sábado, 31 de outubro de 2020

crônica da semana - A música na frente

 A música na frente

Na falta dos rolés tradicionais de outubro, este ano nos quedamos em casa a trocar prosas sobre curiosidades, detalhes pouco percebidos nas grandes movimentações do Círio. Os colégios Gentil e Nazaré entraram na conversa. O Gentil é parada final. Recriamos o momento da chegada e guarda dos carros da procissão, na grande área ajardinada na frente do prédio. Acrescentei que na última vez que acompanhei minha filha nas mobilizações do ensino médio, nem chegamos a atravessar o portão do Gentil conduzindo nosso carro. Dali mesmo, voltamos pra casa.

Tirando por essa passagem da conversa, constatei que não foi muito comum, na história da minha vida, atravessar os portões do Gentil. Duas contadas vezes, tive a oportunidade de cruzar o jardim da escola. A primeira vez foi quando, ainda no início da década de 1980, o padre Bruno Sechi coordenou a Pastoral de Juventude da Arquidiocese. Fizemos um grande congresso, ocupamos as dependências da instituição, agraciados por obsequiosa concessão feita pelas Filhas de Santana aos jovens entusiasmados, cheios de vontade, ávidos por um mundo melhor. Todos os dias do congresso eram iniciados e terminados com música. Nem sempre religiosa, mas inevitavelmente de alta energia, de apelo a mudanças, mensageiras de paz e justiça.

A outra e inesquecível vez que entrei no Gentil, fiquei só por ali, pelo alpendre. Aconteceu alguns meses antes de sair de Belém para ganhar a vida em Rondônia. O jardim do colégio recebia um festival de música e naquela noite, um grupo chamado, olha só que coincidência, Madeira-Mamoré, tocava no palco montado na área externa. Fiquei com a estranheza do nome da banda martelando na cuca, e, olha o destino: nos anos seguintes, seria íntimo, saberia muito sobre a história da ferrovia Madeira-Mamoré. Conheceria descendentes de barbadianos que trabalharam na construção, faria viagens na Maria Fumaça, pelo trecho ainda em operação, conheceria as obras de Márcio Souza e Manoel Rodrigues Ferreira tecendo uma, enfoque diferente da outra, para o tema.

Encarreirei a nota que fiz sobre o Gentil ao resgate lá dos mesmos idos oitentistas, e a uma deferência a mim dada para avançar nas dependências do Colégio Nazaré. Ocorreu na posse da primeira gestão de uma entidade de estudantes secundaristas após a devassa promovida pelo AI-5. Ainda sob a sigla Uesp, o movimento se reerguia ali intramuros maristas. Tomei posse, mas já deixando de ser secundarista.  Estava concluindo meu curso na ETFPA. Mais tarde a entidade se reorganizaria como Umes, mas eu já estava em Rondônia, na lida. Não teve música na posse, mas a música do Nazaré, eu já conhecia do Mojuvena, que era unha e carne com o colégio. O grupo participava de todos os festivais da Escola Salesiana. E em alto estilo. Tinham os melhores instrumentos, levavam a própria mesa, microfones. Taí, se um dia tive uma invejinha doce, foi daquele aparato do Mojuvena. E tocavam pacas. Hoje, quando vou acompanhar a chegada da Santa, na Romaria Fluvial, me demoro ouvindo a banda na frente do Nazaré. E me bate a história do Mojuvena, me ocorre a posse da Uesp.

Acho que nas decisões graves que a gente tem que tomar, a música deva vir sempre à frente. Mesmo que, para servir depois de reflexão: como, meu pai, com tanta motivação ativada pela música, com tantos jovens energizados, buscando mudanças em grupos de igreja, na militância estudantil, ou na harmonia dos festivais... Como nos deixamos afundar neste buraco que é o Brasil hoje?

 

sábado, 24 de outubro de 2020

crônica da semana - peco

 Tudo isso será teu

O pó da estrada escondia o caminho. A gente deixava o carro passar, dava um tempo pra poeira sentar e continuava o trajeto a pé, pela estradinha mal arrumada que nos deixava perto da entrada do nosso acampamento. Era uma estrada usada pelos garimpeiros e alguns proprietários de terra que se distribuíam pelos ermos da Perimetral Norte.

Deixávamos a frente de trabalho, fora do horário, porque o rapaz que me acompanhava tinha que ir urgente pra cidade. Nem bem tinha voltado. Passou os dias legais de licença paternidade em Macapá, mas já tinha que voltar. A criança não vingou. Não dava pra esperar o transporte rotineiro. Liberei o rapaz do trabalho e o acompanhei até o acampamento. Pegamos o atalho e ganhamos o rumo da base, para que ele se arrumasse, pegasse as coisas, um transporte e ainda alcançasse o horário do trem, na estação de Cupixi. Enquanto vencíamos aquele estirão toldado de vez em quando por uma chuva de poeira vermelha e fina, ele me contava da vida. Lamentava a perda do filho. Era o segundo. Achava que era uma sina. O primeiro já havia nascido com problema. Cabia na palma da mão. Falava com um certo conformismo. Dizia que só tinha filho peco. Aceitava o destino e entregava tudo nas mãos de Deus. No dia seguinte enterraria o anjinho sem duvidar um só instante que aquela era a vontade do Senhor.

Depois que despachei o transporte para a estação do Cupixi, atinei: não sabia o que era peco. Mas pelo que ele falou na nossa conversa, dava pra imaginar.

O outro já não aceitava o destino. Vinha da Bahia. Deixou a família no recôncavo e foi procurar melhoria de vida nos garimpos do Oiapoque. Não se deu. Era homem forte. Mãos calejadas, acostumadas ao trabalho duro na roça. Não se adaptou àquela vida no garimpo. Sonhava era com um pedaço de terra pra plantar. Sem muita opção, conseguiu emprego e foi trabalhar comigo de ajudante geral. Fazia de tudo, mas naqueles tempos, com folga nas frentes de trabalho e com uma deficiência na logística, foi deslocado para dar apoio na cozinha. Levava o nosso almoço no campo. Numa ocasião, fazíamos uma pesquisa na borda de um milharal. Uma fazenda toda fatiada em pequenas culturas. Deixou nosso cumê, esperou todo mundo acabar, organizou as marmitas, mas não voltou pro acamamento. Ficou por ali. Subiu um barranco próximo e sentou lá em cima, pensativo. Deixei a turma no batente e fui ter com ele.

O lugar era um mirante privilegiado. De lá dava pra ver a imensidão da fazenda, os tipos de plantações, lá no fundo o céu azul. Houvesse uma comparação para aquele cenário, pescaria das tentações que Cristo recebeu no deserto. “Se me adorares, tudo isso será teu”.

Mas ele só queria um pedaço de terra.

Sentei ao lado dele, ouvi as histórias do recôncavo, do garimpo. Do inconformismo. Nunca na minha vida identifiquei tanto amor à terra se denunciando em uma pessoa e numa linguagem tão verdadeira. Chegava a descrever procedimentos, condutas, cuidados que uma roça exige. Contou como se preparam as tarefas. Mencionou métodos de irrigação, manejo de frutas e hortaliças. Era um homem da terra. Senhor da terra sem terra. Falava, fitava o horizonte e, sem se notar, espalmava a mão no chão em que nos acomodávamos. Como se quisesse entrar no solo, misturar-se ao húmus. Cavar, cultivar um destino diferente daquele de entregar marmita para a turma no campo.

Bem lá adiante, já pertinho do céu, o pó da estrada escondia o caminho e os sintomas de um país peco.

 

 

 

sábado, 17 de outubro de 2020

crônica da semana - encontro de lilases

 Encontro de lilases

Semana minada de emoções, decepções com insanos ajuntamentos de gente, surpresas e chuvas da tarde, aquela aziazinha remanescente das extravagâncias do almoço de domingo e eu me vendo bestinha da silva de descobrir, em tantos anos escrevendo aqui e alhures, não ter, até então, incorporado ao meu vocabulário a palavra composta por justaposição, “arco-íris”. É vera. Não tenho na memória o registro deste belo e intrigante espetáculo nas minhas prosas, tanto que fui às pesquisas na escrita normativa para poder grafá-la aqui na justaposta certeza do hifenizado colorido, correto e aprovado pela recente reforma. E que arco-íris fez domingo passado, heim! Arrasou! Veio em dois. Para marcar o dia. Matizou o céu do Círio diferente. Mamãe, que não descartava os ditos e os mistérios, se entre nós ainda estivesse, por certo cravaria: “parece uma coisa”.

O arco-íris se realiza a partir da conjugação de um fenômeno meteorológico, mais um processo físico ótico e uma dose fundamental de sensibilidade humana. A presença de água na atmosfera, um solzinho brilhando em baixo ângulo e nosso olhar de observador encantado são os elementos necessários para que o arco se dobre em um espetáculo de cores que entontece a gente.

É imagem difícil de explicar. O gênio de Newton, há mais de 400 anos, suavizou nossas inquietações deduzindo sete cores principais que formam o arco-íris. Mas lá nos escaninhos científicos certificam-se centenas, milhares, milhões de milhares de tons e semitons entre o vermelho e o violeta do espectro desvelado no céu.

E no domingo, dois arco-íris se formaram. Compuseram com a igreja de Nazaré, um cenário único, plástico, divinizado em coração de mãe.

Não sei se diante de tanta beleza e de uma nesgazinha de bem-vinda incompreensão (do fenômeno, Newton, espectro...) ou de uma oportuna crença (mamãe, mistério... “parece uma coisa”); não sei se foi percebido, por quem presenciou o fenômeno, o detalhe de a ordem das cores, nas faixas que compõem o arco-íris, se inverter, de um exemplar para o outro. E esta constatação dá chance ao mix de sentimentos se justificar, quando nos deparamos com a contraposição, com o encontro de lilases, com o distanciamento dos vermelhos, com imensidão de luz traduzida nas sete plenas, infinitas cores.

O que os nossos olhos acreditam ver, também sugerem a transcendência.  O arco-íris é citado no Antigo Testamento como o símbolo da aliança entre Deus e os homens, após o dilúvio.  É uma mensagem. Uma certeza.

O céu de um domingo de Círio, em meio a tantos problemas que enfrentamos atualmente; um domingo de Círio, por certo, sem paralelo na história. Sem procissão, sem Corda, sem o Carro dos Milagres. O céu de um domingo do Círio, colorido por um fenômeno físico, formado em duplicidade, em choque de lilases, para muita gente foi um sinal de novos rumos e tempos (“parece uma coisa”, uma mensagem, a bênção da Virgem de Nazaré...).

Quando morei fora de Belém, por um período de mais de dez anos, minha mãe, todo Círio, mandava pra mim um roc- roc. O brinquedo era símbolo. Era mensagem. Era certeza de nossa aliança. Fez parte da minha felicidade daqueles tempos em diante.

Em isolamento, neste Círio, não saí de casa, não vi a santinha, não comprei meu brinquedo de miriti.

O céu do domingo cortou e arou. Foi consolo e conforto. Trouxe pra mim um sentimento de esperança, de Círio e roc-roc. Espero que para o coração do mundo também.

 

 

 

sábado, 10 de outubro de 2020

crônica da semana enxadeco e chibanca

 Enxadeco e chibanca 

Uma ferramenta é o que o nome diz, mesmo: uma enxada pequena, magrinha e compridinha. A outra, como se fosse uma picareta, é constituída de duas pontas. De um lado, a parte cortante tem as aparências do supracitado enxadeco; do outro, forma uma ponteira de corte afiado, à guisa de uma talhadeira. Dou destaque a essas peças porque compunham as ferramentas necessárias para cavar poço, nas campanhas de Geologia que minha turma fazia margeando o Xingu. E também, porque eu vi, dias atrás, um filme que tinha uma cena onde, trabalhadores de uma pedreira, ao terminar a jornada, cada qual pegava sua ferramenta e ganhava o rumo de casa. O filme, uma versão de O Cortiço, obra de Aluízio Azevedo, autor maranhense que inaugurou o Naturalismo no Brasil, demonstrava, naquele cortejo saindo da pedreira, a ligação traçada entre o homem e sua ferramenta de trabalho.

Logo tornei à margem do Xingu e imaginei o dia dos pequenos que cavavam poço na minha equipe. Alguns nomes emergem da memória. Jacinto, Bené, Firmino, Onça. Trabalhavam em dois. Chegavam do campo, e antes do descanso merecido, ainda se detinham tratando do material. Lavavam, faziam pequenos reparos, afiavam a lâmina no esmeril, na lima. Acunhavam, introduziam um calço aqui, outro ali. Traziam dignidade àquela relação, muitas vezes vista como de valor reduzido. Imputavam àquelas peças a significância assumida e defendida por eles. Sabiam que pela natureza bruta do ferro e da terra escavada, se o equipamento não estivesse bem cuidado, mais energia gastariam, sofreriam mais, destinariam grande esforço a tarefas de poucos resultados. Havia entre eles a cumplicidade de fio, suor, desterro e corte.

Parece estranho, para quem não viveu dias de peão, uma parceria entre o trabalhador e qualquer artefato de produção, que possa beirar a afeição. Não era amor. E por razões alhures assinaladas, ódio não poderia ser. Penso, porém o respeito, intermediar esta intimidade. Eu mesmo, nos primeiros anos de Barcarena, quando fui apresentado ao cabo de uma pá, no lugar de odiá-la com todas as minhas forças, busquei aliançar-me para que a dor fosse branda. Houve de, a cada fim de jornada, eu limpar, lavar, desempenar minha espátula, guardá-la em lugar que ninguém pudesse achar e querê-la ao meu lado sempre, como amparo e consolo; como renitente tradutora de minhas mágoas. Seríamos nós dois insatisfeitos, embrutecidos. Ineficazes desencrostadores, noite à dentro, de frio, zunidos, vapores, calores predadores. Reclusão e um tênue e necessário fio de razão.

Naqueles tempos outros de Movimento jovem lá na Escola Salesiana, ousávamos. Modificávamos aqui, ali, com cuidado, o rito da Missa, de forma que o Padre Lourenço, embora com reservas, permitisse as mudanças. Certa vez, articulamos um ofertório, em que depositávamos no altar, objetos do dia-a-dia, peças de roupa, máquinas e instrumentos que compunham o acervo doméstico. A simbologia era de oferecer ali, a nossa vida ou elementos construtores da nossa vida.

Acho que é isso que pretendo nesse Círio. Oferecer à Virgem Santa, enxada, chibanca, a lembrança e o carinho que guardo por Jacinto, Bené, Firmino, Onça, a turma que cavava poço e que trabalhava em pares. Também para agradecer porque uma vez desci num poço que os meninos haviam cavado, já há algum tempo, e uma cobra tinha escapulido lá pra dentro. Se escrevo esta história é por obra e graça da Santinha.

sábado, 3 de outubro de 2020

crônica da semana - a vida ensina

 A vida ensina

A gente sempre se encontrava ali para um respiro, tomar uma água, um café. A sala funcionava como um local de descanso. Rodávamos os turnos, e por conta das peculiaridades, as jornadas da madrugada, certamente, eram as mais tranqüilas. Então, naquele tempinho que a gente desanuviava e tomava um ar, trançávamos uma prosa, nos conhecíamos e rolava a parceria.

A vida ensina. Mesmo se a gente não domina as equações, as contas com fração, ou a teoria dos conjuntos, a vida, de palmo em cima, ensina. Quer ver lição mais facinha assim de entender sobre a desvalorização da moeda é a mudança no padrão da melhor coxinha produzida na Pedreira. Qual não foi minha surpresa quando chegou meu pedido ontem. Tudo nos conformes. Menos a envergadura. O tamanho da coxinha caiu quase pela metade. O preço permaneceu o mesmo, mas a elipse, que era rechonchuda, desinflou. O meu lanchinho foi o exemplo clássico de desvalorização da moeda. O mesmo dinheirinho comprando bem menos do que comprava antes. Meio a contragosto, compreendi o sufoco que está passando o pequeno comerciante do meu bairro. Me conformei e como sempre, me encantei com a, embora menorzinha, melhor coxinha da Pedreira.

O rapaz trabalhava comigo no turno. Vinha de Irituia e a origem dele animava a conversa porque andei por ali. Participei da festa do Carimbó, explorei a Vila Pedra, tomei birissuco com a galera.

Era casado, já tinhas dois filhos. Conseguira aquele emprego a muito custo. O ganho era pouco, mas ele pensava melhorar. Estava estudando.

Já no adiantado do Ensino Médio, ainda tinha algumas dificuldades. Eu conseguia lições, textos próprios da série que ele cursava, matérias de História, Português, arrumava uma tirinha de tempo, no turno e exercitava as questões com ele. Fazíamos boas discussões quando analisávamos contextos históricos, aspectos da sociedade atual. Assim como tantas pessoas, formava opinião a partir de programas de televisão sensacionalistas, media fenômenos sociais que o rodeavam com a régua da mídia. Com o tempo, percebi um avanço. As provas que me trazia, revelavam um novo modo de ver e interpretar o mundo. Aqueles resultados me animavam e eu me dedicava mais. Incentivava. Cobrava. Tinha uma deficiência quase intransponível com a matemática. Uma das tarefas que me levou para resolvermos juntos tinha uma sequência de contas com números decimais. Ele adiantou: não sabia fazer. Não entendia patavina daquelas contas de números com vírgula. Pus pra rodar o meu instinto e procurei métodos para fazê-lo crer que ele sabia usar aqueles números.

A organização das parcelas, com vírgula embaixo de vírgula ou dos fatores, contados os algarismos pra lá e os pra cá da vírgula, se realizam na rotina, no dia-a-dia. Simulei meios para que ele reconhecesse essas manifestações práticas. Perguntei se na rua dele vendia chope e quanto custava. Sim. 25 centavos. E se eu comprar quatro chopes? Um real. E mercadinho, tinha por lá? Já comprou uma quarta de feijão, meio quilo de farinha, cem gramas de manteiga? Sim. Alguma vez foi enganado, levou o peso errado, o troco a menos? Não. Tás vendo, evidencie-lhe empolgado. Tu sabes sim. Só não sabes pôr no papel.

A vida ensina. Desafia e inspira. A sobrevivência exige decodificações muito particulares. O Conhecimento organiza e elabora saberes. A vida ensina. O rapaz terminou o Ensino Médio. Mudou de emprego e hoje, sei que opera na atividade portuária de Barcarena. Envolve-se, na lida diária, ora, ora, com números decimais.