domingo, 19 de setembro de 2021

Crônica da semana - a raposa e as uvas

 A raposa e as uvas

Os dias se entortam, vergam-se em contradição (até granizo deu de chover). Libertam-se de calores e rotinas. Somam-se em entardeceres pardacentos. Aqui, acolá, as cores escondidas no horizonte, como se fossem o carneiro do Pequeno príncipe, dentro da caixa. E a raposa? Sábia, tomando conta do galinheiro, neste Brasil sem prumo. Cheia de histórias e frases de efeito. E as histórias...

Fizemos uma feirinha, suquinhos, biscoitos recheados, um embrulhinho humilde de uvas roxas. E esperamos a caixinha de cores aparecer no horizonte, numa tarde dessas de Belém, cheia de potencialidades. Enquanto o céu não se abria, a gente a bom conversar. As perguntas surgindo. E os desenhos da vida se realizando.

Quando chegou no meu avô, estanquei. Percebi que não sabia nada dele. Conhecia o fato de ser Agente estatístico. Agora, por que foi se bandear para o Acre, sei não. Inventei um causo e liguei a diáspora da família a uma suposta arenga política com o presidente Getúlio. Depois, fazendo as contas certinhas, vi que o resultado não fechava.

Meu papai, apesar de não ter continhas suportando as datas, sei que é da turma da seringa. Daí é fácil. Se não foi pela guerra, a família dele foi dar nas raias ocidentais por causa das primeiras levas de nordestinos que bateram os pés nos barrancos do rio Acre, bem no início do século 20.

O céu é mudo. A caixinha não se mostra. Tardes nubladas, às vezes raios caindo perto e trovões que dão medo. Avalie as cores matizadas. E a conversa flui. Tem a raposa, tem a uva... A gente é responsável por aquilo que cativa.

As plantinhas revigoradas ao pé do batente. Ouvindo tudo. Plenas de água e luz. Percebo que criei uma confusão com os verbos cativar e cultivar. Cá com meus botões entendo ‘cativar’ ter a ver com cativo, aprisionado, sob domínio e controle de alguém. Desconfio da raposa. Aprecio mais o verbo cultivar e o argumento silencioso, pleno de verde que as plantinhas cultivadas ao pé do alpendre me revelam.

Não conheci meu avô de Belém. Sei, virou-se de lado na rede para dar vazão à hemoptise. Pessoas que eu amava muito, da minha família, em um momento ou noutro, e às vezes gozando até de alguma saúde, foram acometidas de crises espantosas de hemoptise. Parece uma coisa! Papai tinha lábios vermelhos de gritos. Toda vez que embarcava um lote de pélas defumadas do puro látex, dava um sorriso satisfeito e a gente reparava nele, os dentes vermelhos. E vinha me beijar. Meu doce vampiro.

Regressou, vovô para Belém, e deixou mamãe acenando e vertendo uma lágrima discreta de saudade e de solidão na beira do barranco lodoso do rio Acre. Mamãe não mais o veria.

Mais adiante, nos juntamos todos, menos o Agente estatístico, num cantinho da Pedreira. Eu gostava de apreciar o movimento da noite com a vovó, no canto da Lomas e não imaginava sequer carneirinho dentro de caixa, que dirá horizonte matizado. Sou mais acreano que paraense. Sou mais seringueiro que Agente estatístico. Sou mamãe na beira do barranco. Sou mais paraense que os onze que se empoleiravam em uma casa de dois cômodos e um mezanino na Vila Mauriti. Danço e canto carimbó que nem os suprimos do Pacovar. Não falo com aquele sotaque estranho e com a desinência em zê dos acreanos: “Ai meu deuzo!”. Fui cativado pelo chiado dos dizeres paraenses. E por esses dias tortos, tô preso! Tô preso na caixinha!

Quando escalei a cordilheira dos Andes, lá na cumeeira do mundo, a 4 mil metros de altitude, meu nariz sangrou. Parece uma coisa! 

 

 

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