terça-feira, 28 de maio de 2013

Ex companheiro

Ex companheiro

Você
Como    como
Como    como
                     Você
                             Como   como
                             Como   como
Penetra
Um   as   um   se
        Um   um   o   a   um
        Se
       A   a   a
      Então
     O   o   o
Em
Ferro vultos gotas
Posse bicho menino
                           Sol
Brisa pouco gata
                   Água
Grito som pão
             Nome
De          mim
Fervendo
Correndo
Chovendo
Atrás         de
Mim
Da mata      do bruto
Da luz
Da sina      do muito
De
Mim
Do cio
         Do rio
                  Da dor
                            Que some
                                           Que come
Os homens
        



segunda-feira, 27 de maio de 2013

Crônica remix- marcos e o pé de

Marcos e o pé de feijão



1 Eu vou ser sincero. Se eu fosse o coronel Marcos Pontes, a primeira coisa que aconteceria comigo, assim que eu pudesse mexer a minha falangeta, livre daquela cadeira do módulo, seria esquecer de tudo. Da missão, dos zilhões de dólares gastos, do nome dos meus camaradas russos, do feijãozinho. Feijãozinho, que feijãozinho? Depois de desembarcar na estação a minha preocupação maior seria achar a janelinha. Cadê a janelinha?
2 Ah, e iria me encantar por horas, dias, ali, debruçado na janelinha da nave, que nem a Januária do Chico Buarque, fitando a Terra lá de cima. Esquadrinhando o planeta azul a cada voltinha que ele desse, no seu caminhar silencioso de oeste para leste, atrás de cenários reconhecíveis: O Himalaia, lá s’está o Himalaia, os mares interiores da Europa, a revolução das águas no Cabo da Boa Esperança, a fantástica abertura do oceano Atlântico (sai daí nuvem, sai daí!), o Brasil, o Brasil! o recorte da ilha do Marajó, Belém, Belém! no seio da grande baía (e com uma certa imaginação, a Pedreira do samba e do amor), o serpenteio dos rios amazônicos e a exuberância da floresta, a arrogância dos Andes, Ah, as pacíficas águas Rapa-Nui. Os retalhos continentais da Oceania, os arcos de ilhas orientais, o tecido aporcelanado dos pólos...
3 Depois que já tivesse acompanhado as idas e vindas da Terra umas quantas vezes, daria um tempo para experimentar o barato da falta de gravidade. Flutuaria de um canto a outro, feito menino besta, e de passagem ainda tiraria um sarro do camarada russo 'ei, Pavel Vinogradov, ei Pavel, ah, se Newton visse isso. Ah, se ele visse, heim, Pavel!, diria enrolando a língua, afinal se aqui na Terra já é difícil pronunciar o nome do camarada, avalie lá em cima, sem uma atmosferazinha de pressão para ajudar.
4 E quando eu já estivesse irremediavelmente inebriado, consumido, de tanto prazer, daria um tempo para rebater tantas críticas à minha viagem. Tiraria do bolso o grãozinho de feijão e partilharia com os camaradas as experimentações científicas sobre a germinação do bichinho lá em riba. Pronto, daria um sorrisinho igual ao do comandante Marcos Pontes e posaria de herói.
5 É bem verdade que depois que eu voltasse à Terra, por questões óbvias, não poderia dar mais um passo além das fronteiras do Cazaquistão sob o risco de ser imolado, com toda razão, por um respeitado cientista brasileiro revoltado com tanta bandalha com o dinheiro público, mas aí, aí eu já teria realizado meu sonho.
6 Que puxa! Para a felicidade geral da Nação, eu não sou o Marcos Pontes, e ele, apesar do sorriso congelado nos lábios, levou bem a sério a história do feijãzinho, à revelia dos vácuos explicativos para aquela missão.
7 Mas me dou o direito ao sonho. Para quem as experiências com as alturas não passaram de umas caminhadas arriscadas pelos galhos das ameixeiras que grassavam nos quintais da Mauriti, umas visitas ao terraço do Manoel Pinto da Silva, e de uns vôos nervosos (pra não dizer aterrorizantes) pela TABA a baixa altitude, sonhar em entrar em órbita da Terra, ver o nosso blue planet lá de cima, viajar pelo espaço (ora, se um vôo pela TABA já era muita emoção, imagine uma Soyuz); flutuar sem gravidade, desconhecer o que é estar de cabeça para cima ou de cabeça para baixo, desamarrar-se do geotropismo, seria, sem dúvida uma experiência libertária.
8 Ver a Terra lá de cima...um sonho.
9 Mas em todo caso vou plantar um pé de feijão ali, no canto do alpendre, pode ser que, como na história do João, ele me leve até lá .

sábado, 25 de maio de 2013

crônica da semana - geólogos


Achados e perdidos


Foi num piscar de olhos. Sérgio Kleinfelder fazia o mapeamento da margem direita do rio Xingu. Martelo na mão, caderneta, bússola, imaginação, rigor científico. Eu o acompanhava. Neste dia, dispensei os guias e fiz questão de ir pro campo com o ele. Quis fazer as honras da equipe. É até hoje, um grande amigo. Um profissional refinado. Sabia que, com ele, estava agregando conhecimento. E no mais, era um bom papo ali, naquelas matas espessas e, até então, inexploradas. 
Mas foi num instante: Estava de olho no eixo da picada, quando ouvi o Sérgio martelando um bloco bem distinto de rocha um pouquinho pra dentro da mata. Não resisti à curiosidade e fui até ele. Baixei os olhos para ver direitinho as estruturas, os minerais e dar a atenção às informações que o geólogo me fornecia sobre aquele afloramento. Quando levantei os olhos, agora mais rico de saberes sobre o embasamento cristalino do Xingu, já era, estávamos, absoluta e irrevogavelmente, perdidos. 
Apelamos para a serenidade. Usamos as técnicas dos perdidos. Localizamos uma drenagem e seguimos o curso à jusante. Marcamos o caminho quebrando uns galhinhos, porque tudo parecia ser muito igual e seguimos a nossa prosa na paz, sem nos agoniarmos. Passamos por alagados, achamos outras rochas, localizamos o sol e confirmamos posição. Quando achamos uma picada, orientamos nosso mapinha e varamos certo na minha equipe que sondava um interflúvio. Passamos pela galera, altivos, presunçosos, como se o domínio das situações limites nos fosse íntimo. Recebemos um “tardes”, demos um “olá, como tão as coisas” e ganhamos o rumo do acampamento. “tardes”?, Já era de tarde? Passamos umas quantas horas perdidos e nem nos percebemos. 
Sérgio Kleinfelder, por esta passagem na nossa história, nos mostra com afinada veracidade como é a vida do geólogo. Um profissional que atua em ambientes emaranhados, diferenciados. Com o total controle de suas ações, amparado constantemente na razão, mas desmedidamente entusiasmado pelo que faz (mesmo perdidos, perceberam que narrei a investida de Sérgio, martelo em punho, a outros afloramentos). Diante da adversidade, de um desencontro momentâneo, onde o pânico, o desânimo ou mesmo a ansiedade por uma saída daquela mata, pudessem regrar a conduta, Sérgio quedou-se à natureza do pesquisador, do estudioso. Aproveitou estar perdido, para se achar. 
A vida me proporcionou estar junto desses caras admiráveis. Minha formação profissional me levou a atuar no campo da Geologia, como técnico. Depois, na Universidade cisquei, cisquei e cheguei até o 5º semestre do curso de Geologia (Nessa época conheci os capas, os deuses da Geologia no Brasil, aqueles ilustrados que eu pensava que só existissem nas bibliografias de grandes compêndios). Aliada então, a esta minha admiração pessoal, particular, pelos ‘médicos da terra’ (frase do Sérgio Kleinfelder), há em mim este bem fracionado que se reflete no fato de eu ser 50% geólogo. E esta parte do que sou é fundamental para definir meu jeito de ver (procurando simetrias), sentir e interpretar as artes do mundo e os engenhos da natureza. É um jeito d’eu me achar, quando estou perdido nas entranhas da dúvida ou da descrença. Na quinta-feira, a geologada está em festa, e como é feriado (não porque se comemora o dia do Geólogo, esclareço, mas bem que poderia ser) eu aqui já me convido pra essa gegé, porque geólogo, sabe-se, quando não está se perdendo e se achando, na densidade das matas; quando não está se maravilhando com a beleza e os mistérios interiores da Terra, sabe-se, geólogo, abonado pelo rigor mundano,  bebe. 

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Crônica remix - alguém cantando


Alguém cantando
Ali, à borda da minha sujeição, da minha imprecisão. Alguém cantando. Tomando minhas forças, confortando-se com minhas entregas. Encantando alguém.
Música no lar. Vésperas e antegozos. Suores canalizados, odores volatizados. Intenções: sins, sins, sins...nãos, nãos, nãos. (Negações). Instintos arrefecidos. Silêncio. Silêncio. Eu quero ser feliz. Eu quero, imponderavelmente, ouvir alguém cantando e ser feliz.
Alguém cantando mil versões. Um feixe de culpas retrô. Poesias retrô, filmes retrô, amizades, amores, vaidades, vontades e desejos retrô. Tudo retrô. Retroagindo, Escandalizando a modernidade. A insensível modernidade, enfim. Eu quero não querer viver de novo aquele amor. Quem me dera te apagar a luz no passado e tatear o escuro indefinido sem ti. Sem te sentir. Embora queiras. Os filhos, não nascidos, queiram; os sorrisos à beira mar, queiram (e nem sei se é mar aquela sensação líquida que desanda em mentiras e veleidades, naquele meio de mundo); a luz e o Elias queiram (aquela quando, clandestinamente, te ilumina, e este, quando fraternalmente te beija a face). Se eu pudesse te roubar a luz...
Alguém cantando versos visuais, usuais. Quase silenciosos como as vestes que vestem os monges. Vestes displicentes, bordados foscos de Guevara, dramatizados, romantizados. Quase ensurdecedoras lágrimas de morte. Tum-tum do coração. Batidas febris. Tambores ocos. Gritos roucos. Loucos. Loucos. Numa história com final feliz. Num tom abaixo, é certo. Humilde, desejoso. Mas feliz. Inexplicavelmente feliz.
Alguém cantando, apontando rumos decididos na noite escura. Becos ao longe submersos no vácuo, no vazio, no incrivelmente leve e frio. Melodias sem fim, doces. A aplacar a dor da solidão.
Alguém cantando. Música no ar. Quase Deus. Quase seda. Fina, suave. Quase um nada aconchegante, inócuo, inerte. Quase sonho, fantasia indolor. Cândida explosão no meu coração. Coisa de bar. Samba que chora, sabe, Bossa. Flauta, sax, solos de cavaquinho, Pixinguinha... Na noite sem par. Harmonias que sofrem e fazem sofrer porque não consigo te esquecer estirada naquela mesa. Ausente. Eternamente ausente. 'Divina e graciosa estátua majestosa'. Mãe. Para nunca mais. Para um doloroso nunca mais. Para uma eternidade muito longe, parece que para sempre, incompreensivelmente, inaceitavelmente, para sempre. Que não acaba. Mas que me acaba e me finda, e destrói o que de bom tenho em mim, e enterra meu sorriso nas lamas à margem da bruta urbanidade do nosso rio. Que atrita minha generosidade e benevolência nos declives agressivos e nas traiçoeiras pedras que se justapõem às nascentes do rio Guamá quando ele, corajosamente, golpeia o contrito relevo de Ourém e de Capitão Poço. Um nunca mais que me larga e que me dispersa em mil pedaços ao vento incerto, irrestrito, geral que sopra pras bandas errantes da baía do Guajará. Uma eternidade que me aceita mundano, insensato, incorrigivelmente apaixonado. Apaixonadamente bêbado. Lúcido e translúcido. Sem hermetismos morais. Mas sinceramente inquieto com a longevidade de descorteses sofrimentos, de abrasadores pesares. Ciente da vilania de cínicos carinhos e de gris confidências.
Alguém cantando me lembra da existência daquele mundo do jamais imaginado, do nunca experimentado, do absolutamente impossível. Daquele amor que não pode ser, daquele bem que se esconde. Do mal que se mostra, que vinga, mas que um dia se esvai...
Alguém cantando. Sonho e realidade. Fetiche e implosão. Abençoada voz que me liberta a alma para além do além.
Alguém cantando não é alegre nem triste. É Maria.
É Alba Maria.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Crônica remix sininhos


Ouvir Sininhos (Apenas um Poema, Nada Além De)

Eu tenho mais que Assistir a um espetáculo de dança Às margens da Guajará agitada Ao sol do entardecer E me encantar com a versão do corpo Para o som do saxofone de Morelenbaun
Eu tenho mais que Experimentar uma cerveja nova Atinar para o som de um instrumento musical tecido com chavinhas e pecinhas de metal E procurar a paz
Eu tenho mais que Considerar, criteriosamente As possibilidades de reconciliações urgentes Tenho que, definitivamente  Resignar-me com os rachas inconciliáveis Fazer pouco barulho E procurar ouvir sininhos
E depois Sempre depois do espetáculo de dança De melodia De pôr do sol E da baía agitada Renascido   Tenho que rever essas coisas de Reconciliações e rachas Com generosidade E um descontinho providencial Para pequenos pecados E tudo assim Convenientemente convencido Como prevê a emoção Ou deliberadamente confuso Como admite a razão
Eu tenho mais que Passar uma tarde toda em casa Como há tempos não Convidar a mulher, os pequenos Jogar o colchão de casal no chão E me divertir a valer Me emboletar com as crianças Virar carambela em câmera lenta Contar piadinhas e historinhas infantis Fazer gracinhas Interpretar o Lobo Mau “Psiu, psiu Chapeuzinho, Sou eu, o guardião da floresta” E imitar O narrador do desenho animado “Cuidado Jambo Cuidado Ruivão!”
Eu tenho mais que Numa noite dessas Sair por aí catando estrelas Aprendendo histórias de estrelas Nomes de estrelas e constelações Órion, Plêiades, Sirius, Antares, Aldebaran Canopus, Cão Maior Tenho mais que ser menor E mais humilde Que a estrela de brilho mais tímido Me fazer eclipsado Contrariado Como a lua cheia Mas tenho que, enfim, brilhar
Eu tenho mais que Entender o que é a água para mim A água da torneira Da chuva Da poça da esquina Do riozinho Do oceano A água juvenil A água benta A água rara Água ouro Prata e platina A água que Corre dos olhos tristes Tenho que entender E cuidar
Tenho mais que Me virar todo santo dia Para ter o pão Mas tenho que olhar pros lados E cultivar searas Trigais Calores humanos Alimentos e almas Tenho mais que Cultivar a vida E a esperança no futuro
Eu tenho mais que Procurar ouvir sininhos Também, doce ilusão No meu violão Me dedicar mais e aprender a tocar Ronda Tocar Rouge E um cult brega Sem patrulhamentos ou Descortesias oportunistas
Tenho mais que Me ater a frivolidades românticas Mandar flores sem quê nem Pra quê Uns bombonzinhos de chocolate finos Beijinhos na praça, mãos dadas E um ursinho de pelúcia Com gravatinha borboleta De aniversário
Tenho mais que Desfiar o verbo amar Profusamente e Sob qualquer circunstância Mesmo sob tortura Ou risco de vida Mesmo julgado E condenado pela gramática Eu amo tu Eu amo tu Eu amo tu E ser feliz porque Tu ama eu.

Eu tenho mais que No domingo Descolado Desligado Sereno Livre Um tanto santo Um tanto cego Um tanto atento Um tanto incerto Um tanto breve
Um outro tanto eterno
Neste dia Um tanto melodia Um outro tanto pôr do sol Neste dia  Dia do Senhor Penitente Redivivo Tenho que Querer viver Só de amor.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Crônica da semana- balanço


Balanço

Desde que tempo, ando meio piradinho com esta história de completar 50 anos de idade. Tava meio grilado (grilado aliás é uma evidência linguística e comportamental do meu status etário, pois que é gíria distal. De um passado psicodélico). O certo é que andei meio inquieto esses dias: cobranças do que não fiz, medos de um futuro amadurecendo, reflexões sobre rotinas e obrigações abrigadas na rima dos ‘enta’. 
Confesso que balancei apavorado, ainda mais quando fiz uns ensaios nas contagens de tempo. Quando percebi que indo para a escala do século, 50 anos representam 10% de cinco séculos, pirei. Éraste! Cinquenta anos é bem pertinho de 500 anos. Se a gente considerar ainda que o Homem moderno (este, dotado de telencéfalo desenvolvido e polegar opositor) zanza pela Terra, há uns 100 séculos, meu Deus, sinto que sou muito íntimo dos primeiros sapiens e quase contemporâneo de Isaac Newton! A minha valência (não imediatamente, ressalto, houve de eu arbitrar ao espírito a decisão de sofrer ou não, e essa resposta me custou alguns indecisos e dramáticos instantes), foi atinar que estou a milhões de anos além do primitivismo das amebas. Foi aí que me aquietei. Deixei de lado os instintos animais que me assolam (as ações imediatas isentas de finalidades), apelei pra razão (admitindo um porvir de máximo respeito às ponderações cronológicas que a vida exige), tomei termo e recebi de bom grado, o meu meio século de existência (ou 10% de 5 séculos ou ainda 50 PPMs de  uma eternidade possível). Vou lutar pela vida, porque, pelo que torna e pelo que deixa, temos nos dado até bem... 
Eu já plantei uma árvore. (O ginásio da UFPA estava repleto de jovens estudantes. Não tão jovem, contando já com meus trinta anos, entrava pela primeira vez na Universidade. Era aquela reunião com os calouros de 1993. Doutor Camilo Viana, vice-reitor, na época organizou um novo jeito de receber os calouros. Comandou o trote ecológico. Houveram os pronunciamentos de praxe. A direção da instituição falou exaltando e projetando obras, tempos bons para a Federal. Falou também o Wanderley, representante dos estudantes, jogando um pouco de água fria no entusiasmo da galera, revelando o estado crônico de desleixo e abandono a que é relegada a educações neste nosso Brasil varonil. Na saída, cada um recebeu uma viçosa muda de árvores de espécies  nobres e arrumou um cantinho nos estirões pra plantar um futuro verde para a vida e para o mundo. Sempre que passo pelo lado da biblioteca, aquele que dá pro rio, fico olhando, na doce ilusão de reconhecer a arvorezinha que plantei há 20 anos ali). 
Já tive um filho. (O certo é que tive dois pequenos pra lá de maravilhosos. Nesta conta fui além do dito popular. E tão marcadamente que meus meninos revelam um pouco da realidade diversa que eu defendo e acredito. Duas crias. Um homem e uma mulher. Um neguinho e uma de tez escandinava. Um explicitamente doce e outra tímida e misteriosa. Um atleta viciado e rueiro, outra severa e meticulosamente caseira. Os dois agradavelmente ostentando personalidades independentes e sinceras. Objetiva e veementemente humanas. Com seus maus e bons intrínsecos, com valores em construção dinâmica, incessante. Duas das minhas mais brilhantes invenções de mim. Resultantes da “ânsia da vida por si mesma”). 
E já escrevi um livro. (Também aqui, o ditado popular me é menor. Já escrevi uns quantos. O mais recente, lancei agora na Feira do Livro). 
Então estou quite com o asseverado dito popular que diz que o homem tem que plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. Me estou até bem com a vida. 

quarta-feira, 15 de maio de 2013

crônica remix- salve 14


Um Beijo e Um Abraço
Um beijo e um abraço é o presente que sempre peço no Dia dos Pais, ou no Natal, ou no dia do aniversário.
Ensaio com os meus filhos os passos que me foram ensinados pela minha mãe: não quero nada de nada. Coisas como aquele velho par de meias bege ou a obsoleta caixa de lenços quadriculados, não. Ou um sapato pai d’égua, de fivela doirada no ladinho, não. Ou um jogo de toalhas compradas no mais chique armarinho da Pedreira, não. Nem o profuso celular. Quero só, mesmo, é o amor  e o carinho de meus meninos.
Não que eu exagere na conduta franciscana. Nada disso. Eu até que gosto de uma sofisticaçãozinha aqui e outra ali, de quando em vez: uma rodada de chope e bolinhos de bacalhau num cantinho refrigerado do shopping, ou o bom disco do Buena Vista Social Club, embrulhado em papel de presente, pra completar a festa. De vez em quando, mas que não me venha a reboque de simbolismos, que não me venha substituindo sentimentos. As minhas frugais vontades são heranças deixadas pela minha mãe, ah, a minha mãe...
Passei dez anos andando por esta Amazônia exuberante, cavucando meios de vida. A minha mãe sempre ali, longe aos olhos, mas pertinho, com a sua bênção.
E no dia do meu aniversário, em especial, ela reproduzia  aquela  crença de um presente ser sempre diferente de bens materiais, e exercitava esta profissão de fé  com uma cartinha ( pura emoção para mim, lá no longe), que iniciava sempre assim “ Salve 14 de maio, dia em que recebi de Deus o meu maior presente: meu filho...”
Neste instantinho só, a minha mãe me derrubava. Lá  no ermo amazônico em que eu estivesse, me recolhia pávulo às ternas lembranças daquela mulher franzina e portentosa que daquele jeitinho, sem recatos ou timidez declarava sua paixão. E, orgulhoso, pendia eu, inerte, vencido pela enorme saudade da mamãe, para um canto solitário do meu coração a debulhar lágrimas distantes.
Mas o tempo, heim. Implacável a rotinizar as mais puras intenções. Nos anos seguintes a cartinha se repetia inadivertidamente: “Salve 14 de maio...” E assim, pelos dez anos que viramundiei por aí. E eu nunca que reclamei. Eu, heim, Deus te livre e guarde, nem pensar! Sempre fiz a maior questão de receber os escritinhos meigos da mamãe, no padrã o dia- do- nevessário. E a sensação era sempre a mesma. A de filhinho queridinho, amamãezado. Distante. Pertinho. Sozinho no mundo, mas com a certeza da bênção maternal a me confortar.
Aprendi, então, com minha mãe (porque ela  fazia questão de explicar direitinho pra gente, quando perguntada sobre qual presentinho desejaria ganhar, o quê lhe bastava, realmente) a pedir um beijo, um abraço e muita paz em qualquer ocasião. Aprendi o quanto um gesto simples se traduz em amor imenso, quando, perdido pelas selvas amazônicas eu era encontrado pelas palavras carinhosas, sinceras, abrigadas no aconchego de sua cartinha. Que iniciava, invariavelmente, desse jeitinho: “Salve 14 de maio...”

sexta-feira, 10 de maio de 2013

crônica da semana- flor mamãe


Flor mamãe

Eu sempre fui amamãezado. Até hoje. É sentir uma dorzinha, ter umas tristezas, a garganta arder, que gemo e procuro o colo da mamãe. “Quando me encontro no calor da luta”, é a ela que recorro. Mamãe já não está presente fisicamente, mas a lembrança dela me fortalece, me suporta as missões, me garante as conquistas e me apara nas quedas. É a minha heroína, a deusa que me redime e me conduz. 
Uma estrela que luz, Luzia. 
Quando conheceu meu pai, lá nos barrancos do rio Acre, minha mãe era uma bebê. Tinha 16 anos e era normalista em Xapuri. Do casamento com aquele seringueiro, teve 5 filhos. Duas meninas morreram: Roseana e Maria do Perpétuo Socorro. Esta minha irmãnzinha, que foi batizada às pressas com o nome da santa que acode e auxilia, nasceu peca, roxinha, roxinha, e não vingou. Viveu algumas horas, somente. Foi enterrada dentro de uma caixa de sapatos aos pés de uma árvore secular, no terreiro varrido que margeava o barracão. Roseana, mamãe dizia, era bela, cheia de graça e jeito. Já andava, falava e sorria fácil, quando morreu de doença que ninguém sabe qual. 
Das veredas de seringa, varamos no Ver-o-Peso, eu, Mariazinha, Ana Valéria e ainda, minha amada irmã Sônia, que era filha só do seringueiro Manoel Sodré e que mamãe, sem o menor ressentimento, pegou pra criar. 
Viveu o casamento enfurnada, Luzia, entre as ruas de seringa, as águas ferozes do igarapé Ina e o mistérios da mata densa. Morava no seringal e, embora professora formada, tinha uma rotina de dona de casa. Meu pai, junto com meus tios Rubem e Rui, era arrendatário de uma área enorme, controlava a vendas de borracha e o movimento no armazém. Cuidavam dos negócios. A organização social básica do seringal admitia a distribuição de famílias em localidades chamadas ‘colônias’. À flor mamãe, cabia a função de ser madrinha dos filhos dos ‘colonheiros’ (conheço assim, e não colonos, como se usa dizer). 
Mamãe era paraense, passou uns tempos no Acre, casou-se. Gerou nosotros acreaninhos e quando voltou a Belém, viemos pegados na barra da saia dela. Cada qual com o seu casaquinho, porque esperávamos encontrar aqui o mesmo frio que fazia no Acre. As razões pelas quais deixou o seringal e voltou a Belém, são irresolutas até hoje. Eu por mim, penso que veio, porque não iria se submeter à sensaboria de uma vida de senhora do barracão, submissa e compreensiva. Veio para a sua Belém, para ter brilho próprio, para tecer seu destino, para ter sua obra e sua graça. 
Pouco tempo depois de desembarcarmos no Ver-o-Peso (não lembro bem, sei que era tempo de Brasil il il! nos radinhos de pilha e gols de Pelé), meu pai seringueiro morreu. Foi aí, que aquela mulher que só sabia ser madrinha, surpreendeu. Superou-se em façanhas e criatividade para criar os quatro pequenos. Papai, que era um homem do momento, que vivia o dia apenas, não nos deixou nada (a não ser muita saudade). 
Nos últimos anos de vida, mamãe, abatida pela tosse e pelo gogo excretado, já não tinha a mesma tenacidade, mas continuava objetiva. Quando eu arriava prostrado no fundo da rede, com dor de garganta, era batata. Ela enchia uma colher com uma meleca viscosa de mel de abelha, andiroba, limão. Pertinho de mim, tremia, derramava a metade da mistura e me breava todo. Enfiava a colher na minha boca e ao retirar, puxava assim, deslizando a superfície da colher sobre meus lábios, nariz, olhos, cabelos. Após esta sessão tensa, ríamos a valer. N’outro dia eu amanhecia bonzinho da silva. Mamãe me curava. 
Sou amamãezado, se tenho dor, choro, gemo, chamo mamãe e Luzia se faz luz, me ilumina, e me dá colo. 

sexta-feira, 3 de maio de 2013

crônica da semana - flor de maio


Flor de maio


É prosaica a passagem em que fomos instalar uma lâmpada em casa. À época, eu fazia, exatamente, um curso de elétrica. Peguei papel, régua, lápis HB, tracei meu esquema unifilar, consultei meus apontamentos, cobri tudinho com lápis 2B. Quando terminei o projeto, Edna tinha feito toda a ligação e a lâmpada até acesa, já estava. E eu fiquei patetando com o meu desenhinho na mão. 
Edninha, no dito dia de hoje, completa mais uma primavera. E eu me avio em manifestar aqui a minha admiração pela minha Flor de maio. 
No princípio, éramos amigos. Mas antes de tudo principiar, ela foi minha aluna na colônia de férias da Escola Salesiana do Trabalho e assim, no lampejo, me vem a imagem daquela adolescente vestindo o uniforme simplesinho da LBA, pingafogueando entre as quadras de Cemitério, Vôlei, jogando Macaca, nas manhãs ensolaradas da Sacramenta. 
Anos depois, nos encontramos numa feira de arte que nos proporcionou toda a graça e a plástica libertária na dança de Jaime Amaral. Não era mais aquela garota serelepe da colônia de férias. Era uma mocinha jeitosa e atraente. 
Daí pra frente, viramos amigos. Nos batíamos atracados por tudo quanto havia pela noite de Belém. Tocaia, Adega do Rei, Bar do Parque, Bar brincadeira (aquele bar da 14 de abril, aonde eu, pela primeira vez na minha vida, vi balões pretos), tertúlia da New Wave, sambas e pagodes  na Embaixada de Samba Império Pedreirense e happy hours no Pisco. Na época, eu trabalhava por aí, pelo mundo, mas era só eu triscar o pé em Belém, de folga ou de férias, que a gente marcava pra dar um rolé, 
Confesso que não sou santo nem nada e, uma ou outra vez, nos embalos de sábado à noite, eu me quedava aos enxerimentos, mas era, repreendido elegantemente, com um “ti quieta, somos amigos”. 
Até que um dia, durante o show do Manga Verde, na reinauguração do Mercado de São Braz, nos animamos além do escrito. Um espetáculo. Os músicos arrebentaram. Não deixaram ninguém parar quieto. Pulamos, dançamos, nos abraçamos e... nos beijamos suados... 
No outro dia cada um com o seu sem jeito. Nos perguntamos o que seria dali pra frente, já que éramos tão amigos e, no calor daquela noite, não havíamos resistido um ao outro. E a resposta veio rápida, meio óbvia, e segura. Dali pra frente, seríamos namorados. 
Juntamos nossas tralhas, de vera, em Macapá. Poucas tralhas, diga-se. De mais importante, e funcional, tínhamos uma rede e um rádio. O suficiente para vivermos momentos maravilhosos, à beira do Amazonas ao som de Pink Floyd e Janis Joplin. De volta para Belém, ratificamos nossas juras. Vieram os pequenos Argel e Amaranta. Formamos nossa família. 
É a mulher que ‘me suporta e chega a me amar’. Tem personalidade forte, decidida, objetiva. Não desaba diante do primeiro obstáculo. Reconheço na minha companheira o espírito lutador e vitorioso. Sei como é a nossa sociedade e o quão difícil é para uma mulher, garantir espaços, granjear sucessos. Ano passado, Edna me deu uma lição de vida. Depois de duas gravidezes seguidas, as ocupações com os meninos, com as pendências diárias, rotinas e prendas vulgares, minha namorada quebrou preconceitos e realizou o sonho de um curso superior (formou-se em Matemática, superando, inclusive este um aqui que vos escreve, que entrou antes dela na Universidade e estacionou no quinto semestre de Geologia, para nunca mais de lá sair). 
Minha companheira, Edna, hoje, completa mais uma primavera. E eu me avio em manifestar aqui a minha admiração por esta mulher fascinante. E, confesso que tenho me esforçado para ser digno de, ao menos, desatar-lhe os cordéis das sandálias. 

quarta-feira, 1 de maio de 2013

apresentação -roger


Apresentação

A volubilidade do rio contagia o homem.
A adaptação exercita-se pelo nomadismo;
Euclides da Cunha em: Amazônia – um paraíso perdido

Confesso: fui preparado para trilhas científicas, não para letras, mas aceitei o convite para esta “apresentação” por admirar o bom verbo. Como gentileza gera gentileza, debrucei-me sobre estas páginas que, no bojo, desvelam no tempo presente a relação híbrida de homem-espaço-linguagem: o Homo scribere e seu ethos.
Inicialmente, tal como cartógrafo, tracei o meridiano de Sodré no mapa-múndi. Vi nele, até chegar aqui, trajetória nômade em correnteza de rio. Os rios, na mesma tez de sua pele, infiltram seus poros e os barrancos tonificam suas veias até brotar palavras que sobranceiam cidades.
Da margem onde tudo começou está o mundo do rio Acre: Xapuri. De lá, Sodré arrumou as malas e, rio-acima-rio-abaixo, montou em proa de batelão e dobrou o Purus no rumo leste do Amazonas, prumo da Aurora. De permeio, andou por Rondônia admirando o estuário do Madeira; também pelo Xingu para ver encanto de gente, corredeira e diversidade do solo. Depois veio Macapá, onde degustou gengibirra ao ritmo do marabaixo até ficar taludo das ideias. Por fim aportou em Belém ao contornar, vento em popa, a Ilha do Marajó. Depois de arriar as malas nesta última margem, bateu sentimento. Viu ali sua aldeia e recostou a orelha para sentir o Ver-o-Peso arfar. Escutou sopro de vida. Por fim subiu no coletivo e parou em lugar onde casas e homens humildes deixam braços de rio escorrer por leitos de muitas pedras. Assim é a sua Pedreira, bairro.
De sulcar rio até sua aldeia, onde Sodré enterrou seu coração, nasceu “O rio do meu lugar”. A obra tem um narrador comum, de cidade, transmutado de DNA amazônico, cujo gene literário é incrustado de rio, cais e paragens. A partir desse mote, Sodré passa a conviver com seu locus carregando uma narrativa desamparada do vazio comum. Tal como nosso inverno, ora se vê rajadas polifônicas de Dalcídio Jurandir e Guimarães Rosa, ora é chuvisco prosificado repleto de tiradas ao modo de Rubem Braga e García Márquez, ilustres moradores de sua estante.
Para se ler “O rio...”, vista-se então de garimpeiro. No giro da bateia, a cada fitada de olho reluzirá uma pepita: o áureo verbo nativo. O livro deixa boiando o linguajar de um povo entregue ao vernáculo que parece impingir personalidade às palavras. Lembra um código filogenético baseado nas relações entre os habitantes do interior e da capital; de outrora e de hoje, cada qual com suas intervenções. Sem bulir e ainda respeitar o estereótipo alheio - o cabano-, a obra, repito, veio bem a calhar homem-linguagem-lugar como se fosse junção de rios, ou melhor, a própria Baia do Guajará como metáfora de “aprender novas palavras e tornar outras mais belas”, diria nosso Drummond. É a própria flor do grão petalada de linguagem jeitosa que se lambuza de domingo em plenas manhãs de sábado e sai encenando uma cidade em reconstrução arquitetônica, artística e lexicográfica. 
Portanto, só me resta esperar que os leitores sintam-se beneficiados, a modo de também permear pela simplicidade de um autor achegado à filologia diletante, dado o chamegoso realismo urbano bem-humorado.
Mergulhem fundo e se banhem dessa leitura. Lê-lo é afirmar que a palavra - distante da invenção da roda e próxima da descoberta do fogo - é a maior criação, recriação e recreação do homem. É magia, alumbramento.



Roger Normando
Médico acreano