sábado, 25 de dezembro de 2021

crônica da semana - roupa nova

 Roupa nova

Criança quer brincar. E deve brincar na idade que tem. Seja velhinha no cuidado da varanda, seja no berço apreciando o móbile. Seja homem maduro apanhando o ônibus lotado no final do expediente. Ou executiva independente livrando-se dos sapatos depois de um dia de formalidades. Criança de todas as idades, serelepe e pidona, encosta o nariz na vitrina. Expande o olhar, localiza no fim da prateleira, a bola Rivelino, as pecinhas de montar, aquele conjunto de mágica. Deseja arvorinhas coloridas de Natal, uma lata de petecas, o ludo com aquele dadinho novisco, um tubo de varetas coloridas. Tudo cobiça. Ah, o autorama! Quem me dera um aquaplay! Reina pegar aquele mundo de brinquedos, colocar num saco e ganhar as ruas de sonhos.

Conto que não canso por aqui que minha perdição é a bola. E que  até hoje, não resisto. Às vezes, perambulando mesmo por corredores de lojas chiques e formatadas nos recatos do ar refrigerado, nem somo com as etiquetas. Se passo ao pegado das gôndolas, desço uma bola, dou umas solas, realizo uma embaixadinha, uso, presunçoso as duas pernas, aparo naquela amortecida de fina categoria, de colar a pelota no peito do pé e depois devolvo a redonda batizada para a exposição. A turma da loja, reclamar, reclama, mas releva por fim, ao conferir o velhinho aqui dar à luz as presepadas com a bola, como se criança sem regras fosse.

Bato e rebato que no Natal, as crianças têm que ganhar presentes. E o mimo tem que ser da parte da brincadeira, peças lúdicas, artes do divertimento. Algo que as faça sonhar, liberte a imaginação, ative os sensores da felicidade. Porque nada mais insosso que, em plena manhã do dia 25, sair para a rua de mãos vazias. E ainda ter que responder com aquela sensalzice, pra garotada que se diverte a valer com seus brinquedos, que ganhou sim um presente. Ganhou uma peça de roupa nova.

Minha geração era ali, ali para enfrentar esse desconcerto. Penso que havia uma regra básica que definia não ser importante para criança pobre, ganhar brinquedo. Tinha que receber do bom velhinho, haveres objetivos, de fins práticos. De vera era mais uma ajuda para viver os dias. Uma roupa de sair, um par de sapatos que servia para ir à escola e a todas as outras partes, aquele pacote escolar, lápis, borracha, cartilha universal e um caderno de papel almaço com pauta. Tudo deveria ser útil e do uso diário.

Mamãe era dada a essa arrumação. Né querer falar não, nem cobrar a criação que recebi de minha santa mãezinha, mas daquelas vezes que fiquei sem brinquedos de Natal em troca de roupa nova ou coisa que lhe valesse tal e qual, tenho a maior bronca. Me arrepio de banzo só de lembrar as manhãs inertes do dia 25.

Na lembrança me ocorre, também, as campanhas da Escola Salesiana. Dona Mariazinha conseguia inúmeras doações ao longo de todo ano. A garotada pontuava a cada carimbo que recebia atestando a presença no oratório salesiano. No dia de Natal trocava os pontos pelos objetos doados. Eu atuando como voluntário, e contaminado pela frieza da serventia, procurava convencer os pequenos a levarem redes, panelas, louças, víveres o máximo que os pontos pudessem comprar. Ainda bem que não ligavam pra mim. Escolhiam era o que tinha de brinquedos e saiam de lá transbordando de felicidade.

Os anos passaram e sarei dos sentimentos vãos. Aviso logo, que se quiserem me presentear, façam-me feliz no cuidado da varanda e me aviem com um brinquedo. Nada de roupa nova. Vale o alerta de que tenho desejos frugais. Sendo uma bola...

sábado, 18 de dezembro de 2021

crônica da semana - Tim tim

 Tim-tim

Sabe como é que é né, bate um vento dali, eu me enxiro e me inscrevo na toada. Rezo no tom e na voz do absurdo, do destrambelhado, do sem tento. E essa barulhada, então...Um avião zoando perto, pousando de barriga na água guajarina ludugera de triste fim. Mas faz tanto tempo!

Acho que foi um sonho. Por outra, parece que foi só um pensamento criado. Nem foi tão dia desses não. Foi também longe guajarino no tempo e no acontecido.

Rondônia tem muita ladeira e eu vinha na direção de uma picape F75, descendo com mais de mil. A estrada lisa que nem sabão. Aí, pisei no freio. Pra quê. A bicha saiu de banda, feito lagartixa no azulejo. Naquela hora foi tudo e nada. Velocidade e transe. Desilusão e esperança. Queda livre, atrito dolorido de rasgar o coração. Saudade da minha mãe. Da Guajará de novembro no puro banzeiro, das histórias na calçada plena Marquês só na piçarra e sem luz no poste. Vagalumes. Luzes pipocavam aqui, acolá, como se fossem sol do meio dia em São Brás. E a ladeira não acabava nunca. Encandeei. Fiquei ceguinho da silva, sem ver o fim, o barranco, um monturo, um pedral pra dar de encontra e me livrar do desembesto. Descia era com beira. Nessa época tinha amigos novos, de toda parte do Brasil. Os pernambucanos frevavam; cariocas sambavam. Aqueles do sul sapateavam a chula, mineiros cirandavam do jeito deles. Paulistanos performavam algo lírico vanguardista. A picape levantou vôo e recordo que senti uma malemolência, um banzo porque minha turma, aquelas amizades recém conquistadas, imaginei, não mais veria.

Deu duas voltas sobre si, a picape, no ar. Pensei que ia apagar, mas agüentei num passamento que me embrulhou o estômago e me esbugalhou os olhos. Vi o Marajó. Barquinhos, remos talhados na madeira leve, igarapé entrando pelos campos. A água salobra no fim da praia. As luzinhas pararam de pipocar. Os olhos arderam e a picape mergulhou no leito do igarapé que se estirava frio e fundo no limite da ladeira. Silêncio.

Sonho também com um palito de fósforo se apagando. A chama sumindo e aquela fumacinha subindo numa sinuosidade debochada. Destibei! E a picape boiou do tabacuri. Subi junto.

Era tudo verde, calmo e bonito. Era tudo sereno e limpo. Era um vale vago, de uma porosidade eterna. Era tudo sendo nada. A última chance, a única oportunidade. Tudo e nada naquele instante. Um galho orvalhado pela chuva que havia caído à noite toda, castigado a estrada e transformado aquela ladeira numa pista ensaboada, passou em gentil oferecimento bem na minha janela. A água estava no pescoço. Suspirava lembranças e uma força inexplicável. Suspirava súplicas. Agarrei o galho com toda a força que meu universo de gentes, de amores, de lembranças, de saudades, de seduções e crenças, pôde me ceder, e me puxei pra fora da picape. Era tudo verde e mata, água correndo veloz e céu parado. Havia sinais de Iarás, benzeções, mães d’floresta, senhor dos ermos, deus dos afogados, anjo protetor de picape que desce ladeira descontrolada e morubixaba piedoso. Tudo e nada. Um avião zoou barulhento ao longe na história ludugera e triste guajarina. Eu criei asas e saltei para o barranco. Alguém me esperava lá pras bandas de não sei donde. E era pra lá que eu ia. Voltei alheio pelo caminho do feio. Subi a ladeira e sabe como é que é, né, bateu um vento dali, o ar aquecido secou minha roupa e arremedou o assobio de uma canção antiga que diz ser tudo e nada, tão somente, desencontros infinitos.

Tim-tim para quem sobreviveu ao tabacuri.


sábado, 11 de dezembro de 2021

crônica da semana - Jade

 A Gata encantada

De mundiar, cobra grande sucuri, mundia. Jibóia enrolada que se desenrola na frente da gente e ganha rumo pela mata, também. Jade, até que desconfiava. Não tinha certeza. Agora tenho. Mundia.

A gata aqui de casa, no último domingo, me pôs doidinho, de zunhar as paredes, por causa de um encantamento que inventou. Sumiu, no acanhado vão do lar. Desapareceu sem deixar pista.

Para mim ela é a Jade. Ganhou este nome pouco antes da pandemia. Não achava legal, tanto tempo com a gente, ser parte da comunidade e não ter um nome formalizado. Minha iniciativa não foi abonada pela família. Pra todo mundo aqui ela ainda é só a Gata.

Apareceu em nossa vida, se bem contados, pra mais de 15 anos atrás. Já chegou soberana. Olhos azuis, pelagem macia e farta, de uma cor creme-amarelada-pálida. Dengosa e amiga. Era vezeira na vilinha em que a gente morava. Marcava território na casa de um, mais com pouco, na casa de outro. Tinha o quintal como universo absoluto e certo. Escalava o jambeiro, equilibrava-se no muro suburbano e bambo, perseguia pequenos insetos e era o terror da passarinhada. Gerou filhotes que logo achavam lar. Meu compadre, o poeta José Miguel Alves, adotou o Diego, um malhadinho aventureiro sem termo, e o levou para as aventuras no condado do Maguari.

Pelo que vinha e pelo que ia, foi estabelecendo preferências e acabou se misturando conosco, que morávamos na casa dos fundos. Nem contamos conversa e colocamos mais um pratinho (de ração) na mesa. O bom pai ajudou e compramos um aparelho de ar condicionado. Foi a conta para que nosso amor se garantisse na eternidade. Era só ouvir o bip, que Gata subia até nosso quarto e procurava um tapetinho, a fofa almofada ou mesmo o cantinho da parede para se aninhar naquele friozinho. Quando não, se emboletava na cama, com a gente mesmo. Nunca pensei que fosse dada a encantamentos.

Minto, desconfiei quando, este ano, mudamos de casa. Estranhou. Miou miados pranteados. Nos deixou duas noites sem dormir, a bom ninar a bichinha pelos cantos da casa, no sofá, no chão do quarto. E, o sinal que maldei sobrenatural: nos dois dias de tensão, as pupilas de Jade se mantiveram dilatadas. Fosse no claro do dia, ou na escuridão da noite, os olhos eram profundos, infinitos, ausentes. No terceiro dia tornou dos abissais estranhamentos e ressurgiu querida e amiga, bem pertinho de nós, cheia de carinhos e afetos. Com aqueles olhos vivos, azuis, qual petecas colombianas.

Domingo é meu dia de faxina em casa. No último, todo mundo saiu e eu me danei nos vasculhos e vassouradas. Quando dei a aspergir detergente no piso, coincidiu de Gata deixar o pequeno alpendre que dá pra rua e voltar para a sala. Na certa, se incomodou com o cheiro, ou algum pingo atingiu seus pelos sedosos. Passou por mim e virou em direção aos quartos. Adiantei a tarefa. Lustrei, passei pano, enxuguei, quando dei fé, quedê Jade? Fui atrás. Nos quartos, no vão da janela. Voltei pra sala, cozinha, alpendre. Nada. A casa que moramos é pequena, duas corridas de vista define tudo que tem volume ou se move. Olhei embaixo das camas, atrás do guarda-roupa. Dentro dos armários. Nem sinal de Gata. Parei todas as tarefas. Quis ligar para a família, partilhar minha angústia. Não segurei o choro.

Depois de um tempo de desconsolo, resolvi revisitar todos os locais. Encontrei Jade embaixo da cama, lugar que eu já havia procurado pelos menos duas vezes.

A Gata, até que desconfiava. Não tinha certeza. Agora tenho. Mundia.

sábado, 4 de dezembro de 2021

crônica da semana - a esquina do céu

 A esquina do céu (mil anos)

A minha janela dá pra’queles rumos da baía, lá pra donde o sol se põe, o dito lado oeste do globo.

Na madrugada, no ritual que antecede a minha saída para o trabalho, me entrego a uns instantes de silêncio, soprando o quentinho do café que eu mesmo passo, e me permito apreciar o longe naquele inevitável instante em que o céu é tragado pelo claro do dia.

Da minha janela, xícara na mão, aqui, acolá um golinho de café, o fumegado da fervura recente e o cheirinho bom, ainda temperado pela umidade doce da madrugada, procuro um cantinho no céu, uma esquina um ponto de encontro e reflito, fantasio, faço perguntas para o tempo e para os vagos do horizonte. De onde viemos, para onde vamos?

Descendo no horizonte, despedindo-se da noite, as Três Marias me olham e me brilham respostas. Nosso partir e nosso chegar é exato nesta esquina, é este o combinadíssimo ponto de encontro. Aquelas estrelinhas alinhadas, que todos nós conhecemos fazem parte de uma constelação que todo ano, a essa hora, no mesmo tempo em que realizo o ritual que antecede a minha ida para o trabalho, mergulha no horizonte ali pras bandas da baía, o dito oeste. E é tão certo este evento, tão constante esta interação cósmica, que se daqui a mil anos, se eu ainda estiver praticando a mesma rotina, lá estarão, no início de dezembro, as Três Marias, só me tirando bem de longe, atentas às minhas reflexões e sumindo, desaparecendo na luz tangente.

Esta coincidência, reconhecemos como a passagem de 365 dias. Contamos um ano a cada vez que completamos um ciclo ao redor do sol, e no caso aqui do meu cafezinho na madruga, reconheço também o espaço. Este ponto de encontro em que ocorre o mergulho das Três Marias no mar do dia, com a folhinha já beirando o mês de dezembro.

Será que estarei aqui passados mil anos?

Este ciclo contado no espaço é a volta que a Terra dá ao redor do sol. Novecentos e tantos milhões de quilômetros a serem percorridos desde agora, até ano que vem. Nesta trajetória percorremos o zodíaco, o caminho dos animais. Cada mês uma imagem nova na minha janela, de manhãzinha. Agora, iniciando o mês, ao pegado das três estrelinhas, desce no horizonte, a constelação de Touro. Mais um mês e, Gêmeos. Depois, Caranguejo, na sequência Leão e assim por adiante... Até chegar dezembro de novo e...

Ano passado, me arrumei todo. A curva da Covid estava em queda, havia uma mobilização de vários setores para a volta da vida dita normal. Soprei meu cafezinho na janela, perscrutei o céu. Não vi estrelas. Minha avaliação médica não indicou a volta ao trabalho presencial. Pressão inquieta, por acolá, ainda por ser controlada, acho que por causa do sofrimento herdado da primeira onda. Dois meses depois a curva subiu de forma tal que pensei que não iria parar mais. Houve aquele período de calamidade em março quando o país registrou mais de 4.000 mortes por dia.

A sistólica descontrolada, penso que me salvou. Tenho a impressão que se estivesse voltado ao presencial ano passado, eu teria morrido de medo, de susto ou da bicha mesmo.

Na segunda, vou esfriar meu cafezinho ali na janela e agradecer aos dezembros, aos encontros que temos nesta esquina certa e inevitável. Vou revisitar os longes, as reflexões. Vou ficar só tirando as Três Marias e vou dar um até logo quando não mais me responderem com um brilho simpático. E vou mergulhar mais um ciclo neste caminho dos animais. Vivo.

Será que estarei aqui ainda que passados mil anos?

 

sábado, 27 de novembro de 2021

crônica da semana- Margarida

 Margarida

Não sei do sucedido que causou aquele alagamento no canal aberto para receber os tubos. Virou piscina da molecada. Era a época de instalação da rede de esgoto naquele circulado que envolvia Marco e Pedreira. A Mauriti tinha rasgos imensos salteados a cada quarteirão e bem na frente da vila em que eu morava tinha o buraco com água jorrando aos emboléu. O custo era a turma chegar do intermediário, ajeitar uma merenda e logo, logo, mergulhar no buraco. Lá pelas tres’orinhas, quando os operários chegavam, a animação era grande. Moleque pulando de cabeça, o mais péssimo brincando de afogar o mais quietinho, outros só nas braçadas de um lado a outro. O carão vinha sem regra: “saiam daí, seus filhos de deus, seus filhos duma...”. Era o capataz da obra que engatava uma carreira na nossa direção com uma varinha pra lambar na costa dos renitentes.

Mais tarde, embaixo do pé de acácia, a gente com as pernas gris de tuíra, tentava entender o extremismo do capataz que dava um ralho envolvendo o pai eterno, e ao mesmo tempo nossa mãe, no caso, com a mesma ocupação de Maria Madalena. Eu, heim, homem destrambelhado aquele.

Em todo o estirão da 25 de setembro, havia o grande rasgo. Eu, que era da onda, da traquinagem, e que estudava pra’quelas bandas, quando me invocava, mergulhava naquele subterrâneo à altura da Lomas e só saia na frente da escola. Era uma aventura. Dava arrepio, uma desconfiança, mas era bom que só aquele sumiço terra à dentro.

Na maioria das vezes íamos em dois, eu e Tato. Ele, pariceiro de rua e de caminhadas pra escola.

Não me agradava muito da companhia.Tínhamos algumas diferenças. Era da bandalha, do ramo da malinação. Conservava costumes bizarros. Já beirando os 15 anos, ainda saía de dentro da casa dele, do puro dentro de casa, pra mijar na rua, na beira da sarjeta.

Tato tinha um comportamento que exigia da nossa patota, um pé mais atrás. Arrumava confusão, inventava molecagem pesada no escurinho da noite, como riscar carros dos vizinhos, assustar mulheres desacompanhadas arremedando uma cobra com réstia de cebola debulhada, ou simplesmente jogar pedra a esmo, atingindo telhados próximos. Inúmeras vezes fui dormir com o couro quente por paga das aprontações de Tato.

À noite, quando a gente se aprontava e formava um grupinho para uma prosa leve na frente do Paraíso, ele procurava destaque. Atentava tanto a mulher da bilheteria, que ela não agüentava, andava até o portãozinho e o deixava entrar. As conquistas o faziam sentir-se poderoso, irresistível. Era do calibre dele. Mesmo fazendo o bem, parecia que ele fazia o mal. Alguém precisava ir pro Ponto Socorro, com um golpe no pé, era o primeiro a se apresentar com uma bicicleta para levar o acidentado. Se tinha uma subscrição era ele que levava o papel de casa em casa. No entanto, o vi partir o beiço de um menino com um soco lá no Areal e depois esfregar a cara do pequeno numa poça de água imunda por causa de uma rixa à toa na pelada do sábado, e ainda outra vez, o presenciei quebrar um garrafão de cinco litros de vinho e espalhar os cacos em todo o gramado da Duque só porque a grade dele perdeu a vez.

E era com ele que eu me embrenhava pelos corredores subterrâneos da rede em obras. Era a década de 70, os anos de chumbo. Quando chegávamos à escola e formávamos para o hino, ele era um menino patriota, com todo entusiasmo, com todo o garbo, com toda a pose. Era o primeiro da fila. Sentido, mão no peito a entoar “do que a terra, margarida”.

sábado, 20 de novembro de 2021

crônica da semana- a cidade é assim

 A cidade é assim

Quando as torres do mercado do Ver-o-Peso se mostraram em estilo  art noveau  no horizonte, eu, molequinho das brenhas do Acre senti um pressentimento, uma coisa, uma aproximação de almas.

Foi bater o pé no galpão Mosqueiro-Soure e me senti em casa. A cidade entrou em mim com todos os seus temores e prazeres e eu entrei na cidade querendo ser semente, querendo germinar.

Belém para mim é liberdade e amor. Céu outro, brisa outra, de través, flanco oriental da Amazônia, vento nordeste, clima que subverte. Sopro de revolução que converte à fé mundana e à desconfiança sagrada. Um rio de verdade e intenções. Guajará, Guamá, rio-mar de desafios diários. De conquistas valentes, covardes frustrações. E calor. Muito calor.

Ando de prosa com esta cidade desde que tempo. Desde que desembarquei nas docas do Ver-o-Peso, nos damos a boas conversas. Sem faltas ou transbordamentos. Sem reservas nem afetações. Tudo na mais pura sinceridade. Não nos permitimos enganos.

Por essas intimidades e pelo desvelo que nos oferecemos, entendo. Entendo que os tempos são outros.

Já dei de tirar cismas e curiosidades sobre esta cidade. Virei e mexi cada cantinho e a qualquer hora. Ocorreu d’eu me perder pelas ruas oblíquas da Cidade Velha, e de me achar no emaranhado de canais na baixa da Radional. Sumi, certa vez pelas vielas do Jurunas e só me foram achar dias depois com um sorriso deste tamanho no rosto. Entre Telégrafo e Sacramenta, dei aula de Desenho. Tracei fiações semirretas de canções e triângulos retângulos de dança e ritmo. Pras bandas do Curió, assobiei melodias de encantamento. Em Terra Firme mergulhei Iara-Guamá no Tucunduba e boiei boto-Tucunduba no Guamá. Meu cantinho, indo de samba e vindo de amor é a Pedreira.

A cidade nunca fez zanga comigo. Vez alguma me machucou ou me maldisse. Caí em alguns buracos traiçoeiros, reinei com gangues e tribos, entojei antros de perdição. Amei antros de perdição. Reinei ódio e admirei de paixão. Reconheço reveses. Porém, penso que nos equilibramos eu e minha Belém. Na tristeza, na alegria, na pobreza, na riqueza, na dor... em companhias compulsórias e também em sagrada solidão.

Nunca tive medo de Belém.

O recolhimento e os novos costumes que nos são impostos pelo medo invencível do vírus Corona, desandaram a conversa boa que tenho com a cidade. E agora sinto um tiquinho de medo, um receio prudente dos repentes que esta cidade inspira.

Um medo novo. Uma atenção especial, Um detector de comportamento sempre ligado.

Voltei a ser rueiro após a segunda dose da vacina. Não aquele batedor de antes. Um rueiro bem mais comedido, limitado a caminhadas terapêuticas no bairro. Montado na equipagem esportiva, máscara, vidrinho de álcool e roteiro pré-definido.

Eis que na última caminhada, cruzei com um cidadão sem máscara e a poucos metros de mim, ele espirrou e assoou o nariz. Sequer cometeu aquele sacrilégio de limpar a mão no short. Passou por mim com a mão breada. Mais à frente, entrou num café e com aquele filme de assoado nos dedos, andou entre as mesas sem cerimônia, estendeu a mão, cumprimentou algumas pessoas (que depois levaram a mão aos seus lanchinhos). Acomodou-se no balcão, manuseou objetos. Fez o pedido. Eu, incrédulo da razão daquilo tudo, do outro lado da rua, só acompanhando aquela presepada e perdendo a vontade de completar o meu circuito.

E antes que me vejam acometido de uma crise de nojinho, avivo os alertas e as lembranças. A pandemia ainda não acabou. E Belém nunca me fez zanga.

 

 

sábado, 13 de novembro de 2021

crônica da semana - viva o sus

 Sonho americano (viva o SUS!)

Tem coisas que só vendo de perto, apenas espiando de palmo em cima ou conhecendo por depoimento e experiências de pessoas da mais estrita confiança, é que a gente entende e bota fé. A vida como ela é de verdade nos Estados Unidos é uma delas.

Esta semana troquei umas idéias com uma amiga que mora lá. E que passou uns dias em Belém, de férias. Procurei saber das maravilhas, das belezas, comodidades, do sonho americano. E, também, um pouquinho da ralação diária. O alvo foi a saúde. A amiga confirmou. Nada lá é de graça. UPA aqui e ali, não tem. Resgate, 192, nem pensar. Curativo nos postinhos, quite. Todos estes serviços existem, óbvio, e com a excelência americana. Ninguém deixa de ser recebido nos hospitais. Mas é só tornar do atendimento que a conta vem. E não é nada barato. É tudo na casa dos milhares de dólares. A amiga deu exemplo na família. Até hoje tem boleto pra dar definição ao final do mês por causa de um atendimento do companheiro dela. Imagino agora, nesta época de pandemia, quanto boleto não foi gerado, heim! Por lá, o que rola mesmo é o sistema privado. Planos particulares são os articuladores da saúde da população. Ocorre, segundo minha amiga, que mesmo boa parte da população sendo abrigada nestas carteiras de atenções, ainda assim, são comuns os casos, como o que ela experimentou, de o usuário ter o plano, mas ainda ter que arcar com um percentual no custo dos serviços. Penso cá com meus botões: um país tão liberal no trato da saúde pública tem que, necessariamente gerar muito emprego. De outra forma, sem estar vinculado a um plano empresarial ou sem bancar um modelo individual, como se cuidar? Como se manter ativo no mercado? De que jeito e maneira continuar vivo e respirando em caso de um revés?

Então, viva o SUS!

Desde a Constituição de 1988 é direito do povo brasileiro ter acesso aos meios que lhes garantam a saúde. E sem custos. Dali em diante, surgiram hospitais, unidades de bairro, centros especializados, atendimentos de emergência, tudo como obrigação de ser ofertado gratuitamente pelo Governo.

Antes, no meu tempo de menino, o sistema no Brasil arremedava o sonho americano. Acesso aos atendimentos de saúde, só aqueles que tinham carteira assinada e os seus dependentes. O Sistema era uma atribuição do INPS. Quem não tinha trabalho formal se atava como dava. Era cada um por si na terra do Saci. Em Belém, as consultas com o dentista eram naquele prédio à esquina da Presidente Vargas com a Osvaldo Cruz, que tinha elevador com ascensorista e porta pantográfica. O atendimento infantil, na Avenida Nazaré perto da Dr, Moraes, de onde saí certa vez de ambulância, com papeira, para a internação na Santa Casa. Na função de operadora de caixa contratada, mamãe tinha direito e nós, os acreaninhos, fomos no vácuo como dependentes. Depois que mamãe saiu do emprego, nos valemos de chazinhos, sebo de holanda pros inflamados e, nas horas de  precisão mesmo, do PSM da 14  e do Centro de Saúde. Eu, por mim, tomei muita Benzetacil e tirei abreugrafia, todo ano, no centro 3, da Pedreira para apresentar na matrícula da Escola Técnica. Nestes locais, administrados pelo município, não era necessário o vínculo formal empregatício. Nossa valência.

Muitas pessoas que conheço e que admiro estão vivas hoje, depois de passar pelos horrores da Covid-19, por causa do SUS. Estou certo: há o sonho americano. O rés-o-chão por aqui, porém, é mais embaixo.

Então, viva o SUS!

 

 

terça-feira, 9 de novembro de 2021

domingo, 7 de novembro de 2021

crônica da semana - Mingau de miriti

 Mingau de miriti

A gente se socava naquele vão dominado pelas artes práticas da turma de Edificações. Nem era nossa barra, mas houve uma época que programaram umas aulas naquele pavilhão. Ao largo e ao fundo, umas palmeiras altas, com cachos minados duns coquinhos corados de um castanho acetinado. Para nós eram pés de buriti. Embaixo das palmeiras, nos aninhávamos ao final das aulas, nos encantávamos com as criações do Hera da Terra e  caetaneávamos os versos doces de Cajuína.

Deu-se em outro tempo, que na beira de Abaetetuba, em manhã de feira pra lá de movimentada, fui levado a provar o mingau de miriti. Panelão quente, gente na fila, soprinhos sobre o fumegado fluindo da cuia. Quando dei fé, no canto da barraca, o cacho da fruta que era usada para fazer o mingau. Não me era o mesmo coquinho de colorido acetinado lá do corredor de Edificações! Pirei na parada. Buriti ou miriti?

Fui aos universitários da beira e fiquei com a notação que a experiência abona; “Só sei que toda a minha vida só ouvi falar em mingau de miriti. Fruta miriti, árvore, brinquedo, cesto, miriti. Ponte sobre o rio, tala, poema e poesia, conto da Neusa Rodrigues, miriti. Canto, vivência e dias ribeirinhos sob a bênção da palmeira santa”.

De lá pra cá, prosa que me dá ânimo é explorar a multifusão estética, as versões sensitivas do miriti. Se me der na telha, disserto, viajo nos traços (nas razões e também nas dúvidas de identidade-buriti) que esta palmeira enraíza na história das gentes, da beira e do centro.

Pelo Círio, cuidei de dar atenção aos brinquedos. Em casa dei o alerta para que se juntasse grana suficiente que desse para arrematar os espécimes possíveis. Há uma razão para este cuidado. A época é a oportunidade de conhecer tudo em quanto de miriti. Passada a quadra nazarena, o artesanato rareia na cidade. É a hora e a vez. Depois a gente não acha mais. Em visitas às feiras, virei menino pidão. Endoidei de tantos mimos. A família ressabiada, contava os tostões e pedia para eu parar com as manhas que, nem bem começava o passeio pela exposição, já se atiçavam. Por mim, enquanto não enchi as sacolas (apesar de reiteradas admoestações com um “tu não vem mais!”) com as mais tradicionais peças da produção artesanal, não me aquietei.

Agora em casa, todo dia aprecio uma obra. Presto reparo, admiro detalhes, contextualizo formas e expressões. Analiso a criação, os estilos, as combinações.

E deixa estar que no risco e no jeito das artes em miriti o que não se dispensa é a harmonização. Eu me passo! Antes de tudo, vem a escala. Adaptada, mimoseada. Nada é tão grande e o que pequeno é, agiganta-se na lembrança do cotidiano. Tornam-se miniaturas grandes em expressão e cor. E as cores, então, digue lá, suprimo. Tudo muito certinho e justo. Finos matizes que, ao mesmo tempo causam alarde e intimidade. Ofuscam e revelam-se. Esnobam e contraem-se. As cores pulsam. Estimulam os comandos da alegria adormecidos em nosso ser e a gente vira menino pidão.

A temática do artesanato em miriti fala a língua do povo. Peças e personagens do cotidiano ribeirinho são retratadas com uma pontinha de fantasia, no entanto, de faces verdadeiras e almas fecundas. A fauna, as casinhas de madeira, a roda gigante, os mitos amazônicos, o remo e o barco, a passarada. Os coraçõezinhos pendentes no móbile repassam um pedacinho do coração do artista para cada um de nós.

Na beira, vinga o verso doce. O mingau é de miriti e a palmeira é santa.

 

 

  

sábado, 30 de outubro de 2021

crônica da semana - o bom cristão

 O bom cristão

Ando revisitando alguns episódios de “Game of thrones”. Durante o recolhimento da pandemia, me resolvendo com a insônia, crises nervosas e muita tensão, desanuviei acompanhando as oito temporadas da série.

Agora, expandindo as atenções, mas não descartando um jeito de desviar das pressões diárias, tô salteando uns episódios e remendando impressões sobre detalhes, triscas da realidade nem tão fantástica representada em cada episódio.

Tenho cravado certo nas mais emblemáticas passagens. Para mim, uma sequência caprichosa, quando se quer entender como é realmente estúpido o poder, é aquela em que a rainha má, em colóquio denso com um dos ambiciosos vassalos dá um sinal de como a força e a obediência bruta se sobrepõem à astúcia e à erudição quando o riscado é dominar, fazer e acontecer. Diante da afirmação presunçosa do vassalo de que a sutileza e outros elementos pautados na arte política são suportes eficazes para se exercer o poder, ela em dois ou três lances mostra que pode ser de outro jeito. Aciona um pequeno pelotão da guarda, dá comandos aleatórios, inconseqüentes, sem fins ou regramentos; e sem uma resistência sequer, vê todas as suas determinações serem cumpridas. Inclusive aquela para intimidar e constranger o interlocutor. Saiu, a rainha, de lado com ar triunfante e deixou a cena com uma mensagem clara. Não precisa de inteligência para subjugar alguém. Basta um enfileirado com espadas afiadas em punho e a ausência total de discernimento dos comandados.

(E qualquer semelhança percebida com um país tropical abençoado por Deus, inspira reflexão e ação, urgentemente).

Outra sequência que tô revendo agora, choca, faz a gente chorar e é de toda sorte revoltante porque atinge a alma, provoca dor íntima, reflete e invoca sub-humanidade, traz das profundezas lodosas do ser, todo o emaranhado de crueldades e perversões. Ocorre quando um príncipe é capturado por um inimigo e feito prisioneiro. Nos primeiros momentos é torturado, mutilado, sofre os horrores do calabouço. Ocorre, porém, neste núcleo da trama, a inserção de um elemento mais abominável ainda no domínio do homem sobre outro. O príncipe passa por uma sucessão de ataques psicológicos. Vê-se reduzido moralmente, humilhado, tem seus valores subtraídos e a carga é sempre mais forte sobre ele, até o momento d’ele não se reconhecer mais como indivíduo único e livre. Passa na história a ser um pacote humano servil. Submetido pelo seu raptor à perda total da razão. Vive ao largo no castelo como se fosse um animalzinho de mando fácil. Sem alma, sem memória, sem sentimentos. Cenas fortes que nós, pessoas comuns, de meras éticas, e voltadas para os costumes do vulgo, nos pegamos a repugnar, mesmo porque, coisa que o bom cristão, em solidariedade ao Senhor Jesus imolado não tolera, é a tortura.

Aí me ocorre uma ocasião de muita chuva em Belém e aquele trecho da Presidente Vargas, logo ao pegado da Enasa, alagado. A água veio na canela. Estava no caminho de casa e vi que meu ônibus tinha parado no sinal bem na dobra. Tirei as botas, chapinhei na água. A chuva ainda caindo forte. Fiz sinal e pedi para o motorista abrir a porta. A chuva dando no meu lombo. Os pés mergulhados na lagoa. Pouco movimento na rua. Ali não era a parada eu sei. Mas a chuva, o alagado da rua. Ele me lançou um olhar de desprezo e entendi a mensagem. Tinha o estúpido poder. Humilhado, lembrei da rainha má e do pobre príncipe. Subi no detrás. O motora do outro ônibus, o bom cristão, que nem era do meu itinerário se apiedou, abriu a porta pra mim e me deu livramento daquele pampeiro, daquela água dando na canela.

sábado, 23 de outubro de 2021

crônica da semana - mosqueiro-belém

 Belém-Mosqueiro-Belém

Vou te contar, olha. O camarada vai passar o domingo em mosqueiro? Vai. Mas... Chove o dia todo que Deus dá.

E foi um acontecimento, uma extravagância que a bom os anos passando e eu não fazia. Contando na ponta do lápis, tinha cravado 25 anos que não ia à Bucólica. Difícil de acreditar, né. E quando o camarada vai... me chove!

Entretantos e tempos, houve de eu tirar umas esticadas encarreiradas pra lá. Era na época de igrejeiro, jovem militante das causas salesianas. Bem sim, bem não, pegávamos a estrada no Fiat com o Padre Lourenço ou no ônibus guiado pelo Nino, para um retiro, um carnaval diferente, um mutirão na casa dos padres, que se localizava nos escaninhos da Baía do Sol. Embora contabilizada com aquela freqüência, a viagem por estrada não chega perto do caminho que fiz até a ilha, pelo rio. Primeiro, quando eu era bem molequinho, a bordo do Presidente Vargas e, muitos anos depois, aos sábados, na linha que cruzava a baía a 50 centavos, numa invencionice simpática do poder público.

Esta visita de agora que digo, foi de carro. Pela ponte.

Rolou uma emoção (sentida só por mim. Ninguém com quem partilhava a viagem deu ibope às historinhas, às reminiscências que narrei enquanto vencíamos os 1.457,35m de travessia em cima da ponte Sebastião R. de Oliveira). Cantei até a música famosa na época da inauguração: “Belém-Mosqueiro-Belém/Eu vou e volto num segundo/ A ponte Belém-Mosqueiro-Belém/É a coisa melhor do mundo” (peço todas as vênias por não citar o autor dessa música, e tanto que busquei aqui nos sites de informação. Achei um isto, um aquilo, mas nada que assegurasse ser o dito e o certo da composição. Quem souber, por favor, me dê aquele help).

Como a audiência para os meus causos foi baixa, voltei-me à paisagem e aos detalhes do furo das Marinhas. E não é que de prima dei com uma ilha se formando embaixo da ponte, ali pelo meio do trajeto. Muito firme de apreciar... Tornei à turma que estava no carro com uma informação pra lá de empolgante. “Sabia que na época da inauguração aquela ilha não existia?” O gancho não empolgou ninguém.

Mas eu insisto: é um fenômeno cheio de riquezas e detalhes geológicos. E muito comum nos rios da Amazônia. Rios de planície. Ali do outro lado da ilha das Onças, indo pra Barcarena, tem uma outra muito no jeito se formando. Se não me fogem os apontamentos escolares, essas ilhas são elementos fluviais conhecidos como barras e são geradas, mais comumente por presença de obstáculo. É o caso da ponte que se meteu no caminho das areinhas que circulam por ali. Até pesquisei num site de notícias que deu trela pro surgimento da ilha. Ficou em a ver. Diz no texto que iria pedir a opinião de especialistas e tal e coisa, mas não mostrou o resultado da consulta. Já que ninguém explicou, explicado está por mim, se eu estiver errado, lascou-se. Vai todo mundo pra debaixo da ponte do conhecimento comigo.

Passamos da ponte. Éramos convidados para um batizado na Baía do Sol. Antes da cerimônia, o primeiro chuvisco. Dei um mergulho, almocei e fomos aos ritos. Foi só o bebê receber as nossas energias e a bênção da baía, o pampeiro arriou de vez. Nós, ó, pra trás.

No caminho de volta, aos cruzarmos a ponte tentei de novo uma prosa sobre a ilha lá embaixo, cantei a música, trouxe histórias do padre Lourenço. Sem audiência... E a água caindo do céu. Quando varamos na BR, nenhum sinal de chuva. Asfalto seco, seco.

 

 

 

sábado, 16 de outubro de 2021

crônica da semana - colação de grau

 Colação de grau

Uma foi tirar plantões em São Miguel, outra se meteu no meio do pitiú do Veropa, a cuidar dos esquecidos; este internou-se no Barros Barreto, aquela, no Hangar. Nos acudiram e contaram como contas preciosas no Rosário do qual nos valemos, nos momentos mais dramáticos da pandemia.

Neste Círio, não tive como olhar para essa galerinha que até um dia desses era a petizada aqui do nosso quintal, com os mesmos olhos...

Em janeiro de 2020, fomos convidados. Lá me bati de novo com o aluguel de paletó que nunca cabe diretinho em mim, me vi na resignada severidade apertada de um bico fino que uso só para essas ocasiões e, com muito garbo, ostentei aquela postura de pai, de amigo, de parente orgulhoso, porque, de todo coração, vejo motivos muitos para ficar todo metidão, quando alguém de nosso convívio consegue superar os reveses e põe a mão no canudo de um curso superior. E esta colação foi muito especial. Estava lá, parte da petizada que frequentava os nossos saraus do quintal. Moças e rapazes entusiasmados, verdinhos na vida, ansiosos da lida; dançando, comemorando em divertido folguedo, sob luzes e sons de uma cerimônia de formatura do curso de Medicina realizada no Hangar. Uma noite decisiva, reveladora. Uma previdente catarse. Parece uma coisa! Uma anunciação. Um acúmulo de animada energia para um futuro próximo de desafios jamais imaginados.

Dali a dois, três meses, estariam na linha de frente no combate à pandemia provocada pelo vírus maldito Corona e seus aliados negacionistas.

Muitas quedas, muitas dúvidas e desesperanças depois, tive um reencontro com esta turma, agora pelo Círio. Todos já cheios de histórias. Tantos atendimentos de palmo em cima com o vírus. Mudanças radicais. A decisão drástica de cair em campo e considerar não voltar pra casa, procurar um canto pra se isolar, por causa do risco de contaminar familiares, pais, mães. O dia a dia tenso, enfrentando inconformismos, dores da perda sem cura, e, até indefensáveis solicitações por medicamentos ineficazes, feitas com arrogância ou mesmo ativadas pelo desespero.

Para mim, são merecedores e merecedoras de todo respeito, objetos da minha admiração e alvo da minha gratidão. Do meu carinho, do meu encantamento (em especial, a petizada que mora no meu coração). Representam uma legião verdinha na lida que foi lançada no front de uma luta inglória.

A cidade ferve por esses dias. A ruma de gente movida pela fé incita Belém a emanar calor humano, desejo de um mundo melhor. Eu me bato com meus conflitos. Procuro entender esta convulsão, esta vibração que a cidade exibe e partilha com a gente. Em minhas convicções agnósticas nem tão convictas, quero crer. Busco justificar milhões de coisas, a história do Plácido, o comportamento da minha gente, a caminhada de joelhos pelo asfalto inclemente, os pratos típicos do almoço do Círio; a harmonia das cores, a estética inocente dos brinquedos de miriti; o contentamento simples de se abalar dos bairros distantes, só pra ver a passagem da Santa no largo do Redondo. A corda e suas dores. São caminhos que percorro pelos escondidos da minha alma e o que encontro a cada ano, é sempre a resposta em forma de agradecimento. Esta é a minha fé e este ano com meu Rosário de contas preciosas nas mãos, dedico minhas orações àquela turma de Medicina que colou grau no início de janeiro 2020 e que dali a dois, três meses, já estava no plantão de São Miguel, no meio do pitiú cuidando dos esquecidos...

sábado, 9 de outubro de 2021

crônica da semana - círio 200

 Círio 200

Na edição do Círio 200, ganhei uma bolada.

Houve comemoração, programação especial, regressão ao primeiro caminhar no limiar do século 18, em romaria tímida pelos ermos da Campina. Autoridades civis e eclesiásticas nas cerimônias oficiais. E teve o bingo.

Quando vi minha cartela sorteada, quis logo descalçar os pés e caminhar o estirão até a Basílica, como agradecimento por ser abençoado com aquela bolada. Deu pra comprar umas coisinhas, ajudar a titia, a petizada da família e ainda sobrou uns carocinhos pra abrir uma poupança que me é de valência até hoje. Decidi acompanhar a procissão porque quis mesmo. Não foi paga de promessa nem nada. Não houve troca. Nada de toma lá/dá cá. Na época todo mundo comprou uma cartela do bingo, era uma forma de participar da festa, não havia o interesse na premiação. Era tudo movido pelo clima do Círio. A gente fica mesmo mais aberto às boas ações em outubro. O que se deu é que a idéia de acompanhar a procissão sem promissória surgiu assim, no calor da hora. Ainda bem, porque olha, fiquei em a ver com a Santinha.

De acompanhar o Círio mesmo, do início ao fim, só me foi possível uma vez. Aconteceu quando do regresso de um encontro de jovens, da pastoral Salesiana, em que firmamos alguns compromissos para mudar o mundo. Outubro estava em cima, e a primeira missão foi empurrar a Barca com Remos, no grande cortejo. Era uma ação articulada pelos organizadores e, por isso viemos na boa todo trajeto e tivemos a entrada no CAN garantida. Agora, mais recentemente, esta tarefa é dada aos alunos do ensino médio e pela natureza da causa, acompanhei minha filha nas campanhas em que ela participou. Entramos, mas saímos logo do CAN, e também o trajeto dos carros hoje não cobre toda a caminhada. Inicia na presidente Vargas. Não dá pra dizer que acompanhamos a multidão de lá a cá.

Em outra tentativa, fiz quase todo o percurso ostentando uma faixa com dizeres bíblicos e antes da Generalíssimo, fomos interceptados por indelicados agentes da polícia e outros aliados que dispersaram nosso grupo quando nos manifestávamos em defesa do padres franceses Aristides Camio e Francois Gouriou, presos por causa de um apostolado ao lado dos posseiros do Araguaia, isso no início dos anos 80.

O que se tira é que só uma vez tive a oportunidade de fazer a caminhada da Sé a Nazaré completa.

Esta vaga me levou ensejar mais uma tentativa, no Círio 200. Seria um romeiro fiel, gentil caminheiro. Leve e livre. Só não contava com aquele esmigalhamento na dobra do Manoel Pinto. Éraste! Me vi aperreado. Tive que me pegar de todo meu coração, com a Santa pra sair inteiro dali.

Até que tudo estava uma maravilha. Eu cantava, rezava, agradecia a minha bolada, olhava por céu azul e vislumbrava a paz. Até que meu céu foi estreitando, virando só um quadradinho anil, o espaço foi se contraindo, meu corpo foi elevado do chão. Pregões ansiosos anunciavam: Lá vem ela. Era a corda. Não vi mais nada. O povo se fechou sobre mim, não vi mais céu, não achei mais meus pés. Senti a cabeça rodar. Um rodopio alucinado comandou meu destino. O ar ficou raro. O mundo avermelhou-se em meus olhos de fogo e depois se apagou. Quando tornei, estava do outro lado da praça, na Assis de Vasconcelos. Uma calmaria suspeita era sinal de que a Santa havia passado. Uma gota de suor frio escorreu da minha fronte e me avisou que eu não tinha mais pegada pra continuar. Não entrei no CAN. Fiquei em a ver mais uma vez. Quando tudo isso passar, vou tentar de novo.

sábado, 2 de outubro de 2021

crônica da semana - traga o litro

 Traga o litro, traga o litro!

Mamãe tinha dois sonhos, dois anseios mundanos. Um era ter uma TV colorida. O outro era comprar um prosdócimo.

A televisão, consegui atender com os proventos de uma indenização que recebi nos primeiros anos de Barcarena. Já o prosdócimo ficou em a ver, perdido nos enredados da metonímia.

Os sonhos se diluíram na poeira do tempo, já o discurso que desafia a semântica, até um dia desses se concretizava pelas ruas de Belém. E se avivava no pregão: “traga o litro, traga o litro”. O chamamento era para que as pessoas aparecessem com um recipiente para adquirir, a preços bem populares, um tipo de água sanitária caseira, porém, anunciada como a mais famosa, aquela que era a boa da época. Pelo uso, pela exclusividade, o costume, a tradição, e pela disputa ainda acanhada entre os produtos industrializados, antigamente era comum a gente ligar a marca do produto, ao próprio produto. A este fenômeno recorrente na língua dá-se o nome de metonímia.

E é só lembrar da sétima série que a gente topa com um encarreirado de exemplos, quando se substitui a parte pelo todo, o autor pela obra, o continente pelo conteúdo, e no caso do Prosdócimo, o inventor pelo invento. Trata-se, no caso dos anseios da mamãe, de uma geladeira onde tudo é congelador (hoje conhecida como freezer). E que muito a ajudaria nas vendas que realizava para nos garantir a todos, o sustento.

Eu, aqui-ali, faço uso da metonímia. De fato, não conheço outro artefato capaz de me barbear, que não uma delgada e amoladinha gilé.

E não precisa ter boa cabeça (olha, olha!) para buscar umas quantas substituições que fazemos no passar dos dias. Cada qual tem a metonímia da hora para chamar de sua. Eu, por exemplo, sou um tipo que chama o sono na companhia de Machado de Assis e acorda com o Chico Buarque alarmando um ser tomado de preguicinha  para o corre do dia.

Calhou d’eu, agora na batida da campa das minhas lidas de operário, pensando seriamente em pendurar o capacete e o par de botas, catar aqui, acolá, uma ocupação para me aviar no futuro de aposentado. Longe de mim, a pretensão, mas pensei em garimpar entre os meus herdados da mamãe, um tiquinho do talento dela para o negócio da venda (e para a arte de prover ardorosamente um lar).

Analisando o mercado, o entorno e os vãos da Pedreira, me vi avizinhado de um portentoso condomínio. Especulo que se fizer uma boa propaganda, pedir pra deixar na janela meus prospectos listando e descrevendo os produtos da minha lavra, posso ter sucesso. Meu povo merece comodidade. No pé do meu panfleto, ainda vou ratificar “faz-se entrega em domicílio”. Era assim que funcionava quando, certa vez morei num condomínio popular, lá na Augusto Montenegro. Todo dia tinha uns reclames impressos debaixo da minha porta. Se me fosse do agrado, nem saía da Nova Belém, tudo o que eu precisava vinha ao pé da minha rede. Era só discar pro número do papelzinho. E eu podia ficar só no embalo, só na caté, final de semana só charlando no recreio. Ninguém tá a fim de sair nesse solão que vira chuva forte em Belém de uma hora pra outra, em tempo de pegar uma constipação, só pra comprar um isso, um aquilo farto e fácil. Ah, sim, vou diversificar meus produtos. Meu empreendimento vai ser tipo um armarinho das antigas. Vai ter da agulha ao pão de batata.

De vez em quando vou alugar uma bike-som e sair ao largo, alardeando. “traga o litro, traga o litro”.

Não vou ter um Prosdócimo. Vou ficar em a ver. A marca foi extinta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 25 de setembro de 2021

crônica da semana - casquinho de muçuã

 O casquinho de muçuã, a farofa e o purgatório

Queria tanto saber das coisas do Acre e o que acabei conhecendo, pelo Leandro Tocantins, foi um pouquinho mais da história de Belém.

Teve uma época que eu fiquei num pé e noutro para chegar às obras do escritor paraense, nascido no largo da Sé, em Belém, e criado às margens do rio Tarauacá, no Acre. Era a fase da cuíra pra saber das coisas e do povo da seringa. A história, os costumes, os primeiros seringueiros a chegar por lá. O caso da independência. As peripécias do Galvês, eu já sabia pelo romance do manauara Márcio Souza. Queria, porém, os fatos cravados e dados. Sem os pitacos romanceados. Um professor meu que era de Cruzeiro do Sul indicou Tocantins como referência na historiografia do Acre.

Não tive sucesso, naquela fase de precisão. Consegui, não me lembro onde, um trabalho acadêmico muito esclarecedor sobre a ocupação do Acre e foi a partir dele que escrevi, muito oportunamente, uma crônica em meio àquela arenga que tivemos com o presidente da Bolívia, lembram? Foi quando o Evo Morales inticou com a gente dizendo que o Acre havia sido trocado com a Bolívia, por um cavalo.

E eis que estava Bembelebém, viva Belém, numa manhã de domingo, no gozo do lar quando meu sobrinho me chega com os mimos. Havia herdado uns exemplares antigos da biblioteca da família e lembrou de mim. Pensou se eu não queria ficar com alguns. E me trouxe as raridades. Uma coletânea memorável de Bruno de Menezes e uma publicação de 1963 de “Santa Maria do Belém do Grão Pará”, adivinha de quem?

Pois é, do cujo. Leandro Tocantins conta tintim por tintim fatos marcantes da história de Belém. E, o que me chama muita atenção, numa linguagem quase que inocente, desprovida de patrulhas. Apresenta personagens que retratam o poder religioso na figura do Frei Caetano, passando pelo poder político representado por Antônio Lemos. Tem um chamego por Landi indisfarçável que reina creditar ao arquiteto bolonhês, com o mesmo fervor, a criação de obras que vão do mais simples ferrolho do mais escondido casario marginal da Cidade Velha ao desenho delicado da capela de São João Batista. Descreve logradouros, ruas, praças, as festividades, as personalidades, as campanhas religiosas. Dá a receita do tacacá, de banhos de cheiro e sem a menor tremedeira ecológica indica pratos que não podem faltar na mesa do paraense em épocas festivas, em especial o casquinho de muçuã (destaque para a dramática narrativa que faz do “preparo desta maravilhosa iguaria: as tartaruguinhas são postas vivas no panelão de água fervente com sal para obter o cozimento”) e o paxicá (guisado de fígado de tartaruga). Sentencia que não conhece outro jeito de tomar tacacá que não seja na cuia-pitinga ou mesmo na outra, a santarena.

É objetivo e surpreende ao explicar o sentido de cada um dos carros que compõem o cortejo do Círio ou quando desvenda a razão das gravuras inscritas nos quadrantes que formam o Brazão d’Armas de Belém, aquele desenho que a gente vê na lateral dos ônibus.

É um livro robusto, tem cheiro de velhinho, por isso o li do início ao fim, protegido pela mesma máscara que me protege dos negacionistas e do vírus maldito. Tem a minha idade e trata-se do segundo volume.

É uma leitura cativante, temperada de cores e formas, e como já disse, de uma inocência colada a seu tempo, pois que desde que me entendo por gente paraense, tenho pra mim que é pecado mortal comer muçuã. Farofa de tartaruga no casco então, dá no mínimo, uma eternidade de purgatório.

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 19 de setembro de 2021

Crônica da semana - a raposa e as uvas

 A raposa e as uvas

Os dias se entortam, vergam-se em contradição (até granizo deu de chover). Libertam-se de calores e rotinas. Somam-se em entardeceres pardacentos. Aqui, acolá, as cores escondidas no horizonte, como se fossem o carneiro do Pequeno príncipe, dentro da caixa. E a raposa? Sábia, tomando conta do galinheiro, neste Brasil sem prumo. Cheia de histórias e frases de efeito. E as histórias...

Fizemos uma feirinha, suquinhos, biscoitos recheados, um embrulhinho humilde de uvas roxas. E esperamos a caixinha de cores aparecer no horizonte, numa tarde dessas de Belém, cheia de potencialidades. Enquanto o céu não se abria, a gente a bom conversar. As perguntas surgindo. E os desenhos da vida se realizando.

Quando chegou no meu avô, estanquei. Percebi que não sabia nada dele. Conhecia o fato de ser Agente estatístico. Agora, por que foi se bandear para o Acre, sei não. Inventei um causo e liguei a diáspora da família a uma suposta arenga política com o presidente Getúlio. Depois, fazendo as contas certinhas, vi que o resultado não fechava.

Meu papai, apesar de não ter continhas suportando as datas, sei que é da turma da seringa. Daí é fácil. Se não foi pela guerra, a família dele foi dar nas raias ocidentais por causa das primeiras levas de nordestinos que bateram os pés nos barrancos do rio Acre, bem no início do século 20.

O céu é mudo. A caixinha não se mostra. Tardes nubladas, às vezes raios caindo perto e trovões que dão medo. Avalie as cores matizadas. E a conversa flui. Tem a raposa, tem a uva... A gente é responsável por aquilo que cativa.

As plantinhas revigoradas ao pé do batente. Ouvindo tudo. Plenas de água e luz. Percebo que criei uma confusão com os verbos cativar e cultivar. Cá com meus botões entendo ‘cativar’ ter a ver com cativo, aprisionado, sob domínio e controle de alguém. Desconfio da raposa. Aprecio mais o verbo cultivar e o argumento silencioso, pleno de verde que as plantinhas cultivadas ao pé do alpendre me revelam.

Não conheci meu avô de Belém. Sei, virou-se de lado na rede para dar vazão à hemoptise. Pessoas que eu amava muito, da minha família, em um momento ou noutro, e às vezes gozando até de alguma saúde, foram acometidas de crises espantosas de hemoptise. Parece uma coisa! Papai tinha lábios vermelhos de gritos. Toda vez que embarcava um lote de pélas defumadas do puro látex, dava um sorriso satisfeito e a gente reparava nele, os dentes vermelhos. E vinha me beijar. Meu doce vampiro.

Regressou, vovô para Belém, e deixou mamãe acenando e vertendo uma lágrima discreta de saudade e de solidão na beira do barranco lodoso do rio Acre. Mamãe não mais o veria.

Mais adiante, nos juntamos todos, menos o Agente estatístico, num cantinho da Pedreira. Eu gostava de apreciar o movimento da noite com a vovó, no canto da Lomas e não imaginava sequer carneirinho dentro de caixa, que dirá horizonte matizado. Sou mais acreano que paraense. Sou mais seringueiro que Agente estatístico. Sou mamãe na beira do barranco. Sou mais paraense que os onze que se empoleiravam em uma casa de dois cômodos e um mezanino na Vila Mauriti. Danço e canto carimbó que nem os suprimos do Pacovar. Não falo com aquele sotaque estranho e com a desinência em zê dos acreanos: “Ai meu deuzo!”. Fui cativado pelo chiado dos dizeres paraenses. E por esses dias tortos, tô preso! Tô preso na caixinha!

Quando escalei a cordilheira dos Andes, lá na cumeeira do mundo, a 4 mil metros de altitude, meu nariz sangrou. Parece uma coisa! 

 

 

sábado, 11 de setembro de 2021

crônica da semana - não vai perder!

 Não vai perder! (amigos sumidos assim)

Eu já tinha decidido que só faria minhas caminhadas aeróbicas pelo canteiro da Marquês em trecho inteiriço. Naquele estirão que não é cortado por nenhuma rua. É que a turma motorizada, os choferes donos da presepada e da rua toda, não estão nem aí. A galera não respeita. Faz conversão irregular, retorno canhoto. Não dá trela pra quem está caminhando ou de bicicleta.

Acontece que nesta última sessão de sábado, tive que encarar.

O dia tava todo conforme o combinado. A caminhada começou um pouco mais tarde porque pretendia pegar umas informações de um amigo há muito longe e sem notícias. Queria passar na casa da família dele aqui na Pedreira num horário que já estivessem acordados. Mais tarde, mais Trânsito.

É meu amigo de maior data. Nos conhecemos na Aparecida. Alfa, Primeira atrasada, Primeira adiantada. Marcha no dia da raça. Aulas com as professoras Raposo, Ivani, Maria de Jesus, Nazaré Cruz, Iolanda; o bêábá suave, o Ivo viu a uva. As cantigas protocolares “Boa tarde visita como vai/a nossa amizade nunca sai/faremos o possível/ para sermos bons amigos/ boa tarde, visita como vai”. Um Primário inesquecível. Missa com padre Geraldo e passeios no dia das crianças.

Moramos perto. Éramos adversários em grades nos mínimos planos de piçarra que se formavam na Marquês para a pelada do final de tarde. Cada qual dando sangue pela sua rua. A escola deu um tempo em nossa relação. Não estudei no Justo, como meio mundo de moleques da Pedreira. Mais adiante retomamos nossa amizade, nas aulas aterrorizantes de Matemática na Escola Técnica e construímos juntos um pensamento e uma conduta política em saudáveis diálogos tomando sorvete nas calçadas da Duque. Nossa cabeça dava Pi voltas sobre dois enes nessa época. A tensão era uma constante e o futuro uma incógnita ante um regime que ainda teimava dar razões, proporções e regras duras ao Brasil. Nos conjuntos verdades que apareceram durante a abertura política, nos batíamos enfrentando os tomara-que-chova minados de praças, em batalhas renhidas pela meia-passagem. O tempo passou. Constituímos família, descruzamos rumos, rareamos os encontros.

Por últimos, tínhamos um encontro marcado anualmente. Podíamos passar todo o ano sem nos ver, cada qual com o seu cada qual de viver, mas quando dava junho, estávamos lá ao lado do anfiteatro da Praça da República nos completando um ao outro, atualizando a lida, partilhando as mazelas do coração e arriscando um coro ou um passinho da coreografia, em meio à folia do Pavulagem.

Até que veio a pandemia e a treva política que nos envolve. Meu amigo sumiu.

Desde que tomei a segunda dose, pus na cabeça ir atrás de notícias. E deu tudo nos conformes. Falei com a cunhada dele. Ela muito prestativa, me deu caneta, papel. Anotei todos os telefones de contato dele e de pessoas próximas, e ainda me recomendou: “não vai perder! Aí tem tudo que precisas”. Continuei a caminhada. Uma paradinha para atravessar a Alferes Costa, e se deu o sobressalto. Quando o sinal da travessa fechou, reiniciei o trajeto. No meio da travessia, dois motoqueiros cidadãos do bem ostentando bandeirinhas do Brasil no guidão das motos, em manobra irregular dobraram na Alferes. Frearam bruscamente bem pertinho já, e ficaram acelerando. Tive que dar aquele velho pique para não passarem por cima de mim. Na agonia, nem percebi que larguei o papelzinho com os telefones para trás. Cheguei em casa sem.