sábado, 25 de maio de 2019

crônica da semana. Falar dormindo


O discurso do sono e os punhos da rede
Eu só falo dormindo quando o punho da minha rede está trançado. Se distorcer, durmo bem que é uma maravilha. Durmo no sossego dos silentes. Na quietude dos inocentes.
O custo é ter paciência e habilidade para desemboletar aqueles nozinhos que se formam ao longo dos punhos, e que são ao primeiro e desalentador contato, incorrigíveis.
Para o bem e para o desassombro de todos aqui em casa, nos últimos anos, passei a dormir na cama. A tagarelice noturna caiu quase a zero (com vaga apenas para insignificantes resmungos e rabugices por causa de eventuais zunzunzuns de carapanãs no ouvido). Mas já foi zoadenta e, por vezes, dramática.
Nos tempos em que vaguei pelos distantes da Amazônia, olha que falava dormindo. Era o dito palestrinha das madrugadas. Quando dividia quarto, nos alojamentos e barracos de campanha, era certo que, na hora do café, meus colegas de dormida relatassem perturbadores colóquios.
O teor do monólogo normalmente era identificado como uma arenga, uma admoestação. Um carão a alguém ou ao estado geral do tempo e das coisas. Em casos menos freqüentes, palavras atropeladas de divertimento, seguidas de incontida gargalhada. Era o que me diziam.  Coitados dos meus companheiros de quarto. Não sei a causa desta perturbação do sono. Sei que mamãe jurava de pé junto que era porque o punho da rede estava trançado.
Desconfio que ocorra como resultado das dissimulações que a gente faz na vigília. À noite, retornamos com os sapos que engolimos durante o dia.
Percebi isso quando acampei nas margens do Xingu. Tudo era novidade pra mim. O lugar, a equipe, o tipo de trabalho. Chegava de uma outra realidade, de pouco contato com a mata fechada. No Xingu, tive que encarar os riscos e mistérios da floresta densa. Não podia expressar meus medos e dúvidas diante da equipe que comandava. Sufocava minhas inquietações, meus descontentamentos, minhas apreensões, enquanto fazíamos as tarefas da nossa programação.
Tudo contribuía. Pra completar, os acampamentos eram organizados em barracos separados uns dos outros. Isso fazia com que eu outros dois, no máximo, dormíssemos longe da maioria do pessoal. Acontecia da turma descer para a cidade e eu dormir sozinho naquele barraco destacado. Era tenso. Todos os meus débitos me visitavam à noite. Eu ralhava com um por causa da amostra mal quarteada, chamava a atenção de outro pela precisão das medidas, pedia pra pegarem água na parte de cima do igarapé. Inúmeras vezes a onça vinha esturrar na beirada da minha rede. Quando a peleja era com onça, eu sempre gritava, me agitava e acordava. Nos primeiros dias meus parceiros até que tinham algum zelo comigo e com eles (escondiam facões, a espingarda de caça, as ferramentas agudas, com medo de serem tomados por onça faminta). Depois me largaram de mão com minhas conversas e sustos. Com o passar do tempo, fui acostumando com minhas realidades. Passei a externar mais meus sentimentos ao calor do dia, dei a botar pra fora meus débitos na hora e vez com a equipe. As medidas deram algum resultado. Continuei com os discursos durante o sono porque, tenho pra mim, não resolvi o medo da onça e nem destrancei o punho da rede.
O jeito foi mudar para a cama. Hoje falo pouco dormindo. O tanto daquele diálogo necessário para tratar com as carapanãs de plantão.

sábado, 18 de maio de 2019

crônica da semana- o amarelinho


O Amarelinho
Ferreirão era homem grande. Forte. Talhado nas precisões da vida. Trecheiro, houve um tempo que passou uma chuva no alojamento que eu morava em Rondônia, se justificando no ofício de cozinheiro.Um teba d’um macho. Andar duro, meio vergado pra frente por causa da robusta musculatura moldada já em um corpo maduro.
Cantador. Contador de história. Bem faroleiro, diga-se. Mentiroso de não tremer um fio do bigodão que ostentava (contava direto uma história em que ele morria no fim). Não era íntimo da escrita. Mas era poeta, compositor. Encarreirava bregas apaixonados sempre que se juntava à nossa turma da cervejinha nas pândegas dos fins de semana.
E nem era de beber muito, após uns poucos goles, era tomado pela emoção, recitava versos tristes sobre amores de cabaré, cantarolava canções que ele mesmo fazia e guardava na mente, falando de fortunas conquistadas em garimpos e pulverizadas nas armadilhas de paixões passageiras. Detalhava os mergulhos que fazia no rio Madeira, o controle que tinha sobre a respiração lá embaixo e afirmava que não conhecia barranco que resistisse em pé quando ele empunhava a maraca. Revelava o medo vindo das invejas e cobiças que cerravam vidas lá embaixo, quando a mangueira de ar de um perseguido era cortada e o corpo afogado era engolido pelos rebojos que se formavam nas cachoeiras do rio.
Em outras ocasiões, em conversas mais leves, insinuava uma passagem por Belém e rolezinhos pela cidade embarcado no ônibus da linha São Brás-Jurunas. E eu, ó, só vendo o baque dele. Reinando na patranhada.
Trouxe Ferreirão para esta crônica porque ele é uma boa lembrança de Rondônia, naquele início dos anos 80. E Também, porque agora que releio “Belém do Grão-Pará”, do escritor marajoara Dalcídio Jurandir, guardando-se as devidas distâncias etárias e amarelentas, reencontro Ferreirão em Antônio, personagem do Romance que se destaca por contar causos de assombros e estranhezas.
Nota-se na narrativa que Antônio, além das fantasias, tem sim uma vivência certa e atestada. É trecheiro. Conhece os ermos e os baixões, sabe das gentes, das fortunas, sabedorias, pajelanças e das conjurações que fervilham nas beiras de rio. E olha que quando aparece na história, ninguém malda. Desnutrido, exibe uma cor amarela de criança com paludismo ou panemice, é roubado da casa em que morava de favor e passa a conviver com Alfredo, personagem em torno do qual as histórias orbitam no Romance de Dalcídio. O custo foi roubarem o Amarelinho, pra ele se equivaler ao Ferreirão em farolice e extraordinárias invencionices.
Ferreirão descrevia as miragens que tinha, sob o efeito do Mariri, nas vezes que tomava o chá, pelos caminhos de mata fechada que percorria entre Pucallpa, no Peru, e Letícia, na Colômbia.
Mais tarde, usaria o chá de Mariri regendo a espiritualidade em ritual indígena que criei para um conto que escrevi e que ganhou  até engalanada premiação. Fico cá matutando agora e dando ganho a uma impressão que se arrasta há anos. Quando escrevi uma história fantasiosa, que ganhou até concurso, tive a pretensão de me equiparar ao Ferreirão. Ao Amarelinho. Descontando, convenientemente, seus naturais em bigodões e palidezes.

domingo, 12 de maio de 2019

crônica da semana- cabeça para baixo


De cabeça para baixo
Uma tarde dessas de tanto calor de a gente ficar com cara de pupunha, me larguei a abelhudar minha bregueçaiada. E nessa terapia mormacenta de mexe aqui, desembrulha ali, escacavia, vira, e torna a desvirar, encontrei um atlas daqueles antigos. Dei uma folheada. Deitei na cama e com os braços estendidos, equilibrei o livrão aberto nas páginas centrais. Certinho na parte que estava a imagem do mapa-múndi. Manobrei sobre a cabeça o fascículo que era parte de uma enciclopédia que mamãe tinha comprado e pago os olhos da cara por ela, quando eu ainda era ginasiano, numa escola lá detrás do Bosque. Como se fosse o guidon do carro, mantendo o equilíbrio, virei o mapa pra direita, pra esquerda, os continentes, os oceanos se deslocando. Enrolei tudo e o mundo ficou de cabeça pra baixo.
Larguei o atlas de lado, pulei da cama, caminhei até a janela e procurei o Norte. Nessa hora o tachi me pegou bem no baixo ventre e ficou, aquela dor me doendo enquanto me via também com a outra dor da dúvida.
As voltas que dei no mundo, subindo, descendo, pra lá e pra cá ativaram em mim a cuíra. Desconfiar das representações é o caminho para confirmar regras, consagrar verdades, desmascarar mentiras, deixar de ser arrogante e deixar também, de ser besta.
Nem desconfiei do Norte enquanto uma manifestação da natureza. Enquanto um componente polar de um sistema magnético. E nem do fato dele ser um lugar definido. Um ponto coordenado geograficamente. O que me levou à suspeita, foi esta representação do Norte ser na parte de cima do mapa. Desta soberba espacial, cismei.
Quando enrolei todo o volante do meu atlas e pus o mapa-múndi de cabeça para baixo, validei o aprendizado que guardei do filme “2001: uma odisséia no espaço”. Não há uma condição, uma posição real que possamos assumir ser considerada como de cabeça para cima, de cabeça para baixo ou para os lados. Tudo é uma representação e uma defesa de interesses.
O filme tem uma cena em que uma tripulante caminha pela nave. Em determinado momento surge uma parede na frente dela e ela sem o menor esforço ajusta o passo e continua a caminhar sobre a superfície da parede. Pra gente que assistia parecia que ela estava de lado. Mais a frente, outra parede e um pequeno corredor. Novamente ela ajeita a passada. Do ângulo da filmagem, parecia que ela caminhava de cabeça para baixo. À saída do corredor, o plano de filmagem é modificado e a moça parece estar andando normal de cabeça pra cima de novo (lembrem que ela entra no corredor de cabeça pra baixo). O recado para mim, da sequência, é aquele já aviado e exposto. A posição no espaço estabelece a importância da cena. As inspirações que provocam as imagens são ditadas pelo ponto de vista de quem produz a representação.
O Norte poderia muito bem ser representado na parte de baixo do mapa-múndi. Mas isso traria os Estados Unidos, a Rússia e toda a Europa para o pé da página. Enquanto levaria ao topo a África, a América do sul e mais à cimeira e à esquerda, a Nova Zelândia.
Voltei a equilibrar o atlas, na cama, com os braços esticados sobre a cabeça. E o explorei todinho virado ao contrário.
Fazia um malabarismo danado em manobras para virar as páginas, coçar a ferrada de tachi e entender de outro jeito as figuras, as dores da dúvida. E naquele calor de correr doido.

sábado, 4 de maio de 2019

crônica da semana - Déia


Luz própria
Vez ou outra, nos encontrávamos no ônibus. Ela vindo do Paes de Carvalho, eu, da Escola Técnica.
Tínhamos uma relação ainda pautada em formalismos. Quando vagava o ônibus, lá pela fábrica da Gelar, trocávamos algumas palavras, combinávamos reuniões, uma ou outra atividade do nosso grupo. Aquelas agendas essenciais para mudar o mundo. Déia chegava ao movimento jovem que tínhamos na Escola Salesiana. Eu já estava há mais tempo e mal sabia que, naquele apertado do Sacramenta-Humaitá, em breves diálogos, oportunos e operacionais, iniciava a amizade com um dos espíritos mais iluminados que conheci. E que estaríamos, dali para frente, lado a lado apostando nas alternativas possíveis para criar um mundo mais solidário e justo.
A Caminhada se deu em conteúdos e formas. Já perfeitamente integrada ao movimento jovem, Déia influenciou, contribuiu. Com desapego e uma ilimitada alegria. Tinha uma energia que nos inspirava a paz e a liberdade. Rompia as mais invioláveis travas. Lembro que dos carnavais que passei, o mais divertido nem foi aquele de notações mundanas. Foi justamente um retiro do nosso grupo de jovens, em que formamos um par sem par na folia e na animação. Com todo respeito, fantasiamos o Padre Lourenço de Chacrinha, logo ele que era inabalável na postura e na discrição. Generoso que só ele, aceitou a brincadeira e volteamos com o padre, todo sem jeito, pelo salão, umas quantas vezes, ao som das marchinhas orquestradas. Déia operava milagres.
Daquela garota de olhos de mar, intensos e decididos; de diálogos objetivos e práticos e, por outro lado, daquela mocinha destemida que fantasiou um dos religiosos mais respeitados do Pará de Chacrinha e o tornou humildemente humano como todos nós, brotou a doutora, a militante, a cuidadora da casa, a professora, a coordenadora de projetos culturais robustos. A mãe. A artista multifacetada. A amiga que nos alerta sempre que não estamos sozinhos na lida. Mudar o mundo não é fácil.
Conheci Déia Palheta, nas caminhadas da vida, a tenho como iluminada. Mas esta não é a absoluta definição. Orivaldo Fonseca, também membro do nosso grupo salesiano, daqueles tempos, por ser vizinho de porta de Déia, nos meandros da passagem Maria Auxiliadora, nos revela que ela desde a tenra infância, já demonstrava ter luz própria. Não era iluminada. Iluminava. E na semana do aniversário de Déia, a ela, dedica estes versos.
ESTRELA
À noite apareces estranha e cintilas, E minhas pupilas, coitadas, São fadas tentando te achar. Mas, obscureces teu brilho ao me ver; E como entender? Se tuas pontas de brilho me podem tocar. Estrela de estrelas, Jogaste outras delas no meio do mar, Julgaste a teu modo o que viste; Rainha, cobriste as súditas tuas. Mas, o que fazer? Se és estrela da lua, Ofertas a ela clareza E brilhas e imperas Nas noites; pudera, te fazes valer. E ocultas as outras com tua grandeza. Tuas pontas, estrela, Eu vi se lançarem do ar, Eu sei que só vê-las não basta, Eu sei da luz vasta que jogas no mar... O escuro que cortas importa a outros tantos; Recorda as estrelas acesas outrora Que, embora sabendo cobriste-as, fazendo com tua grandeza. Meus prantos no entanto, Não correm pra luz revelar, Mas quando me vires, não vires as costas - Que importa é o agora – Vem tu, também chora; Que os prantos, de tantos, Se fazem secar.