Minha bênção
Mamãe dizia sempre que ele foi uma bênção na minha vida. Estava absolutamente certa.
Apareceu pra mim como um mágico, um encantado que desafiava a lei da Física. Era capaz de sair da casa dele, no âmago da Matinha, quando o relógio já se adiantava e muito além da uma e, banhado pela luz da tarde belemense, emergia na sala de aula antes que o professor encarreirasse a chamada. Eu sempre acreditei que ele rompia a linha do tempo: saía de casa depois, e chegava à Escola Técnica antes da uma hora, antes da batida da campa. Quem era capaz daquilo, era uma pessoa muito especial, como se diz hoje, diferenciado. Nos ombreamos numa pariceirada, naquele segundo semestre de 1979 e não mais nos apartamos.
Não que eu fosse um moleque que demandasse bênçãos assim, no qual pega. Era um pequeno ajuizado. Quando entrei na Escola, já tinha quatro anos de carteira assinada. Era um menino cheio de obrigações e responsas. A minha perdição era a tal da bola. Se a pelota ameaçava rolar, pronto, aquele meu mundo certinho ruía. Nada, porém, que balançasse a moral que eu tinha com a vizinhança ali da Vila Mauriti (vigi, era mimado. Tido e havido. Considerado na barra).
Mas aquele encontro em sala de aula me apresentou um outro mundo, aliás, me estendeu os conceitos, os pensamentos sobre o mundo. Me trouxe bênçãos, é certo (de vera mesmo, eu era um moleque que não pensava. Trabalhava, jogava bola, era certinho, não vivia na bandalheira, mas não pensava, ou pensava reto, mínimo, o tantinho certo para varar os dias e as noites, isento e descontaminado).
Ele vinha da Matinha com aquela carga energética dos subúrbios, com o fulgor edificante dos arrabaldes. Pôs pra chulear nas minhas raquíticas certezas. Aos borbotões, com ligeireza e graça, retratos da vida real foram se formando à minha frente e me surpreendendo (quando descobri, por ele, que nem tudo era garbo ou entusiasmo nos desfiles militares, tomei um choque. A minha retidão não admitia a subversão).
Nossos passos, além da circunscrição da Escola Técnica foram dar na Igreja. Ele me inseriu no mundo católico dos movimentos jovens (e logo eu que, já saindo da casa dos 15 anos, sequer tinha estudado o catecismo e feito a Primeira Comunhão). Tirando, entretanto, as formalidades (que foram convenientemente superadas), vivemos uma fase bacana na Igreja. Nessa época, aprendi mais sobre política (o que, mesmo nos estertores da ditadura, ainda era bem arriscado), sobre arte, fé (esperança, caridade, inspirações e amizades). Viramos irmãos. No seio da Igreja, juntos fizemos de um tudo. Passeatas, procissões, sermões, retiros, reflexões (houve até quem jurasse ter visto Maria, numa dessas introspecções. Tínhamos a pegada da sugestão). Naqueles tempos, ele já demonstrava talento e jeito para a criação. Fez textos (até hoje lembrados) para teatro, músicas (nunca no quadradão. Ousava sempre nas harmonias, mesmo sabendo, na ocasião, uma coisinha a mais que ré-com-sétima/sol). Já dava show nas colunas e seções do nosso jornal, antecipando, na escrita precisa e elegante, a carreira que abraçaria. Eu ficava olhando aquela desenvoltura, aquele traquejo, aquela ginga (‘cores, odores, sabores, dores, dolores e daguimares’) suburbana da Matinha moldando a verve imberbe daquele garoto compridão de andar obtuso, olhos de uma alegria rubra e sorriso algo anárquico, algo delator, algo imperioso e absolutamente doce e verdadeiro. Meu amigo, Meu melhor amigo. Que cuido e admiro, e que mais com pouco, daqui a duas luas, estará no berço. Minha bênção ele. Minha bênção pr’ele.