sábado, 25 de setembro de 2021

crônica da semana - casquinho de muçuã

 O casquinho de muçuã, a farofa e o purgatório

Queria tanto saber das coisas do Acre e o que acabei conhecendo, pelo Leandro Tocantins, foi um pouquinho mais da história de Belém.

Teve uma época que eu fiquei num pé e noutro para chegar às obras do escritor paraense, nascido no largo da Sé, em Belém, e criado às margens do rio Tarauacá, no Acre. Era a fase da cuíra pra saber das coisas e do povo da seringa. A história, os costumes, os primeiros seringueiros a chegar por lá. O caso da independência. As peripécias do Galvês, eu já sabia pelo romance do manauara Márcio Souza. Queria, porém, os fatos cravados e dados. Sem os pitacos romanceados. Um professor meu que era de Cruzeiro do Sul indicou Tocantins como referência na historiografia do Acre.

Não tive sucesso, naquela fase de precisão. Consegui, não me lembro onde, um trabalho acadêmico muito esclarecedor sobre a ocupação do Acre e foi a partir dele que escrevi, muito oportunamente, uma crônica em meio àquela arenga que tivemos com o presidente da Bolívia, lembram? Foi quando o Evo Morales inticou com a gente dizendo que o Acre havia sido trocado com a Bolívia, por um cavalo.

E eis que estava Bembelebém, viva Belém, numa manhã de domingo, no gozo do lar quando meu sobrinho me chega com os mimos. Havia herdado uns exemplares antigos da biblioteca da família e lembrou de mim. Pensou se eu não queria ficar com alguns. E me trouxe as raridades. Uma coletânea memorável de Bruno de Menezes e uma publicação de 1963 de “Santa Maria do Belém do Grão Pará”, adivinha de quem?

Pois é, do cujo. Leandro Tocantins conta tintim por tintim fatos marcantes da história de Belém. E, o que me chama muita atenção, numa linguagem quase que inocente, desprovida de patrulhas. Apresenta personagens que retratam o poder religioso na figura do Frei Caetano, passando pelo poder político representado por Antônio Lemos. Tem um chamego por Landi indisfarçável que reina creditar ao arquiteto bolonhês, com o mesmo fervor, a criação de obras que vão do mais simples ferrolho do mais escondido casario marginal da Cidade Velha ao desenho delicado da capela de São João Batista. Descreve logradouros, ruas, praças, as festividades, as personalidades, as campanhas religiosas. Dá a receita do tacacá, de banhos de cheiro e sem a menor tremedeira ecológica indica pratos que não podem faltar na mesa do paraense em épocas festivas, em especial o casquinho de muçuã (destaque para a dramática narrativa que faz do “preparo desta maravilhosa iguaria: as tartaruguinhas são postas vivas no panelão de água fervente com sal para obter o cozimento”) e o paxicá (guisado de fígado de tartaruga). Sentencia que não conhece outro jeito de tomar tacacá que não seja na cuia-pitinga ou mesmo na outra, a santarena.

É objetivo e surpreende ao explicar o sentido de cada um dos carros que compõem o cortejo do Círio ou quando desvenda a razão das gravuras inscritas nos quadrantes que formam o Brazão d’Armas de Belém, aquele desenho que a gente vê na lateral dos ônibus.

É um livro robusto, tem cheiro de velhinho, por isso o li do início ao fim, protegido pela mesma máscara que me protege dos negacionistas e do vírus maldito. Tem a minha idade e trata-se do segundo volume.

É uma leitura cativante, temperada de cores e formas, e como já disse, de uma inocência colada a seu tempo, pois que desde que me entendo por gente paraense, tenho pra mim que é pecado mortal comer muçuã. Farofa de tartaruga no casco então, dá no mínimo, uma eternidade de purgatório.

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 19 de setembro de 2021

Crônica da semana - a raposa e as uvas

 A raposa e as uvas

Os dias se entortam, vergam-se em contradição (até granizo deu de chover). Libertam-se de calores e rotinas. Somam-se em entardeceres pardacentos. Aqui, acolá, as cores escondidas no horizonte, como se fossem o carneiro do Pequeno príncipe, dentro da caixa. E a raposa? Sábia, tomando conta do galinheiro, neste Brasil sem prumo. Cheia de histórias e frases de efeito. E as histórias...

Fizemos uma feirinha, suquinhos, biscoitos recheados, um embrulhinho humilde de uvas roxas. E esperamos a caixinha de cores aparecer no horizonte, numa tarde dessas de Belém, cheia de potencialidades. Enquanto o céu não se abria, a gente a bom conversar. As perguntas surgindo. E os desenhos da vida se realizando.

Quando chegou no meu avô, estanquei. Percebi que não sabia nada dele. Conhecia o fato de ser Agente estatístico. Agora, por que foi se bandear para o Acre, sei não. Inventei um causo e liguei a diáspora da família a uma suposta arenga política com o presidente Getúlio. Depois, fazendo as contas certinhas, vi que o resultado não fechava.

Meu papai, apesar de não ter continhas suportando as datas, sei que é da turma da seringa. Daí é fácil. Se não foi pela guerra, a família dele foi dar nas raias ocidentais por causa das primeiras levas de nordestinos que bateram os pés nos barrancos do rio Acre, bem no início do século 20.

O céu é mudo. A caixinha não se mostra. Tardes nubladas, às vezes raios caindo perto e trovões que dão medo. Avalie as cores matizadas. E a conversa flui. Tem a raposa, tem a uva... A gente é responsável por aquilo que cativa.

As plantinhas revigoradas ao pé do batente. Ouvindo tudo. Plenas de água e luz. Percebo que criei uma confusão com os verbos cativar e cultivar. Cá com meus botões entendo ‘cativar’ ter a ver com cativo, aprisionado, sob domínio e controle de alguém. Desconfio da raposa. Aprecio mais o verbo cultivar e o argumento silencioso, pleno de verde que as plantinhas cultivadas ao pé do alpendre me revelam.

Não conheci meu avô de Belém. Sei, virou-se de lado na rede para dar vazão à hemoptise. Pessoas que eu amava muito, da minha família, em um momento ou noutro, e às vezes gozando até de alguma saúde, foram acometidas de crises espantosas de hemoptise. Parece uma coisa! Papai tinha lábios vermelhos de gritos. Toda vez que embarcava um lote de pélas defumadas do puro látex, dava um sorriso satisfeito e a gente reparava nele, os dentes vermelhos. E vinha me beijar. Meu doce vampiro.

Regressou, vovô para Belém, e deixou mamãe acenando e vertendo uma lágrima discreta de saudade e de solidão na beira do barranco lodoso do rio Acre. Mamãe não mais o veria.

Mais adiante, nos juntamos todos, menos o Agente estatístico, num cantinho da Pedreira. Eu gostava de apreciar o movimento da noite com a vovó, no canto da Lomas e não imaginava sequer carneirinho dentro de caixa, que dirá horizonte matizado. Sou mais acreano que paraense. Sou mais seringueiro que Agente estatístico. Sou mamãe na beira do barranco. Sou mais paraense que os onze que se empoleiravam em uma casa de dois cômodos e um mezanino na Vila Mauriti. Danço e canto carimbó que nem os suprimos do Pacovar. Não falo com aquele sotaque estranho e com a desinência em zê dos acreanos: “Ai meu deuzo!”. Fui cativado pelo chiado dos dizeres paraenses. E por esses dias tortos, tô preso! Tô preso na caixinha!

Quando escalei a cordilheira dos Andes, lá na cumeeira do mundo, a 4 mil metros de altitude, meu nariz sangrou. Parece uma coisa! 

 

 

sábado, 11 de setembro de 2021

crônica da semana - não vai perder!

 Não vai perder! (amigos sumidos assim)

Eu já tinha decidido que só faria minhas caminhadas aeróbicas pelo canteiro da Marquês em trecho inteiriço. Naquele estirão que não é cortado por nenhuma rua. É que a turma motorizada, os choferes donos da presepada e da rua toda, não estão nem aí. A galera não respeita. Faz conversão irregular, retorno canhoto. Não dá trela pra quem está caminhando ou de bicicleta.

Acontece que nesta última sessão de sábado, tive que encarar.

O dia tava todo conforme o combinado. A caminhada começou um pouco mais tarde porque pretendia pegar umas informações de um amigo há muito longe e sem notícias. Queria passar na casa da família dele aqui na Pedreira num horário que já estivessem acordados. Mais tarde, mais Trânsito.

É meu amigo de maior data. Nos conhecemos na Aparecida. Alfa, Primeira atrasada, Primeira adiantada. Marcha no dia da raça. Aulas com as professoras Raposo, Ivani, Maria de Jesus, Nazaré Cruz, Iolanda; o bêábá suave, o Ivo viu a uva. As cantigas protocolares “Boa tarde visita como vai/a nossa amizade nunca sai/faremos o possível/ para sermos bons amigos/ boa tarde, visita como vai”. Um Primário inesquecível. Missa com padre Geraldo e passeios no dia das crianças.

Moramos perto. Éramos adversários em grades nos mínimos planos de piçarra que se formavam na Marquês para a pelada do final de tarde. Cada qual dando sangue pela sua rua. A escola deu um tempo em nossa relação. Não estudei no Justo, como meio mundo de moleques da Pedreira. Mais adiante retomamos nossa amizade, nas aulas aterrorizantes de Matemática na Escola Técnica e construímos juntos um pensamento e uma conduta política em saudáveis diálogos tomando sorvete nas calçadas da Duque. Nossa cabeça dava Pi voltas sobre dois enes nessa época. A tensão era uma constante e o futuro uma incógnita ante um regime que ainda teimava dar razões, proporções e regras duras ao Brasil. Nos conjuntos verdades que apareceram durante a abertura política, nos batíamos enfrentando os tomara-que-chova minados de praças, em batalhas renhidas pela meia-passagem. O tempo passou. Constituímos família, descruzamos rumos, rareamos os encontros.

Por últimos, tínhamos um encontro marcado anualmente. Podíamos passar todo o ano sem nos ver, cada qual com o seu cada qual de viver, mas quando dava junho, estávamos lá ao lado do anfiteatro da Praça da República nos completando um ao outro, atualizando a lida, partilhando as mazelas do coração e arriscando um coro ou um passinho da coreografia, em meio à folia do Pavulagem.

Até que veio a pandemia e a treva política que nos envolve. Meu amigo sumiu.

Desde que tomei a segunda dose, pus na cabeça ir atrás de notícias. E deu tudo nos conformes. Falei com a cunhada dele. Ela muito prestativa, me deu caneta, papel. Anotei todos os telefones de contato dele e de pessoas próximas, e ainda me recomendou: “não vai perder! Aí tem tudo que precisas”. Continuei a caminhada. Uma paradinha para atravessar a Alferes Costa, e se deu o sobressalto. Quando o sinal da travessa fechou, reiniciei o trajeto. No meio da travessia, dois motoqueiros cidadãos do bem ostentando bandeirinhas do Brasil no guidão das motos, em manobra irregular dobraram na Alferes. Frearam bruscamente bem pertinho já, e ficaram acelerando. Tive que dar aquele velho pique para não passarem por cima de mim. Na agonia, nem percebi que larguei o papelzinho com os telefones para trás. Cheguei em casa sem.

 

sábado, 4 de setembro de 2021

crônica da semana - as nuvens da pedreira

 As nuvens da Pedreira

Não, olha, que mudou, mudou. Antes era tudo certinho. Chovia de dezembro a junho; em julho ainda aconteciam as pancadas esparsas no decorrer do período; agosto e setembro eram de dias tórridos; outubro chegava com a chuvinha da santa; novembro voltava a esturricar o cocuruto e dezembro começava tudo de novo. Hoje ninguém entende mais nada. O tempo tá um destrambelho só.

Semana passada dei um pulo na rua, de tarde, para atender a uma precisão. Meio-dia e pouco e nem estava tanto calor. Comentei com o motorista do aplicativo a presença de nuvens se formando além e aquém e falei da minha animação em voltar caminhando, caso o céu continuasse daquele jeito, nuveado.

É costume antigo bater perna pelos escaninhos da Pedreira e que foi potencializado nessa pandemia. É regra que, se eu puder realizar qualquer caminho andando, e se o estirão não for muito ao largo do condado da Pedreira, o faço. Já ocorreu até d’eu fazer um bate-volta recorde de distância lá na José Malcher, no pé, e ainda chegar em casa com um super bem acolhido saquinho de pão. Tem um valor revigorante, de cuidado e atenção com a saúde, a caminhada. A gente estica o esqueleto, apura o equilíbrio, ativa os sensores, a intuição, respira com mais qualidade.  E ganha um quê de proteção quando evita contatos sociais, hoje minados de desconfiança, por causa da pandemia (e dos melindres ideológicos-políticos agudizados).

Eis que na semana próxima passada voltei andando mesmo. Após fazer a minha missão, analisei a movimentação das nuvens, a textura, a variação nos tons de cinza e considerei que o sol ia esfriar. Tirei em uma hora e uns caroços até em casa. E pensemos cá, em um tempo limite, no trisca. Foi atravessar a porta com o indefectível embrulhinho de pão e o pampeiro arriou. Causou espanto aquela chuvarada no final da tarde. Pleno agosto.

O mês é cantado e decantado como um dos mais quentes do ano. Nessa época é comum a gente ouvir reclamações dos afogueados. É gente com cara de pupunha nos ônibus, outros gravando vídeos fritando ovos no asfalto. Dá-se como natural, então, o susto com o pampeiro. E eu até tentei fazer uma contagem. Se não perdi a medição, foram pelo menos cinco temporais em agosto, e em alguns casos, com termos e jeitos de cair raios e alagar a cidade.

Fiquei curioso com estas reincidências. Aí fui às pesquisas. E é bom, dá um alento a gente perceber a razão de ser da estatística e dos cronistas (este um aqui, no caso).

Consultei uns números. Pus fé no meu taco que aponta para um comportamento diferente do clima, nos últimos tempos em Belém. É um mecanismo que dá sinais das mudanças climáticas globais, e que se refletem aqui no nosso quintal, na varanda, no alpendre, no céu da Pedreira. Não pecamos quando nos quedamos ao estranhamento. Realmente, o mês de agosto já foi bem diferente. Foi mês de fritar ovo no asfalto mesmo. No entanto, na vera, as experiências recentes mostram uma alteração na incidência de chuva.

E a minha crônica do ano passado confirma esta alteração. Não é um fato que se percebe hoje. Um ano atrás eu chamava atenção, inclusive para essas nuvens se movimentando no meio do dia. Céu plúmbeo, algodoado e denso, com se estivéssemos em fevereiro. É o destrambelho. Uma desordem molhada pleno agosto. Diferente, muito diferente de antigamente quando tudo era muito certinho. Chovia de dezembro a junho e se falava pancadas de chuvas esparsas no decorrer do período... E que passava logo. Vai passar. O destrambelho vai passar.