun’olium vertegno. Eu, da minha rede só ficava ouvindo aquela presepada. Não dava um pio. Creditava aqueles arrebatamentos a uma herança do Daime acreano, sei lá, ao fervilhamento das idéias remanescentes de um passado de Ayahuasca e Mariri. Refeito, voltava ao mundo dos mortais contando que tinha 14 mulheres, 25 filhos e que o irmão era intendente de um lugarejo encravado nas montanhas bolivianas.
Mas o que me chamava mais atenção nos acreanos, nem eram as esquisitices do Geléia. Era o uso redundante que eles davam às consoantes alveolares /s/ e /z/. Um grupo grande de conterrâneos, tínhamos na equipe e todos revolucionavam a fonética. Três, era Treis’zi. Vocês, voceis’zi. Tempos depois, tivemos uma arrumadeira acreana, na vila, que se desesperava dizendo “meu Jesuis’zi não passei a roupa do João de Deus’zo”. Fenômenos lingüísticos riquíssimos grassavam pelos arredores de Ariquemes.

E teve aquela do tatu. Final de tarde. Os cachorros acuaram o bicho na toca. A turma foi até lá e trouxe o tatu amarrado com sisal para o barraco. Foi aquela latomia, lá pras bandas da cozinha. Colocaram o tatu sobre a mesa e ficaram especulando sobre a esperteza do animal. Alguém assegurou que ele tinha uma fraqueza nas reações se amarrado pelas orelhas. Ficava como se mundiado. Paralisadinho. Os incrédulos descartaram a possibilidade, mas uns mais afoitos resolveram testar. Desamarraram as patas do bichinho, seguraram na carapaça, e amarraram as orelhas. Soltaram. Foi um tiro só. O tatu deu um pinote e sumiu na mata. O peão que deu a idéia, claro, pegou um samba.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

crônica remix - ediício

Pra riba
Estive fazendo umas continhas aí. Classificando, distribuindo, restringindo, alargando, desconfiando, confirmando, descobrindo. Certifiquei-me, inconformado, de que não conheço ninguém que mora em edifício. Verdade. Não contabilizo um único amigo que more nas alturas. Digo, prédio mesmo, de verdade, daqueles que dá pra ver a baía lá de cima (Natália Lins, afins ou blocos geminados que permitem acesso somente  por escadas, não vale. O que conta ponto pra mim, é elevador, mesmo que seja daqueles do Jurássico, com portas pantográficas). O meu séquito limita-se ao povo que se vira ao rés-do-chão. É todo mundo habitante do térreo (alguns, é verdade, ‘terráqueos’ de esquinas chiquerérrimas tipo Doca...Quer dizer, não exatamente  Doca, e nem, absolutamente, esquinas, mas perto, perto, aquele perto que já dá pra se incomodar com o som dos carros tunados, com o chiliquitos de playboys amantes do tecnobrega baiano e com o mix de aroma floral de detergente nos fins de tarde, início de noite).
Minha turma não se animou a subir pra riba.
E antes que eu me desembeste no texto, vou tentar explicar que diabos vem a ser ‘porta pantográfica’. Bom. É um tipo de porta de elevador que a gente encontra, com muita freqüência naqueles prédios mais antigos da cidade e que tem o formato de pantógrafo.
Hum...
Se não ajudou, esta explicação, é só lembrar a última vez que a gente se dignou a responder a uma ‘notificação extrajudicial’ e teve que se dirigir a um escritório de cobrança para limpar o nome por causa daquela continha desprezível que a gente ‘esqueceu’ de pagar, do natal passado (e que virou um contão impagável). No geral estes escritórios instalam-se em salas precedidas pela sinistra (ameaçadora, imprevista, angustiante. E quem acompanhou o sobe-desce do Angel Heart, personagem vivido pelo ator Mickey Rourke em “Coração Satânico”, sabe muito bem do que estou falando) porta pantográfica.
Houve uma época em que os produtos vendidos pelos camelôs da cidade tinham pouco de eletrônico e muito de mecânico. Quem nunca comprou, numa esquina na João Alfredo um multi-utilitário Kimbar? Que era ralador, descascador e cortador, ao mesmo tempo, de frutas e legumes (que hoje seria comparado ao microprocessador, mas que na época era tudo no manual mesmo, no muque e, olha que pecado, tive a deselegância de presentear a mamãe com um desses, numa data comemorativa importante). O mesmo camelô enveredava pelos mistérios da química e vendia uma gosminha que era lambuzada no desenho (em qualquer desenho) e depois passava para o tecido (qualquer tecido), para os cadernos...funcionava como um decalque e que ficavam feinhos que só. E, este mesmo vendedor (lembro dele até hoje, porque tinha umas falhas de dente flagrantes que lhe alteravam a dicção), nos oferecia, também o pantógrafo.
O pantógrafo seria o pai do AutoCAD. É um instrumento de madeira, meio que sanfonado, que serve para alterar as dimensões de um desenho (pode torná-lo maior ou menor), ou seja, mexe com a escala da imagem. Cheguei a usá-lo, quando trabalhei nas minas de cassiterita do Amazonas. Só que aquele do camelô, só nos trazia dor de cabeça. Não traçava, muito menos modificava o tamanho, a envergadura, o volume, de nada. Tive um também (falo deste instrumento para o meus amigos da geologia, e eles, hoje com o auxílio luxuoso da tecnologia, se abrem...).
Belém, não é uma ilha. Temos o rio Guamá cercando por cá, a baía do Guajará, abraçando por lá, mas temos a 316 integrando acolá. Mas é bonita que dói, vista de cima. Sei disso, porque, com a graça do divino, pousei várias vezes pela Taba, neste berço aconchegante que me inebria. À noite, então, Belém é uma planície de luz.


sábado, 20 de setembro de 2014

crônica da semana - paludismo

Paludismo, Aralém e outros ais
Fico até meio aquele quando vejo algum anúncio solicitando doadores de sangue. Imagino que se eu doar o meu, no outro dia a assistência tá apitando aqui na porta de casa pra me levar pra UTI. Lá no laboratório quando virem boiando no meu plasma, traços ainda animados das três malárias, uma dengue e uma hepatite, os técnicos vão tomar o maior susto e vão querer mais que depressa me acudir. E isso sem contar com o teor de Etanol que se mantém há anos, assustando etilicamente, em taxas generosíssimas.
(Antes de prosseguir discorrendo sobre o meu patrimônio nada modesto de ziquiziras, pondero admitindo que o que nos faz resistir, o que nos leva a viver de vera, gostar de não largar este mundo, criar anticorpos e pular fogueiras são as descobertas, os aprendizados. Mesmo que nos cheguem atemporais, já na batida da campa. Ainda que venham tardios, por conta de urgências outras, nos adiantam, que só, ora, ora... Durante muitos anos conhecia o termo “impaludismo” como sinônimo de malária. Só que, por esses dias, lendo o romance “Marajó” de Dalcídio Jurandir, vi que ele se refere à doença, reduzindo o termo para “paludismo”. Mirei, indaguei para mim mesmo sobre aquele jeito de escrever. Quedei-me, porém, ao estilo. Vai ver que era do eu marajoara do Dalcídio, reduzir as doenças. Dá-lhes um apelido subtraído de prefixo. Como se assim, sem o ‘im’, os efeitos, as dores, os ais fossem amenizados. Pode ser. Mas, por cuidado, fui ao dicionário e aprendi mais uma na vida. Certifiquei-me que podemos escrever das duas formas. Faz tanto e dá no mesmo. Agarrei e pus no título lá em cima, do mesmo jeitinho que está nas páginas de Marajó: paludismo).
No início da década de 80, quando fui trabalhar em Ariquemes, já fui preparado. A cidade era famosa por ter 100 mil habitantes e ter 300 mil casos de malária por ano. Três malárias pra cada. Era a campeã mundial da doença. Já fui esperando as minhas três. Mas olha como são as coisas: entrávamos para o campo no mesmo dia, eu e o geólogo Roberto Matias. Atávamos nossa rede uma do lado da outra, tínhamos a mesma rotina. E era tiro e queda: uma semana depois de acampado, Roberto baixava pra cidade com malária e eu, ó, ficava no mato esbanjando saúde. Contadas encarreiradas, meu companheiro só no tempo de Ariquemes, pegou cinco malárias. Era só, atar a rede e pluft. Uma cruz de falciparum, meia de vívax, uma mais rara, a malariae, todas maltratando. E ia pegando. Era pegador meu amigo. Mas não era um caso único de multiplicação da maleita. Tenho amigos próximos de mim, com mais de 20 malárias no curriculo.
Eu aguentei uns dois anos zerado, sem pegar malária, nesta pisada de acampar pra cá, acampar pra lá. E não é que quando me aquietei numa vila toda arrumadinha, morando em casa telada foi que me arranjei com as minhas três. A primeira foi meia cruz de falciparum. Fiquei apavorado. Após o tratamento me danei a tomar o chá de melão de São Caetano em jejum, que era ruim pra dedéu, porque me disseram que era bom pra sarar de vez. Mas quando! Não deu nem 20 dias, peguei a segunda. Uma cruz de vívax. E foi logo no carnaval. O tratamento a gente fazia em Porto Velho. Para os sintomas, Dipirona no glúteo, porque no braço não tem cristão que aguente, soro, Aralém para manter as funções sem sobressaltos e Primaquina ou  Cloroquina, conforme a identidade do Plasmodium. Quando peguei a segunda malária, era carnaval. Tinha uma namorada e ela brincou o carnaval sozinha. A terceira malária...Ah, a terceira malária doeu menos que a dor da saudade (e para esta dor, não teve Aralém que desse jeito).




quarta-feira, 17 de setembro de 2014

crônica remix- uma tarde

Uma Tarde
Não entende a presença dela ali, em plena tarde de Sábado. Para ela, o Sábado era um dia sagrado. Dormia até tarde. Tomava um café, ainda com aquela preguicinha  do acordar sem querer e ia despertar realmente,  embalando-se na rede da varanda. Depois, tomava um barril de suco de qualquer fruta regional e traçava o plano de vôo com possibilidades que iam do passeio à casa de amigos a uma fugida estratégica para Mosqueiro. O Sábado não tinha hora pra terminar. Ele lembra que na época da campanha para presidente, tinham uma turma espertíssíma que fazia a diferença na ‘buxixeata’. Eita! Por aqueles dias, o Sábado desandava...
Não tinha por que estar ali, naquela tarde. As pendências estavam todas resolvidas. Nem precisaram de advogado. Foi tudo na santa paz. Tudo bem divididinho. Ela ficou com o carro, ele com a casa na Pirajá. Ela levou toda a biblioteca, e ele herdou aquela belezura de discoteca que incluía aquele disco em vinil, raríssimo, do acreano Sérgio Souto. Tantos anos e não tinham filhos. Ambos levam a responsabilidade de um exame, que pelo grau de importância diante das ‘prioridades’, nenhum dos dois, jamais fará. O caso foi bem resolvido, então, o que a levaria a sua casa numa tarde de Sábado? Ele meio que surpreso, meio que curioso:
- Mas és tu, mulher? Que ventos te trazem?
Ela, prática, decidida e aparentando pressa:
 -Aquelas caixas, lá no quartinho, Posso dar uma olhadinha?
Ele prestativo, quase que bajulador, indicando o caminho:
-Claro, claro...
Enquanto ela cavucava por lá, ele buscou na internet, o último poema do amigo José Miguel Alves. Traga do verso: “O último amigo arde...” Tenta lembrar o gosto do cigarro. Desiste. Ora, a grande responsável por ele ter abandonado o maldito vício estava ali, no quartinho dos bagulhos. “Taí, te devo essa”, murmura, talvez tentando reconhecer que a partilha não fora assim tão justa.
-O quê? – Devolve ela, demonstrando ter ainda os ouvidos mais sensíveis do mundo, emendando a seguir– Achei, achei!
E vai saindo. Ele a acompanha. Despedem-se com beijinhos. Três pra casar (oh, não, pra casar, de novo, não!). De repente, um fogo explodido das profundezas da irracionalidade (aquela irracionalidade do coração, que eles tanto se orgulhavam de desconhecer), aquele fogo traiçoeiro, perturbador, se fez num longo beijo. Um beijo adocicado, fértil, um Nilo de prazer. Que momento!
Tão bom, meu Deus!
Quando os lábios separaram-se constrangidos, procuraram os seus rumos. Tomaram pé e tornaram daquele mundo impossível de existir. Abraçaram a lógica das coisas e entenderam tudo.
Ela se refez. Entrou no carro, puxou da bolsa uns bregueços (umas hastes finas de plástico, de madeira, do tamanho de agulhas de tricô; atracadores, grampos, aquelas coisas que havia recuperado das caixas), e com eles tentou prender os cabelos. Ele aproximou o rosto da janela do carro e confirmou uma opinião antiga:
-Ficas melhor com o cabelo preso.
Não era isso que ele queria dizer. Na verdade nunca tinha as palavras para definir o prazer de vê-la com os cabelos daquele jeito. Não sabia dizer bem o “jeito”: preso, não preso. Não de todo solto. Nem preso, nem solto, sei lá.
Ela, um tanto desconcertada, fez um arranjo rápido com as hastes de madeira e ai, ai, ali estava a mulher da sua vida, com os cabelos misteriosamente arrumados do jeito que ele tanto gostava.
Um sorriso foi o sinal da despedida. Ela deu a partida no carro e saiu para sempre do seu caminho, naquela tarde de Sábado.










sábado, 13 de setembro de 2014

crônica da semana- sombra do poste

Na sombra do poste (Raimundo)
Até acho que para um mês de setembro, está chovendo além do combinado em Belém, mas isso não quer dizer um arremedo de clima de montanha, não. Bastam dois dias de estiagem, na planície, que o calor vem naquela potência de aguar a laranjinha que a gente compra no sinal, um instante após a giletada. A gente é que se alivie num geladinho e se ajeite à sombra do poste pra se proteger dos raios ‘uvês’, porque se bobar, derrete junto.
É coisa do momento. A folhinha do ano lembra que a fase é a mais pura tradução do mormacento Verão Paraense, que ora viceja a pino, nesta onzena setembrina. O que está claro de encandear os olhos é o calibre de um sol mais ardente e mais precocemente presente. Sinal de que o Equinócio de Primavera se aproxima.
Tô atento a esse estiramento da luminosidade. Está amanhecendo mais cedo. Não tem nem um mês que, na saída para o trabalho, ainda estava tudo escuro e eu pude acompanhar o encontro de Vênus e Júpiter, ali pras bandas da Bandeira Branca. Sabia dos planetas porque vi na internet, o encontro foi alardeado, e foi facinho localizá-los no céu por causa do brilho absurdamente possante dos dois. No primeiro dia vi os dois juntinhos. No outro dia, Júpiter deixou Vênus para trás e ganhou altura no céu. No terceiro dia, Vênus sumiu e deixou de ser a Estrela da Manhã (vai reaparecer como Estrela Dalva no céu lá pra Novembro, só que ao anoitecer. Não fiquemos tristes com a fulguração ausente. É uma questão e tempo). Ali pelo quarto dia, no mesmo horário, não mais consegui perceber o brilho de Júpiter nem de estrela alguma próxima. Com o passar dos dias, a luz dos astros foi diminuindo, diminuindo, o clarão do dia foi tomando conta do horizonte e agora, antes das seis horas, ali pra’queles lados do Utinga, o céu já se compõe num cerzido harmonizado em amplos descaimentos de azul. A aurora amazônica antecipa o clarão do dia e as estrelas cintilantes, e os planetas brilhantes, pluft, apagaram-se, anularam-se ante o poder do sol.
Isso tudo é muito organizadinho, muito certinho, é o produto das danças e contradanças do universo. Eis então que agora em setembro o sol vai se postar bem em cima da gente. Para esta região aqui na faixa do Equador, o resultado disso vai se refletir nos amanheceres mais cedo, na maior intensidade do calor, e na sombra do poste.
Tenho acompanhado a sombra do poste ao longo do tempo. Na Pedro Miranda, bem ali na parada onde ficava o antigo Shangrilá, em dezembro do ano passado, a galera se escondia do sol formando uma cobrinha que se estendia no sentido da Escola Salesiana, rés ao meio-fio. Em março, a sombra andou e se lançou no rumo da parede, que se em outra época fosse, seria exatamente a porta de entrada do Shangrilá, quer dizer, ficou perpendicular ao meio-fio. E a turma que espera o Pedreira Lomas, acompanhando... Em junho, a bicha já tava do outro lado, se propagando no sentido da feira da Pedreira. Agora em setembro, como se movida por uma libido atávica, a sombra se aproxima novamente do traçado que iria (um dia) dar na porta do Shangrilá. Este é o bailado do universo que a gente testemunha mais de perto. Quantos segredos, quantas respostas, quantas deduções mentirosas este ir e vir da sombra de um poste suscitou, quantos embaralhos fez na minha cabeça, quantos por quês fez surgir... e quantas vezes perdi o ônibus pensando nessas coisas sem sentido...de sombra, de sol e setembros e chãos e humores esturricados e dias de calor, Raimundo; e quantas inquietações pelos vagares desimpedidos do mundo? Raimundo, Raimundo, por favor, não derrete não!



sábado, 6 de setembro de 2014

crônica da semana -xendengo

Passa pra semana
Esqueçamos por um instante o ECA porque a melhor parte dessa história é uma cobrança que fiz lá no Xendengo.
É que mamãe, por algum tempo atuou no ramo do crediário. Fez uma compra grande no comércio atacadista, arrumou não sei donde, um cearense danado de bom, dado ao negócio de porta-em-porta, mandou confeccionar os cartões do Crediário Santa Luzia e mirou no rumo das vendas. Severino, que além de santo de romaria, era mascate aprumado, botava pra chulear nas andanças pelas ruas da Pedreira, cheio de belengodengos: a rede no ombro...panelas de alumínio alçadas pelas mãos fortes. E vendia que não era fácil o galego. Ele se esforçava porque a primeira prestação era dele. Ele vendia e eu cobrava. Eu era o famoso ‘prestação’. E me esmerava nos cartões todos arrumadinhos, amarrados com um elástico encardido de suor. O trato com a clientela previa o pagamento ser por semana. Fosse o valor que fosse. E alguns eram tão pouquinhos, hoje fosse, a paga seria coisa de 5 Reais. Mesmo assim, com alíquotas gititas, ainda tinha freguês que me deixava na mão. Nem bem os meninos me anunciavam “ mãe, chegou o prestação” e a freguesa já vinha me despachando, “ah, meu filho, ainda não saiu meu ordenado, passa pra semana, tá”. Eu pegava meu lápis, com borracha na ponta, apagava a data daquele dia, e anotava a data de ‘pra semana’, no cartão. E assim eu ia me virando de prestação, nos finais de semana anotando os ‘por conta’ e os ‘em a ver’, nas contas do Crediário Santa Luzia. Recebendo um pingadinho aqui, outro ali, me batendo pelo circuito da Marquês, no sábado, que terminava lá perto da mata da aeronáutica e concluindo a pisada no domingo, rompendo os domínios da Sacramenta, fazendo arrodeios imensos pra me livrar da matilha ensandecida de Totós, Blaiques, Baleias e Tubarões, que comigo inticavam.
Eis então, que havia um cartão que eu estava me enjoando de apagar e mudar a data, chega minha borracha estava gasta só de ser usada naquela cobrança. Contava já com três semanas, que eu passava religiosamente naquela casa e nada. Era só o velho e indigesto ‘pra semana’, pela fuça. Quem me recebia era a mãe, que nem era devedora de verdade. O compromisso era das meninas da casa que eu nem sabia, mas depois, por força do ofício, fui saber que eram moças que labutavam em “casas de divertimento, pra não dizer outra coisa” (palavras de mamãe).
E foi assim que eu, menino, fui bater no Xendengo.
Depois de uma tentativa zerada, pra’quelas bandas, em casa, mamãe falou que uma das meninas tinha mandado recado para eu ir cobrar no dia seguinte, no trabalho dela. Mamãe deu a letra e lá eu me abalei pra Gaspar Viana numa tarde quente de segunda-feira. Entrei no Xendendo feito um foguete, fui lá no fundo, indaguei. A menina veio com o numerário apenas de uma prestação. Ah, sacrista! Reinei. Mais de três semanas de atraso e fez só uma quita. Saí voado lá de dentro, varando o escurinho do salão. Bem na porta, errei a passada e pisei de com força no pé de uma das garotas que sentada estava na batente. Pra quê. Ela me mandou uns elogios impublicáveis, deu uma cusparada na minha direção e quando fez a menção de levantar, eu abri na carreira. E ela atrás de mim, me chamando de filho disso, filho daquilo. Dobrei a esquina da Presidente Vargas, atravessei pro lado do Palácio, ganhei a Manoel Barata, espavorido.

Só parei de correr quando não mais a avistei no estirão atrás de mim. Tava na baba. Os cartões do Crediário Santa Luzia molhados e o elástico que os envolvia, agora mais encardido ainda de suor. Na carreira, perdi meu lápis com a borracha roída na ponta.