sábado, 27 de abril de 2019
crônica da semana - aos emboléu
Aos
emboléu
A cachoeira
do Juruá, a mais braba daquele trecho do rio, havia ficado para trás. No rumo
de cima, ainda excitadas, mas bem mais comportadas, as águas se juntavam em
canal único, de fluxo ligeiro e compacto. Nos bateríamos com corrente forte, e
com manobras arrojadas da rabeta, por uma boa meia hora ainda, até chegarmos ao
bordado de lagoas rasas e calmas à margem direita do Xingu. Lá as lagoas exigem
habilidade do barqueiro para desviar das pedras escondidas no leito do rio. Foi
num desses lajeiros do fundo que a hélice da lancha bateu e travou o motor. À
menor pressão de uma das discretas corredeiras, a lancha alagou e embicou de
bubuia descendo o rio.
Quando
a avistamos, deu pra perceber a peleja do barqueiro se agarrando ao casco. Lutando
para não perder a vida nem a embarcação. Um choque ver aquilo. A lancha vinha
aos emboléu, com a parte de proa pra fora d’água. A outra metade, onde ficava o
motor, era arrastada afundada. Demonstrando a calma exigida para administrar
aquela situação e valendo-se da parte emergida da lancha, o barqueiro seguia
descendo as corredeiras até que aparecesse socorro. A providência, entretanto,
tinha que vir antes que ele chegasse à grande cachoeira do Juruá. Aquela ali,
não admitia heróis.
Deu-se
a providência e nós aparecemos.
O
rio Xingu é do bem.
Mas
parece que naquele dia cobrava, cautelarmente, a conta pelas agressões que se
anunciavam num futuro próximo.
Para
mim, que subia aquela parte do rio sempre com indisfarçável encantamento,
aquela cena foi marcante. Senti um desalento, uma tristeza, um medo que em todo
tempo navegando aquelas águas, não havia sentido.
Nunca
me ocorrera desconfiar de espécie ou qualidade do Xingu. Era o meu lugar de
raras felicidades. Tudo me dava. Água muita, peixe de não caber nos currais,
paisagens inacreditáveis, recantos mágicos, registros preciosos da presença dos
nossos ancestrais gravados nas pedras.
Em
todo canto o Xingu exibia riqueza. A impressão que eu tinha era que se a gente
arranhasse uma pequena formação argilosa enferrujada ao pé de qualquer
barranco, arriscava vir uma fagulhazinha de ouro amarela brilhante presa na
unha.
A
jóia arqueológica também me mundiava. Por vezes refiz a trajetória das nações
indígenas do Xingu, seguindo o rastro de cerâmica enterrada em sítios
abandonados. E, pelo que percebi, as peças marcavam a migração dos povos,
sinalizando a caminhada desde as praias adjacentes ao rio Amazonas até as
reservas atuais do Parque Nacional, lá pros lados do Mato Grosso. E essa
reconstrução, esse caminhar das tribos em direção ao planalto, me desencavou em
pessoa melhor, mais crítica. Me fez buscar perdões pela interferência que
causamos e que provocou a expulsão dos verdadeiros donos daquele paraíso.
O
rio era meu local de trabalho, meu escritório. Batia ponto em qualquer prainha
na companhia de tracajás e jacarés. Nem tinha medo. Tinha sim, um
deslumbramento que não se media pela maior das fitas métricas.
Enquanto
via a canoa descendo alagada e aquele homem colado a ela, resistindo, eu esfarelava
pensamentos e deixava um cuí de culpas atapetando a lâmina d’água do majestoso
rio.
Nos
aproximamos, recolhemos o barqueiro, rebocamos a lancha para uma barra e
seguimos viagem. Admirando. Respeitando o Xingu que desde a serra do Roncador,
é lugar de raras felicidades.
sábado, 20 de abril de 2019
crônica da semana- santospés
Os
anos de chumbo, o santospés e a cabocla
A
notícia viajou a jato, da baixada ao centro da Pedreira. Um caso horrível de
ser e de saber. Coisa estranha de dar medos e arrepios.
A
mulher não resistira à ferroada do santospés.
Foi
vítima de um piolho de cobra também conhecido como lacraia, centopéia,
minaperna ou formiguenta. Encontraram a mulher roxinha da silva.
Já
ia pelos seus 30 anos de formosura. Como se usava dizer, era encorpada,
grandona de tamanho e beleza. Cheia de jeito e viço. Traços singelos e
caboclos. Sorriso farto. Olhos solidários. Simpática de posturas e conversas.
Os cabelos iam dar na cintura e eram o destaque naquele arranjo caboclo.
Lançavam-se arrogantes sobre os ombros, descaiam simétricos pelo corpo,
partidos cuidadosamente com o bailado dos dedos, que iam deixando como marcação,
um traço esbranquiçado infértil, no alto da cabeça. E se potencializavam indisciplinados
para o encandeamento de tantos apreciadores. Uma plumagem negra, sedosa,
compacta, emoldurando a grande dama que já ia além de trinta anos de formosura.
Era conhecida e admirada no bairro.
Contam
que após lavar a louça do almoço, fez uma pequena faxina, escorreu a água do
alpendre, desceu para o quintal e desentupiu a vala que escoava a água do
jirau, que desde a última chuva, estava por acolá de entulho.
O
calor estava da gente correr doido , às duas e poucas da tarde. Um vento
amornado pegava carona no leito do igarapé do Zé e subia a Pedreira envolvendo becos
e passagens. Ela morava do outro lado da Doutor Freitas.
Após
as prendas, asseou o corpo, não se enxugou totalmente. Vestiu somente o vestido
de chita com flores grandes vermelhas. Atou a rede, deitou-se, refrescou o
corpo aos embalos. Um ritmo gostoso. A escápula marcando o compasso. Ronc-ronc.
Ronc- ronc. Ronc...Ronc. Adormeceu com a água secando no corpo, com a aquela
sensação meio que mentirosa, sugestionada, de friagenzinha boa.
Adormeceu
com os longos cabelos para fora da rede, com aquela plumagem sedutora
encostando no assoalho.
As
cem perninhas da lacraia escalaram o cabelo da mulher. Mimetizado, o bicho
estirou-se bem na vaga esbranquiçada que dividia o cabelo da cabocla em duas devastadoras
ondas de sensualidade. E de tal forma que, de longe, poderia ser confundido com
inexplicáveis tranças.
No
silêncio da tarde mormacenta, ferroou.
Tão
potente, o veneno, que a mulher arroxeou na hora.
A
companheira dela, que chegaria mais tarde, ainda tentou acudir. Não havia mais
como. Horrorizada , arrancou a centopéia daquele nicho fatal, entre gemidos e gritos alucinados. O
peçonhento sumiu quicando ondulado, pelo terreiro.
Rodinhas
de conversa se formaram do outro lado da rua. Pequenas aglomerações repercutiam
tamanho assombro. Eu, moleque curioso, me enxeri pelo meio dos outros.
Quando
dei por mim, as sirenes já estavam apitando próximas. Da ladeira da Dr. Freiras
dois Tomara-que-chova despejaram uma penca de soldados. E foi borrachada pra
todo lado. Peguei um pescoção, mergulhei no igarapé do Zé e só boiei no meandro
da Passagem D’Outel. A ordem era dispersar curiosos e fuxiqueiros. Nos anos de
chumbo, o governo não iria permitir ruídos sobre uma tragédia envolvendo a
formosa cabocla que tinha uma companheira, santospés peçonhentos e mormaços da
tarde.
sábado, 13 de abril de 2019
crônica da semana- a terra é azul
O
céu de Beinho
A
noite é uma rede trançada em maleáveis mistérios, em medos indistintos.
Para
mim, era só uma passagem, uma etapa turva do dia. O custo era eu bater o cartão
nas onze badaladas do relógio de ponto e correr para pegar o cristo do Jurunas-Conceição
ou do Sacramenta-Humaitá, que meu espírito acuado dava lugar à inspiração e se
alinhava com a possibilidade compensadora do encontro.
(Minha
mãe estava à minha espera, recolhida junto ao muro que definia os limites da
vila em que morávamos. O radinho de pilha captando as ondas da noite, trazendo
lembranças, fazendo o tempo passar).
Às
vezes, a espera ia além do combinado.
E
a noite não era mais aquela rede tecida em suspeições. Redimia-se dos
vaticínios e voltava-se à luz dos refletores do Baenão. Ocorria quando tinha
jogo e a gente esnobava das artimanhas noturnas, nos adiantando para assistir
ainda aos 15 minutos finais da partida. Era o momento em que os portões se
abriam para a saída dos torcedores e a minha patota de empacotadores mirins, de
supermercado, subvertia o fluxo: enquanto uns iam embora, nós ganhávamos a
arquibancada alegres, satisfeitos e atentos aos eletrizantes lances finais do
jogo, torcendo pra sair um golzinho no qual pega. Para nós, tanto fazia qual
dos contendores assinalasse um tento, o que importava era a euforia de estar na
arquibancada depois de uma jornada de trabalho.
(Mamãe
não arredava o pé. Sabia que, se demorava, era porque não resistia a alguma
tentação de menino. Era comum que nessa espera, tivesse a companhia do Beinho,
nosso vizinho, que espiava como notívago, os movimentos da rua. Beinho já era
um rapaz taludo, beirava os 18 anos. Tinha só pai, motorista particular de um
barão lá das bandas de Nazaré. Não estudava, virava os dias embaixo do pé de
acácia mexendo com as meninas a caminho do Donatila. Cultuava o corpo. Tinha
braços musculosos, fazia ferro. Eu achava que ele tinha as pernas finas.
Exibia-se em arremedos das coreografias do Bruce Lee e fabricou o próprio nunchako,
com o qual fazia demonstrações para a molecada da Mauriti e a gente ficava
bestinha de ver tanta agilidade, não escondendo o receio de, uma hora, aquela
torinha escapulir das ligeirezas dele e fazer uma brecha na cabeça de um de
nós. Tinha uma aproximação bem maior com o resto da galera da rua, nas disputas
de peteca. Ele era da elite. Triângulo cheio. Disputava só acima de cem
petecas. Era também uma das maiores vítimas do alaússa. Metódico que era, raramente
encerrava a disputa tecando a peteca de jogo do adversário. O negócio dele era
retirar as petecas de dentro do triângulo, uma por uma. Ia enchendo a lata, só
na caté. Acabada a peleja, ele ostentava uma lata por acolá de peteca e era
nessa hora que vinha um mal elemento e dava o alaússa. Beinho não ligava. Salvava
o que podia do seu patrimônio que se espalhava pelo chão. Sabia que no dia
seguinte recuperaria tudo de novo. Só na caté).
As
estrelas que ponteavam o tisnado da noite eram luzidias, cintilantes, vítreas.
Baluluscas, colombianas, ovaladas, raras, matizadas. Muitas e quantas vezes,
quando chegava do trabalho, depois das onze da noite, estavam ao pegado do muro
me esperando. Mamãe, ouvindo as mais belas canções, no radinho de pilha;
Beinho, olhando pro céu minado de petecas.
sábado, 6 de abril de 2019
crônica da semana- teve uma hora que... mãe
Teve
uma hora que...
Um
coração solitário este meu. Meio índio, meio onça, um isso de gemido, um aquilo
de esturro, um esgar desconfiado sempre escapando. Máquina enzimática,
hormonal, liquefazendo o cotidiano, metabolizando versos e prosas.
Comportado
em engrenagem fibrocartilaginosaóssea tão cheia de ardores e repentes que:
Teve
uma hora que lembrei de minha mãe
Foi
no instante em que apareceu um ser humano recortado em tomos translúcidos,
chega deu pra ver direitinho o sexo, o jeito e o futuro dele. Nas partes
ósseas, dava pra enxergar o tutaninho encravado nos núcleos rosados.
A
mim, ficou clara a trajetória daquele indivíduo, traçada sobre um futuro
retorcido. Em alguns pontos, esmigalhado. Em outros, íntegro e lúcido. Como é a
vida mesmo.
Tinha
batuque e silêncio naquele porvir. Sobras de pecado, detritos harmônicos,
secura e distância nas possibilidades vindouras. Mas não eram escolhas. Eram
imbricações. Uns destinos sobre outros em contatos forçados. Lá ao longe, uma
canção antiga. E ganhando o infinito, pobre de razões, delgadas fatias
destacadas do ser humano.
Foi
nessa hora que lembrei de minha mãe.
Antes
recolhido, que solitário, este meu coração. Meio alado, meio amordaçado. Um
isso de filhinho, um outro tanto de cristão. Máquina assintomática, cordial.
Benzendo o ilusório, rascunhando insignificantes questões. Em torno do éter
almiscarado.
(E
quando lembrei de minha mãe, reconheci a música como a arte animadora de nossas
vidas. Em casa sempre tinha música. De manhãzinha, um radinho era acomodado
sobre a pernamanca que atracava a parede da cozinha. A rosquinha plástica de
ligar fazia aquele barulhinho enroscado, a freqüência era captada e as ondas
traziam para dentro de casa as canções mais belas.
Noutras
vezes, era nas altas horas da noite. O radinho ficava apoiado no muro que
limitava a vila que a gente morava. Meu horário de trabalho era até 11 da
noite. Pegava o cristo do Sacramenta-Humaitá ou Jurunas-Conceição. Mamãe à
entrada da vila, não se aquietava enquanto eu não aparecia lá no início da
Mauriti.
Tinha
12 anos e uma rotina árdua. Em casa, ia tomar banho, procurar o que comer,
passar um pedacinho pra fazer a digestão, depois é que ia me aquietar para um
sono reparador. E tão prudente e necessário, que quem disse que eu acordava na
hora de ir para a escola. Saía de casa aos empurrões. A cara toda amarrotada, olhos
vermelhos e remelentos. Minha escola era prum lado, eu pegava o ônibus pro
outro. Sentava lá atrás e dormia. A gazeta dava a conta certa de duas voltas no
Pedreira Lomas. Voltava pra casa sempre mais cedo do que o esperado. Inventava
uma desculpa, ficava por ali fazendo menções, almoçava e ia trabalhar. De
noitona, tudo de novo. Mamãe rente o muro, o radinho no programa de seresta do
Joel Pereira, o cristo, e eu varando na ponta da rua. Fiquei reprovado por
faltas, esse ano).
Em
verdade, retorcido, esmigalhado, é este meu coração. Meio alheio, virtualmente
atento. Um isso de indeciso, outro tanto de pretensa exatidão. Manufatura de
gente, germe se multiplicando no vão da vida.
Tutaninhos
róseos, pedaços de gente bandada encontrei pelo caminho. Tão cheios de amores,
sinceridades e canções que...
Teve
uma hora que lembrei de minha mãe que não se aquietava enquanto eu não
despontasse na Mauriti.
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