sábado, 29 de novembro de 2014

crônica da semana - maria preta

Presepadas, ziquiziras e afins
Né que dia desses eu tava num trançado danado de carimbó ali no Batuque de São Brás e num repente, num rodopio anti-horário alucinado, ascendi de banda, de banda, de banda, perdi o equilíbrio, de lado, de lado, de lado, volteei no ar porque sou rapaz, mas na aterrissagem, o santo me abandonou, pousei no falso pé  e destronquei o tornozelo. Égua da zica. Tava que tava animado, já com a mão na taça de tiozinho mais carimboleiro do pedaço e olha só, desabei. Vôte da zira. Pra lá ziquezira.
Não fiquei só, gemendo de dor na noite de carimbó, porque meus meninos estavam comigo, arrumaram gelo, um cantinho para eu me aquietar, me fizeram companhia e na hora de ir embora, me acolheram nos ombros.
E procura cartãozinho da Sociedade, na chegada em casa, e procura telefone de médico. De noitona assim. Fiquei só na minha. O povo em casa se aperreando atrás da carteira do instituto. O mocotó por acolá de inchado e o gelinho santinho, fazendo a vez dele. Quando estavam se aviando pra chamar o carro pra me levar na emergência do Centro três, eu acalmei a galera. Lembrei mulher e meninos, que fui um aguerrido centro-avante do Internacional da Mauriti e por atrevido que era, implacavelmente me via sendo caçado dentro de campo. Nos selvagens confrontos com os zagueiros, fui muitas vezes pra vala lateral do gramado. Engoli muito girino e ralei pacas o peito na piçarra. Expliquei em casa, que aquela desmentidura eu tiraria de letra. Bastaria conseguir, de manhã com a vizinha, uma medida de arnica e dois dedos de andiroba. O resto era comigo.
Foi bater e ver. No dia seguinte, fiz uma benzuntação, uma fricção que doeu que só. Vi estrelas, mas aguentei. Amarrei uma tira de pano de várias voltas no pé. E passei o final de semana na rede.
Na segunda tava inteiraço. Quer dizer, cachingando um pouquinho, mas nada que me impedisse dar aquela correndinha pra alcançar o Pedreira Lomas às 6 da manhã. Uma massagem de manutenção durante a semana, antes de dormir, e logo que a minha experiência de boleiro vingou. E o resultado foi que dois finais de semana depois, saradíssimo, eu já estava me acabando no carimbó de novo em São Brás, mas por vias das dúvidas, sem mais ascender de banda. Sem mais o rodopio anti-horário. Me contentei com o passinho miúdo e varei a noite folgando a valer.
É claro que tudo isso é mentira, né, gente. Rodopiei no carimbó? Rodopiei. Caí de banda? Caí. Dei um jeito no pé? Dei. Mas fui ao médico, bati chapa, tomei medicamento, fiz imobilização, repousei no fim de semana. As coisas não são mais como antigamente. Hoje em dia a gente tem que tratar de vera as precisões.
Estava dia desses de prosa fiada pelos corredores da vida, com meus companheiros e comentamos, exato isso. Como as coisas não são mais do jeito e forma de quando éramos moleques. Hoje em dia, por exemplo, a garotada não pega mais Maria Preta. Atualizando a zira: trata-se de uma erupção pustemada que dava geralmente na perna da gente. Começava com um pontinho avermelhado, avançava para uma bolha amarelinha quente com um olhinho preto no meio e daí para uma inflamação que dava até íngua. A mãe se aviava, esperava a bifede ficar no ponto de tensa, apanhava um espinho de laranjeira e era só um trisca pra bicha estourar. O incômodo além da dor latente era a marca que ficava. Uma cicatriz que parecia uma rosa dos ventos escurecida. Algumas pernas pareciam praças embandeiradas de tanto que as formas eram fartas. Não se vêem mais marcas de feridas nas pernas da meninada hoje em dia. Noutros tempos uma Maria Preta acabava com a carreira de miss.


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Crônica remix - calma

Quando tudo pede um pouco mais de calma
O título da crônica de hoje vem da música “Paciência”, do Lenine. Mas embora os versos façam uma reflexão sobre o tempo e a relação respeitosa com tempo, seja um dos meus temas preferidos, não vou falar aqui sobre as inquietações, sobre os mistérios da nossa existência ou sobre a paciência.
Muito pelo contrário...
No caminho, enquanto a gente se apertava junto aos carros numa rua estreita da Cidade Velha, minha mulher me recomendava para ir com calma, não ralhar com ninguém, procurar resolver meu problema da melhor maneira possível e parari, parará. E eu, só no instinto: tá bom, tá bom, procurando sem sucesso uma sombrinha naquele meio dia abafado. Por dentro, ia ruminando. Havia ganhado de presente um celular simplesinho, mas dado com muito amor e carinho, no dia dos pais. Foi logo no início desta praga quando o celular ainda era um trambolho pesado e deselegante com aquele indiscreto display azul. Com cara de poucos amigos, ia me adiantando ali no sol, ouvindo um discurso que apelava para a paz e a harmonia entre os povos, ou no mínimo, para um entendimento possível entre mim e a galera da assistência técnica. A minha réplica, era sempre no automático: tá, tá bom. Deu-se que, com poucos dias de uso, o meu aparelho pifou. O display perdeu o azul e apagou. Isso não me apoquentou muito. Era fato batido pela praça que esta porqueira de display não estava dando conta e que a empresa o estava trocando sem muitos atropelos. Quando cheguei naquela loja bonita e confortável, numa das avenidas mais movimentadas do centro de Belém, sei lá, tive um pressentimento. Sabe aquela coisa que dá na gente? Tava muito fácil. Melzinho na chupeta. Peguei a senha, afundei no puff, e me aquietei, apreciando o movimento, me confortando com o ar refrigerado da loja, passando a vista numa revista de artistas famosos, olhando o vaivém da rua lá fora pelo transparente da vitrine. Mas com aquela sensação incômoda de que não era ali. Com aquela impressão de que estava bestando no lugar errado.  Quando chegou minha vez, que sentei de frente pra atendente, foi batata: não era ali. Por aí a gente tira como ficou o meu humor. Me mandaram para uma portinha, numa rua nos confins da Cidade Velha, fronteira com o arsenal de marinha. Lá eu me abalei pra assistência, piririca da vida, estoporando de calor e suando mais do que tampa de chaleira. 
Ao localizar o endereço, apressei o passo, deixei minha mulher lá pra trás exausta e apreensiva, e uma brisa tímida e quente ainda me trouxe algumas recomendações entrecortadas pelo vrummm dos carros passando rés à calçada, sobre o amor entre os povos ou coisa que o valha.  
Da feita que achei a portinha, pensei em bater a mão no balcão, dar uma pedrada no celular pra ele ir parar lá longe e ensaiei também buscar no léxico um palavrão deste tamanho em homenagem à operadora, ao fabricante do aparelho e até ao  ilustre Alexander Grahan Bell, reverentemente lembrado como litisconsorte destas aporrinhações modernas. Mas uma atendente doce e prestativa, não me deu chance para externar meus chiliquitos. Me recebeu com um sorriso deste tamanho, um ‘boa tarde’ restaurador, uma atenção comovente e uma água friinha que era uma beleza. Aplacou a minha fúria, a mocinha. Envolveu o meu celular num plastiquinho, pôs uma etiqueta com a indicação do defeito, me deu a ressalva e estimou uma previsão de quinze dias para eu passar lá e pegar meu aparelho funcionando. Deixei o trambolho lá e saí da lojinha sem reclamar de nada. Domado pela capacidade extraordinária da pequena de inspirar a paz (e olha que ela previu quinze dias para a devolução do celular, um tempo, que até eu por os pés dentro da loja, para mim era a mesma coisa que uma eternidade). 
Voltando ao Lenine: “o mundo espera de nós, um pouco mais de paciência”.

sábado, 22 de novembro de 2014

crônica da semana - Ângela

Frio e chuva, casamento de ninguém
Terminado o show ela deu uma correndinha desengonçada, expressando-se mais envergonhada que sedutora. Sem roupa, atravessou o salão, luziu à minha frente um instantinho só e apagou-se nos degraus que a conduziram para o sossego do quarto, marcado por uma porta com caixilhos dourados que se desenhava no fim do corredor.
Fazia frio por aqueles dias. Vestida, ela parecia bem mais alta. E, fora a certeza da friagem chegando, agora, todo final de tarde, em outros fatos não ponho fé. As imprecisões fincam-se em campos polarizados. Estendem-se entre o rubor do desejo e a palidez do descontentamento. Vestiu-se.Voltou para o salão.
Francesa. A única comparação mais justa, a definição mais pertinente que me ocorreu foi classificá-la em malícia e elegância. Francesa. Nessa hora chovia uma chuva fina. Daquelas que quase  a gente não sente os pingos. Mas eram gotas que pegando carona no céu cinzento esfriavam a pele, eriçavam os pelos. Induziam contato. Requeriam movimentos, afagos, esquentas. Nos apertamos na parte coberta e deixamos aquele turvo nevoento para trás do muro e das dúvidas. Ficamos frente a frente. Uma bebida quente. Sem gelo. A coragem ativada. Ângela. Chamava-se Ângela. Vestido preto de mangas compridas com um cerzido sanfonado apertando na cintura. Um chapéu de abas largas sombreando um sorriso provocante que eu percebia com certa atenção e nenhum medo. Um sapato de salto quadrado, afivelado à altura do tornozelo cadenciando o balançar das pernas cruzadas. Um cigarro descaído ao lado do corpo, postura algo desdenhosa desafiando o vento gelado que vinha lá de fora. Um batom básico carmim. Não resistiria por muito tempo com aquela pose. Em Rondônia tem disso. Em pleno mês de agosto! Até uns dias atrás, o calor estava da gente correr doido. De repente, o céu baixo. As nuvens velozes quase tocando na gente. Temperatura despencando. Ela sentenciou: Amanhã nos vemos. E saiu em direção à porta dourada esfregando as mãos avidamente. Alguém a esperava. Frio e chuva. Penumbra. Descontentamento. Casamento de...
Quando voltei no outro dia, ela não estava mais lá.
Tentei reencontrá-la. Retornei várias vezes àquele local, mas ela desapareceu dali. Na última tentativa, havia um rumor, um boato que ela apareceria. Uma das meninas me deu a certeza sobre a volta da Francesa.
Cheguei cedo. Muita gente. Homens apaixonados. Garimpeiros com saquinhos de ouro conquistadores. Pais de família vestindo calça de tergal com bolso em faca. Sapatos pretos, sem sorriso no rosto. Apreensões e ansiedade. Olhos vidrados vermelhos. Uísque em copos rasos. Luzes colorindo os corpos. Fumaça. Cigarro. Homens velhos. Pigarro. Rapazotes acompanhados do pai. A primeira e intransitiva vez. A esperança de a porta de bordas douradas se abrir e ela surgir de vestido preto e chapéu de abas largas. Bêbados sonolentos caindo pelos cantos. As meninas de um lado pro outro atendendo, socorrendo, atiçado as vontades. Pratos, petiscos, cubinhos de queijo espalhados, caindo pelo chão. Piso grudento. Odores confusos. Show de dublagem. A sonoridade plástica. A lascívia, a concupiscência coletiva, desavergonhada. Libertinagem, sofreguidão. Êxtase. Tensão. Intenção. Mãos bobas. Axis e tira a mão daí, pequeno. Bolo de dinheiro amassado achando dona. Beijos babados na face. E ela não veio.
Desapontado, já alta madrugada, ocupei uma mesa na parte descoberta, próxima ao muro. A lembrança daquela pose, daquela elegância de Ângela. A minha eterna embriaguez. Era madrugada e chovia uma chuva fina, friinha de doer. E doía que só.


sábado, 15 de novembro de 2014

crônica da semana - Mariazinha

Mariazinha
Outro nome não tinha. Era só Mariazinha mesmo. Para a molecada, Dona Mariazinha. Aquela que tudo conseguia.
Ao menos três anos da minha vida, varei o Natal dentro da Escola Salesiana. Fazíamos a missa do Galo, nos estendíamos com a nossa peça de Natal e quando a gente dava fé, já era de madrugada. Uma passada rápida em casa, com a família. Uma rabanada farinhada de açúcar, um brinde com a Cereser, descanso pouco e, antes das oito, já estava de novo na Escola, para fazer o Natal dos oratorianos.
A pedagogia salesiana é pautada no lúdico. Para os discípulos de D. Bosco, uma estratégia de atrair os jovens é a evangelização ligada à diversão. Num passeio pela Escola, naqueles anos 80, a gente podia encontrar um enorme salão com mesas apropriadas para dominó, ludo, dama, xadrez, varetas...estruturas mais robustas para ping-pong, pebolim, jogo-de-botão. Na área livre, as peças mecânicas de rodopiar, a andorinha, o currupio; De balançar, a gangorra, o pula-pula. De descarregar as energias, o salesianíssimo spiribol. Mais para o interior da Escola, as quadras de futsal, vôlei, basquete, o campo de futebol, a piscina. Uma oferta vastíssima de recreação os garotos tinham ali, no oratório, domingo. Com uma condição: antes de folgarem na planada, tinham que carimbar a carteirinha na saída da missa. Ou seja, tinham que ouvir do início ao fim, a pregação do padre Lourenço.
Aí que Dona Mariazinha entrava. Um carimbo valia o ouro de Maria.
Deste o primeiro dia útil do ano, Mariazinha se abalava pelo comércio, pelas grandes casas de aviação, pelos empórios do centro, do entroncamento; pelos escaninhos do poder, pelos grandes depósitos, pelas lobrases da vida, pedindo doações.
Tudo que ela arrecadava durante o ano era arrumado no teatro da Escola no dia 24 de dezembro. Nós fazíamos a distribuição, cuidando para conferirmos valores justos a cada objeto disponível. E a natureza das doações variava de um super-mega-híper brinquedo da Estrela a uma lata de carne de desfiar.
No dia de Natal, era bonito de ver aquela ruma de coisas empilhadas pelos quatro cantos do teatro a espera de um dono. Tudo obra de Dona Mariazinha.
Não tive muito contato com ela. Poucas vezes a vi e não lembro se além de um ‘olá, como vai’, entabulei alguma prosa com ela. Era uma pessoa comedida, de poucas palavras. Tinha uma ligação fraternal fortíssima com o padre Lourenço. Assumia um compromisso, uma parceria com a Escola. Não era de muito marketing. Dedicava-se à ação. Durante o tempo que passei na Escola, Dona Mariazinha nunca faltou para os meninos.

Cada carimbo na carteirinha contava um ponto. Quantos mais pontos, maior a qualidade ou a quantidade dos presentes. A fila era organizada de forma que os primeiros a entrar serem os mais pontuados. A eles o direito de escolha. A gente orientava. Sugeria um utilitário que valia mais pontos, era caro. Um liquidificador, por exemplo, um rádio. Mas quando os moleques viam uma bola Dente-de-leite, uma Kichute, um Pocobol, endoidavam, queriam levar toda a fortuna de pontos em brinquedos. No geral, os arremates eram equilibrados, para os ricos em carimbos. A coisa ficava pensa era do meio pro fim, quando começavam a entrar os menos carimbados. Mas dava pra todo mundo. A missão de Dona Mariazinha era sempre cumprida. Vi muitos garotos voltarem para casa sem brinquedos, só com uma lata de Bordon e um pacote de macarrão número dois. Nada, nada era uma ‘intera’ para o almoço de Natal, pensava eu, do lado de cá do portão do teatro, sem certeza alguma sobre a minha felicidade natalina.

domingo, 9 de novembro de 2014

cr^nica da semana - Clara

Clara
Um desavisado se surpreenderia ao ver a alva figura num caminhar truncado, pelas estivas esculhambadas da Pedreira. Mas os moradores do alagado, não. Irmã Clara era visita desejada por uma quantidade assim de gente que se arrumava em palafitas no entorno do Centro Social Auxilium.
Fez parte, a freira alemã, do grupo que conduzia a pastoral das irmãs salesianas, no início dos anos 80. Tive o prazer de partilhar várias ações com as religiosas do Centro Auxilium. Cabe dizer que a interação não era muito fácil. Ao contrário do colégio dos padres onde as atribuições de cada um eram diversas; as coisas aconteciam, do outro lado da Alferes Costa, de um jeito bem divididinho. Lá, cada irmã com a sua causa. Irmã Lísia cuidava do semi-internato. Firmina, dos grupos de jovens, estas as freiras com quem eu tinha mais contato, principalmente irmã Lísia, que me cuidava quando eu chegava por lá cansado e na broca, me aviando um cumê e um alento embaixo do ventilador da cozinha. Mas conhecia também a irmã-educadora que dava oficinas de empunhar redes, a irmã-administradora, a irmã-diretora. Irmã Clara era a irmã-enfermeira e se algum dia, o povo da Pedreira for escolher os nossos santos domésticos, irmã Clara vai ter meu voto de prima, em caráter certo e irrevogável.
Certo é que as irmãs priorizavam a ação pastoral intramuros, assim como os padres do outro lado, adotaram a educação, como linha de evangelização. Natural então, que a freiras cuidassem mais das urgências que se mostrassem ali, em seus domínios. Instalações da escola, infra-estrutura, direção pedagógica inspirada em D. Bosco, formação cristã.
Por isso, quando um desavisado topava com irmã Clara varando as pontes da Pedreira e Sacramenta, estranhava. Não era comum ver as filhas de D. Bosco na rua. A vontade de Deus (acredito nisso), no entanto, aquela que subverte as conformidades e regras, para nosso bem e ajudando bastante para o bem de toda Santa Igreja, nos trouxe Clara, para os igapós.
Sempre acompanhada, porque a idade adicionada a compleição germânica agigantada exigiam cuidados, de uma ou duas meninas que ela mandava vir das Missões do Rio Negro, irmã Clara percorria as passagens, os chagões mais escondidos aplicando injeção, fazendo curativos, atendendo uma receita, prescrevendo um cuidado. Era incansável. Dava o expediente na escola, mas se um chamado houvesse, não contava conversa. Catava as meninas e se abalava. Muitas vezes era vista com seu hábito alvíssimo desafiando a noite para completar uma dose, adiantar um emplasto, realizar uma tapotagem num bebê catarrento.
Muito articulada com os pares europeus, Clara, naquele tempo,  conseguia com a freqüência e a quantidade suficiente, medicamentos que até hoje a sistema de saúde pública do Brasil peleja e não consegue, e se consegue, é daquela forma :falha aqui, ajeita ali, falta acolá.
Irmã Clara era a responsável, também, pelo suprimento de hóstias na celebração da Eucaristia, inspecionava o sacrário, contribuía para a sobrevivência da congregação como guardadora das sacolinhas que corriam o salão durante o ofertório, arrecadando o facultadíssimo dízimo e às vezes não entendia as novidades que nossa equipe de Liturgia inventava. Torcia o nariz, mas não ralhava não.
Chegava bem antes do início da Missa. Acendia as velas do altar, aprovava o vinho, o bordado dos guardanapos, lustrava a patena. Sentava bem na frente e toda vez que me via me chamava e dizia que tinha conhecido uma Sodré lá no alto Purus, eu lhe sorria e pensava nas pontes e palafitas do bairro. No altar,“O Senhor esteja convosco”. E a Missa começava.


sábado, 1 de novembro de 2014

crônica da semana - cipó do tarzan

Cipó do Tarzan
O local de trabalho, via de regra, é aquele ambiente frio, compenetrado. Há, porém, a variação, a conotação. Tanto do local como da natureza do trabalho...
Entrávamos na picada, num plano já um tanto varrido de tantas as vezes que a gente usava aquele caminho. Dali a alguns metros, percebíamos uma pequena inclinação no terreno. Uma suave ribanceira delineava um vale raso, que descia discreto para um leito seco e depois se erguia com a mesma delicadeza, do outro lado. Exatamente na junção das duas margens, no ponto mais fundo do vale, desenrolava-se um enorme cipó. Inteirado a um galho portentoso, o cipó desvelava-se soberano na estreita clareira que se formava no entorno da grande árvore. Pra quê! Era um pé para que a minha turma todinha, formada por pais de família, trabalhadores sérios, conservadores, dedicasse alguns momentos do dia para a prática libertária, de se balançar no cipó. Antes de pegarmos de vera, no trampo, a parada para o recreio no cipó do Tarzan, como assim o batizamos, em vôos alucinantes por sobre o talvegue, era lei.
O local de trabalho, via de regra é...Há, porém, a conotação.
E às vezes, uma impressão sobre o nosso local de trabalho, no lugar do gozo ou da curtição deixa gravada na memória um presságio. Um aviso. Um risco iminente. Uma valência, um milagre. Ou o destroçamento completo da fé estatística.
Contei, na minha lida, aproximadamente 1000 dias desbravando as matas que margeiam o Xingu. De incidentes, encontros indesejáveis, conto com pouca prosa. Uma canoa alagada, um esbarrão com uma onça mais medrosa que eu, um tropeção numa aranha braba. Um abraço de repente num espinheiro rodeado de talinhos amarelos afiados. Uma surra de carrapatos. A companhia indesejada de uma jararaca no punho da minha rede. Nada que me dê deferências de aventureiro na qualidade, muito menos de quantidade. Os sustos, se a gente for fazer um arme e efetue, espalhados pelos mil dias e poucos, resultam numa relação muito das suas sem graça de 1 caso a cada 100 dias, isso, já dando aquela exagerada. Digo, sem titubear, que o meião da selva amazônica é cantinho bem mais seguro que algumas esquinas de Belém.
Mas estas mesmíssimas picadas por onde varava todos os dias ao lado da Transamazônica e que logo na entrada nos recebiam com a folga do cipó do Tarzan, me aprontaram uma que parecia duas. Subverteram a probabilidade certa manhã.
Naquele dia, estava sem a minha equipe. Fazia um trabalho de mapeamento, algo solitário. Um companheiro apenas ia comigo como medida de segurança, e também, para trocar uma prosa, né. Demos uma balançada rápida no cipó e sumimos no trecho. Nem bem esquentamos na caminhada, meu ajudante deu o alerta. Bloqueou minha passagem por sobre um tronco caído, adiantou-se, puxou o facão da cintura, revolveu a folhagem à frente, e de lá saiu com mais de mil, uma teba duma cobra. Estava pronta pro bote. Acuada, fugiu. Cismei. Àquela hora? Nem bem começávamos nossa jornada! Mas continuei. Antes das 9 da manhã, já havíamos nos batido com mais duas cobras pelo caminho. E uma delas era deste tamanhinho, gitita que mal dava pra perceber a pele vermelha escamada. Meu acompanhante identificou: Surucucu de fogo. Veneno bastante pra derrubar cavalo só no trisca.
O susto que acontecia a intervalos de cem dias, aconteceu em menos de duas horas de trabalho. Em três exasperantes episódios. Não contei conversa. Ressabiado, suspendi a atividade do dia, me dei folga e voltei na mesma pisada para meu acampamento, não sem antes dar mais umas balangadas no cipó, pra tirar a angústia do peito... Conotações do trabalho.