sábado, 28 de outubro de 2017

crônica da semana - Hera de felicidade

Hera de felicidade
O Hera da Terra foi um grupo musical formado na Sacramenta por uma moçada que, ou estudava, ou orbitava a Escola Salesiana do Trabalho. O núcleo, que conheci, do grupo, era formado por Antônio Francisco e Ribamar Araújo que se dedicavam à criação das letras e por Arlindo Cruz, músico inspirado e encarregado de pôr melodia nos versos dos poetas.
Conheci a moçada meio que pela dor. Estudava na Escola Técnica.Tinha lá meu melhor amigo. Fazíamos uma reuniãozinha debaixo dos estirados buritizeiros que reinavam lá pras bandas do pavilhão de Edificações, e por ali rolava de tudo. Discussão política, recitais de poesia, partilhas estéticas e muita música. Deu então, que, o agora jornalista Edir Gaya, meu chameguinho até hoje, começou a trazer um som diferente para nossa confraria. A fonte que ele bebia ficava lá na rua Primeiro de Setembro, na Sacramenta. Acabava a aula e ele se mandava pra lá. E eu, me conformava em estar perdendo (a dita dor) meu amigo para outros e maravilhosos estilos. Até que um belo dia, nos cruzamos, eu e o Hera. Foi num festival de música na Escola Salesiana. O Hera iria para a final com a bela ‘Despertar das Lendas’.  Edir já tocava no grupo e eu coordenava aquela edição do festival. No último dia, me aproximei do Arlindo, que àquela altura estava recebendo elogios encarreirados pela maravilhosa canção da final, e entreguei-lhe um papelzinho com um poema que havia feito. Não pedi que musicasse. Fiquei com vergonha, mas, oh, oh! Era óbvia a minha intenção. Foi desse jeitinho que passei a fazer parte daquela era de felicidade.
Alguns dias passados daquele encontro com Arlindo, o grupo me convidou para participar da reunião deles. Fomos eu e Edir Gaya. Vivi uma noite inesquecível. Ali estavam todos eles, os artistas da Sacramenta. No centro de uma grande mesa, um garrafão daqueles de 5 litros, cheinho da mais aprumada e concentrada batida de limão da paróquia. Ouvi as mais lindas canções, histórias de vida (era como uma apresentação). Soube dos meninos que viajaram com o Johnny Alf e por aqueles dias, faziam sucesso nos Estados Unidos, reconheci sonhos e propósitos, no grupo. A casa era quase um centro de peregrinação, quando o Hera reunia. Todo mundo pintava por lá. Do meio pro fim, com as ‘emoções tomando conta do lugar’, o Arlindo pediu pra mostrar uma música nova. Era o meu poema. A minha era começando no Hera. Arlindo cantou uma ou duas vezes, a moçada aprendeu, depois todo mundo cantou, quem tocava, pegou o instrumento e tocou junto, e eu só chorava (éraste, chega me dá um arrepio, neste instante mesmo, quando recordo essa passagem que se vai além dos trinta anos na história).
Ainda daquele festival, o Hera herdou jovens talentos como Carlinhos, Déia Palheta, Gil Galiza, Augusto Hijo, Cristina Matos, Dimmi, e euzinho que me emboletei com os bons. Um grupo mais robusto e criativo que enriqueceu pacas a cultura da periferia.

No dia 14 próximo passado, voltamos a nos reunir em grande folguedo, depois destes bons trinta anos. E foi uma maravilha este reencontro. Desconfio que reiniciamos uma nova era.

sábado, 21 de outubro de 2017

crônica da semana - do menor para o maior

Do menor para o maior
Nunca mais tinha ido pras partes. A cidade escureceu, algo nela entristeceu e eu desanimei. Mas o show do Milton Nascimento deu uma chacoalhada na minha rotina de recluso. Economizei uma ponta, me adiantei nos ingressos, montei minha turminha e, no sábado, mal bateu a campa e eu já estava lá de palmo em cima com o Bituca. Quer dizer... quase.
Cheguei cedo, fui me ajeitando, ansioso e feliz por estar bem posicionado. Mas perdi feio para quem ia além dos meus voluntariosos metro e cinquenta de altura. Fiquei de palmo em cima, mas me valendo somente de uma brechinha, de um pescocinho mais estirado de fino, de um desabraço dos casais que se postaram à minha frente.
Há uma tendência, em Belém, de realização destes shows mais concorridos, em espaços plano-horizontais, sem desnível. Aí já viu, né, além da conformidade planar do piso, nós amazônidas que estamos ali na estatura média pouca coisa acima de um metro e sessenta, enfrentamos mais uma dificuldade pra enxergar direitinho, os artistas. Somamos a esta questão, uma luta selvagem dos espectadores na conquista de posições perto do palco. Uma luta ferrenha, na maioria das vezes velada, decidida em detalhes e que utiliza a força e a envergadura dos contendores. Para nossa indignação, os que são do tipo armário, não raro, vencem.
Nessas horas, a gente vê pessoas diferentes daquelas que encontramos na batida diária pela Pedreira. Há uns porrudos, forjados a bons e vitaminados repastos, que não estão nem aí para a partilha do espaço. Não só na vertical. Também na horizontal. Não se misturam. Não admitem um ombro ao lado, ou uma distância mínima de convivência. Impressionante! Em pleno show do Milton, um artista que canta músicas de paz, um cara que faz melodias que se harmonizam com as estrelas, a gente encontra gente devoradora, territorialista, egoísta. Até ali, nos detalhes, rola o bom combate, só que presenciei a cena de um camarada que, pela compleição física, poderia, sem prejuízo algum ao campo de visão, ficar um pouquinho mais atrás, ceder o lugar para uma petizada entusiasmada, para mim, para minha filha ou para o meu amigo Elias Pinto, bravo combatente. Mas não. Postou-se à nossa frente, feito uma muralha. E foi tal a barreira que ele fez, que, se não nos acudíssemos das brechinhas, a única visão que teríamos seria o vermelho da camisa de marca dele. E quando alguém superou aquela barricada e lançou-se à frente, alheio ao mantra das estrelas que inundava o local, o monstro aplicou-lhe uma sonora cachuleta. Seguiu-se o maior climão. Ah, mas reinei tomar as dores da categoria e mandar aquela castanheirona vermelha abaixo com os golpes certeiros que aprendi naqueles filmes de Shaolin que passavam no Paraíso. Para o bem dele, me conformei com as brechinhas.

Fica a dica para as próximas produções. Podem introduzir o sistema ‘do menor para o maior’. Montar um corredor com uma varinha horizontal daquelas que limitam a altura (dizque sistema largamente utilizado como critério de gratuidade à petizada em balneários pelo interlan). Bateu nela, pra outra fila, pra outra fila.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Sobrevoando as montanhas coloridas dos Andes. Cusco- Peru

sábado, 14 de outubro de 2017

crônica da semana - a bom remar jorane

A bom remar
É um jeito delicioso de falar que não se usa mais. Antigamente era comum: “dizque fulana ia me dar uma prova daquele chope de groselha docinho. E eu, a bom acreditar nela, mas quite, me enganou, a sacrista”... Só Jorane mesmo.
Uma única vez a vi de pertinho. Foi numa mobilização em favor da preservação do Casarão da Praça Ferro de Engomar. E nem foi tão de perto. Eu fiquei numa esquina, e ela noutra. Mas reparei bem o quanto ela é reconhecida como uma referência. Revela opiniões, expõe ações. Naquela época, fez peso, ali na praça, em favor da proteção do Casarão que estava sendo pilhado de peças estruturais e ornamentais de considerável valor histórico e cultural.
Sou fã da cineasta Jorane Castro. Não sou nem crítico de cinema nem nada, mas dou o maior valor na linguagem que ela usa para contar as histórias na tela. Além do talento, Jorane tem uma desenvoltura, uma facilidade na comunicação de chamar atenção. É jornalista, atua no meio acadêmico, tem obras reconhecidas internacionalmente, mas admiro muito a cineasta, também, por aquele traço ribeirinho, aquele viés pés no chão da personalidade dela.
Atinei bem na revelação destes vieses da alma, numa entrevista que ela deu à jornalista Linda Ribeiro, no programa Coxia. Um momento muito dos seus pai d’égua. Duas destacadas figuras  na arte da comunicação. Linda Ribeiro, usando da sua reconhecida competência como entrevistadora, deixou Jorane muito à vontade para uma boa conversa. E aí, ela cortou e arou. Falou dos tempos que viveu fora do Brasil, dos grandes projetos que participou, da estrutura profissional que ergueu para viabilizar o cinema na Amazônia. Éraste, e eu, vendo pela televisão e já conhecendo um pouco da trajetória da cineasta, fiquei até tonto com tantos valores, com tantas conquistas, com a envergadura do talento de Jorane. Estava, então, explicado: Me peguei como um fã platônico que jamais atravessaria a rua da praça  Ferro de Engomar para puxar uma prosa com pessoa tão famosa, mesmo que fosse para salvar o Casarão. Era uma estrela das mais inalcançáveis alturas. Das mais inatingíveis lonjuras...
Até que ela começou a falar das vezes que vinha de Paris para as férias e se quedava aos encantos ribeirinhos do interior. Nessa hora, bateu o martelo sobre aquela coisa da natureza cabocla que ela preserva. Mostrou-se rés ao chão paraense. Perto mesmo, de ao pegado da gente.
Em determinado momento, usou uma expressão que por demais me encanta. Confrontando a vida nos glamourosos recantos da Europa, com o emaranhado de furos que moldam os rios da Amazônia, revelou que, quando das férias, passava os dias no interior “a bom remar, a bom remar”, assim mesmo, de forma reiterada.
“A bom remar” É uma variação do sentimento de intensidade que vale para “a bom esperar”, “a bom andar”. Só Jorane mesmo, em entrevista perfeita, na simplicidade de todo seu brilho, para abrigar tão bem, na boa fala, uma pérola dos nossos dizeres tradicionais.
E falou com tanta naturalidade, que parecia que estava na porta da rua, numa conversa solta, de fim de tarde cametaense, a bom enfileirar causos.


segunda-feira, 9 de outubro de 2017

domingo, 8 de outubro de 2017

crônica da semana - círio psicodélico

O Círio e o povo unido
Quando entramos na praça, um tilintar psicodélico ecoou dentro de mim, uma satisfação líquida percorreu minha dorsal, ativou minhas terminações nervosas e o meu mundo transladou pela órbita letárgica de um caleidoscópio de flores lilases. Viajou entorpecida minha alma entre cantigas e bênçãos. Havíamos chegado no céu.
Mas antes, lutamos a luta de um povo unido.
Os padres franceses estavam um isso para serem expulsos do Brasil. Enquadrados na Lei de Segurança Nacional, os religiosos aguardavam julgamento presos.
O Círio era no dia seguinte. Na sede do Ipar, uma reunião, à revelia da ordem de Dom Alberto Ramos que proibia a realização de qualquer manifestação na procissão, decidia a estratégia de mobilização e protesto em apoio aos padres e aos 13 posseiros do Araguaia. Uma alemã magra, alta, com a dicção voluntariosa, fazia uma fala de certezas e crenças na liberdade. A pastora Rosa Marga iniciava um apostolado vibrante, corajoso, e solidário. Foi a grande líder do MLPA, movimento que se ergueu para lutar ao lado dos presos do Araguaia.
Tínhamos uma irmã salesiana na luta, também. Irmã Lísia era, como todas as outras freiras, digamos assim, caseira. Não se abalava para as coisas do mundo. Professava sua fé coordenando o semi-internato do Centro Social Auxilium e de lá saía apenas para a reunião com os jovens, do outro lado da rua, na Escola Salesiana do Trabalho. Foi contaminada com o bichinho do inconformismo, com a larvinha revolucionária. E acabou saindo pro mundo. Para toda reunião ou mobilização do MLPA, a gente arrastava a Queridinha, querido diminutivo pelo qual a irmã era conhecida, por causa daquele humor cearense da peste.
Vivíamos dias de transformações no início dos anos 80. A igreja retornava com as Comunidades de Base, apostava na práxis popular centrada no método “Ver, julgar e agir”. Os religiosos eram chamados a colaborar. Nossa turma operava com, o então padre, Brunys e com a Queridinha, pelas ruas estivadas da Pedreira e Sacramenta, no diapasão de Puebla.
No dia do Círio, o pau cantou feio. Dom Alberto falou. Dom Alberto avisou. Não passarão.
Até que caminhamos um bocado, mas, às proximidades da Basílica, o tempo fechou. Polícia despintada que estava no meio de nós, polícia fardada, todo mundo tirou uma casquinha. A primeira faixa a ser destruída, para mim, era a mais verdadeira. Trazia uma passagem da conversão de Paulo: “Por que me persegues?” Era simbólica. Quando ela caiu, quando se esfarelou aos pisões da repressão, nós todos nos esfarelamos. Padres, freiras, religiosos, leigos, jovens, velhos, todo mundo apanhou. Muitos foram presos com violência. Sangravam. Mas não choravam. Em meio ao ataque, ainda se entoou um canto novo de alegria, até o sufocamento total da manifestação. Eu fui varando, com pedaços de pano e uma ferpa deste tamanho sacada da estaca que emoldurava minha faixa, na mão. Pequenininho, me vi diluído naquela multidão, triturado por uma onda poderosíssima. Era a Berlinda chegando.

Quando entramos no CAN, um psicodelismo lilás acendeu dentro de mim. Havia chegado no céu.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

crônica remix - Francisco

O Santo dos pobres
Um violão Giannini Trovador. Vinte e seis exemplares do Asterix, que representavam até então, a coleção completa dos episódios criados pelos geniais franceses René Goscinny e Albert Urdezo. Um Pau de Chuva, instrumento percussivo que arremeda o som de água caindo, originário dos Andes chilenos e que comprei, numa exposição, como sendo artesanato dos Cintas-Largas. Uma caixa com muitos quadrinhos. A linhagem inteiriçada dos cartunistas paulistanos. Revista Circo. Chiclete com Banana. Geraldão. Níquel Náusea. Piratas do Tietê; De carona, a vovozinha revista MAD, já nos estertores, fazendo o contraponto; e uma pilha de PQP que mamãe mandava pra mim, todo mês. Somando no acervo, os primeiros números de O Planeta Diário e Casseta e Planeta. Noutra caixa, as aquisições capa dura, feitas junto ao Círculo do Livro e também adquiridas na livraria da, revolucionária, Rose. Sartre. Veríssimos, muitos Veríssimos e as minhas, até hoje, iluminações literárias, Zero e Feliz Ano Velho. Na mala, uns vinis ‘emprestados’ de Mercedes Sosa, Zé Geraldo, Ana Belém, Maria Betânia...e preciosas amostras de cassiterita, columbita, topázio, quartzo-dente-de-cão, quartzo rosa, uma fagulhinha, quase invisível de diamante industrial, meus quase nada de vestir, um frasco de Contouré  e...só. Esta era a minha bagagem franciscana quando embarquei em Porto velho, de volta para Belém, num dia 4 de outubro, como o de hoje. Dia de São Francisco de Assis.
Operou um milagre, o Santo dos Pobres, naquele dia. Depois de quatro anos longe, estava difícil de voltar. Uma greve poderosíssima dos aeronautas tirou do ar uma leva de aviões. Os vôos liberados eram um aqui, outro ali. Esta situação fez com que, naquela terceira vez, eu me visse deixando Porto Velho sem ninguém para me dar um tiauzinho, antes do embarque. Estava sozinho. Mas deixei estar, não queria incomodar os Borges Guimarães, a minha família rondoniense, com mais uma tentativa. Antes, nas duas incursões, toda a galera. Lencinho branco de despedida, lembrancinhas, emoções, saudades antecipadas, e, olha só, os vôos foram cancelados. No dia 4 de outubro, havia uma chance mínima, para que a viagem desse certo. A providência, um milagrezinho tinha que acontecer. Combinei com meu povo que iria sozinho, afinal, milagres não acontecem assim, na vida da gente, quando a gente bem entende. Não botei fé.
O avião que me trouxe marcaria certinho o final da greve. Desde ele, tudo voltaria ao normal. Desembarquei em Belém, já de tardinha, com a certeza da ajuda do Santo Francisco.
Sempre fui fã de São Francisco (meu filho tem Assis no nome). Isso, se não causou conflito, gerou um desconfortozinho na minha vivência dentro da igreja. Sou ex aluno salesiano. Atuei na pastoral da Sacramenta, nas comunidades de base, nos movimentos de jovens, levando a mensagem de Dom Bosco, mas não escondia a minha inclinação franciscana.

Um ser humano admirável, Francisco. Em plena idade média, num cenário irrefreável da ascensão burguesa, rebelou-se e optou pela pobreza. Talvez essa reviravolta na vida seja, realmente, o maior atrativo na historia de Francisco. E esta visão, um tanto romanceada do santo, de prima, me arrebatou. Mas depois, conhecendo mais sobre a opção de Francisco (e ajudado pelos cenários históricos dramáticos envolvendo os Fraticelli, descritos por Umberto Eco em O Nome da Rosa), tomei pé do quanto o Santo de Assis foi sábio e corajoso para superar a suntuosidade da Igreja, a soberba do clero, a ânsia dos pobres... séculos mais tarde, a greve dos aeronautas, e operar milagres. Salve, Francisco!