sábado, 25 de abril de 2015

crônica da semana -vigília

Vigília, vigilância e o pé de alface
A mamãe sempre me ralhava por causa dessa minha lerdeza em reparar as coisas. Às vezes ela me deixava ‘tomando de conta’ de umas sacolas, uns embrulhos, uns tereréns do cumê ou do uso recém comprados, enquanto voltava ao mercadinho pra pegar um isso, um aquilo da feira da semana que ela havia esquecido e...plut, um esperto puxava da minha mão o embrulho, eu me distraía e um sacrista me subtraía um pé de alface que se mostrava além da beira da sacola, ou ainda, não levavam nada e eu simplesmente abandonava o posto atraído por uma tentaçãozinha de menino mesmo. Só não apanhava porque mamãe não era de bater, mas que ela reinava, ah, reinava.
A guarda, anos depois eu descobri, exige da gente mais que atenção. Exige malícia, conhecimento do entorno, visão apurada e interpretação dos movimentos alhures. O cuidado com bens, entes e tereréns requer intuição, percepção de surpresas e a certeza de que o improvável é sempre possível. Então, eu moleque, nem era tão pateta assim. O mundo é que é ágil, ardiloso.
No início dos anos oitenta, militava na Igreja e me envolvi nas mobilizações de apoio aos padres franceses presos por causa de conflitos de terra no Araguaia.
Aristides Camio e François Gouriou estavam presos em um prédio da polícia federal que ficava ali no centro, acho que na Manoel Barata (ou 13 de Maio?). Acusados de incitar a violência e a invasão de terras, com base na Lei de Segurança Nacional, poderiam ser condenados e até expulsos do Brasil. Houve um período de muita tensão, inclusive com uma manifestação fortíssima em favor dos padres ocorrendo no seio da procissão do Círio. A sociedade envolvida e próxima dificultava a ação do governo em dar prosseguimento aos ritos contra os padres. A estratégia era transferir os acusados para Brasília com o objetivo de tirar a visibilidade dos movimentos sociais do caso. Estando longe, as mobilizações seriam mais atrasadas, operacionalmente mais difíceis. Sabendo dessa artimanha, vários grupos envolvidos no apoio aos padres resolveram montar uma vigilância diuturna em frente à polícia federal tentando, dessa forma, intensificar a pressão, impedir a transferência dos padres e ganhar tempo para a elaboração da defesa.
Havia um edifício do outro lado da rua com uma escadaria tomando toda a fachada. Era lá o nosso QG. Fazíamos revezamento o tempo todo. Não arredávamos o pé de lá. Pra vencer o cansaço, na vigília, cantávamos, rezávamos, entabulávamos discussões políticas, filosóficas, de Remo e Paysandu, das festas populares também falávamos.
E foi exatamente no meu plantão da noite, que levaram os padres. Não falei que o mundo exige da gente? Não tirávamos o olho do prédio da polícia, não descolávamos de lá a atenção, mas um aparato extremamente malicioso foi montado pela equipe da PF e nos mundiou naquela noite. No dia seguinte, só soubemos da notícia: os padres já estavam em Brasília. Para mim, foi como se, eu menino lerdo, um sacrista tivesse me subtraído um pé de alface da sacola. Mas reinei, olha que  reinei.


sábado, 18 de abril de 2015

crônica da semana - fora da raia

Fora da raia
Uma vez eu fui atropelado. Essa é a história que está fora da raia.
A que está dentro:
Foi no dia que eu passei no vestibular pela primeira vez. Já estava na casa dos trinta, dez anos trabalhando por esses matos. Dei um tempo (forçado) em Belém (passei uns meses desempregado) e me dispus encarar a Universidade. Uma eternidade sem estudar me fez dar uma volta nas minhas intenções. No ramo da Mineração, meu caminho mais lógico ia varar no curso de Geologia. Mas desisti. Naquele tempo, o vestibular era segmentado em áreas específicas: CE, CH e CB. Geologia estava no bolo de CE, aí já viu. Me pelava de medo das específicas de Matemática, Física, Química. Por afinidade, me bandeei para a Geografia, que estava lotada na área de CH. Relembrei a montagem de uma regra de três simples, decorei as relações desarmônicas dos seres vivos, a valência do Alumínio, encarei a prova de Conhecimentos Gerais e a minha nota ficou ali, na média. Fui para a segunda fase e nas específicas de CH, mandei bem. Li “A História da Riqueza do Homem” que era uma leitura bem afinada com a modalidade de vestibular da época e passei os olhos sobre um encarte recém-lançado do Vicentini que anunciava uma Nova Ordem Mundial. Foi batata. Duas leituras fundamentais para eu passar entre os 40 calouros de Geografia no ano da Graça de 1993.
E aí, parari, parará, voltemos aos causos não contados. Fui atropelado. Estava patetando, desempregado pela cidade quando saiu o resultado do vestibular. Ao chegar em casa, familiares e amigos me receberam com uma ovada no cocuruto e um banho de Maizena. Repliquei, resisti. Não achava que o fato merecesse aquele tipo de comemoração, afinal, eu já era um senhorzinho de trinta anos e esse negócio de trote era coisa pros meninos novos. Aceitei a zona toda e um banho de urucum, considerando os argumentos de minha amiga Eliza Sena que, formada em Psicologia, com muita luta, sustentou que passar no vestibular é sempre uma vitória. Em qualquer fase da vida. Foi a conta. É mesmo, admiti. E me dei o direito à pândega. E tome gelada! E raspa cabeça. E chega gente. Foi pai d’égua.
Mas o pobre, a gente sabe, é sujeito adverso. Tá alegre, tá. Ocorre que sempre há um contratempo, uma adversidade. As coisas na vida do pobre são um custo enorme para serem plenas. Fui atropelado.

Saímos de carro, visitando amigos. Na volta, resolvemos passar na casa do meu padrinho Altair Rocha de Oliveira. Paramos o carro, atravessei a rua. Na Marquês, asfaltada recentemente, o fluxo mais constante de carro ainda era uma novidade. Não estávamos acostumados, nem nos cuidados, nem nas obrigações. Depois dos cumprimentos, das felicitações e da bença do meu padrinho, quando pus o pé na pista para atravessar de volta, um carro na contramão me suspendeu. Caí de costa, todo escambimbado. Ainda no chão, vi o motorista se aproximar, chegou pertinho de mim, pegou o retrovisor que havia quebrado com o choque e foi embora. No dia de muita festa, rolou a preocupação, uns arranhões, e a história, fora da raia, de um retrovisor.

sábado, 11 de abril de 2015

crônica da semana - 44 papo amarelo

44 do Papo amarelo
Logo ao entrar na primeira rua de seringa, deu com um trançado de palha obstruindo o caminho. Sacou o terçado e em duas ou três planadas destruiu o obstáculo. Desconfiado, naquele dia, cumpriu apenas a metade da tarefa. Voltou para o barraco mais cedo. Arrumou as pelas defumadas no fundo da canoa. Contou os víveres, desfez-se da carne de caça e do resto de querosene. Recolheu os sacos de aniagem que estavam espalhados pela pequena praia que o Iriri formava entre o pedral e arrumou neles os pertences da mulher e dos meninos. Lustrou a pá dos remos com óleo de uma árvore pródiga para aliviar o atrito e dar-lhes ligeireza na água.
Na manhã seguinte foi recolher as tigelas que faltavam para completar a cota da seiva. Não andou nem a metade do dia anterior. Assustou-se com um mutum pendurado no meio da picada, bem pertinho do barraco. Pescoço cortado e sangrando recente. Era o aviso.
Foi só tempo de chegar em casa, carregar as coisas, pôr a família na canoa e fugir.
A mulher e o filho mais velho tomaram conta dos remos, os dois menores sumiram no meio dos sacos de aniagem no fundo da canoa. Ele se posicionou à popa, engatilhou o 44 e começou a  atirar. Os índios disparavam as flechas, lançavam-se à água, atacavam com fúria. Não sabe quantos índios derrubou com o 44 de papo amarelo. Mas afirma que foram muitos.
Ouvi esta história do Seu Adalberto, ex gateiro e ex seringueiro do Xingu, quando ele foi cozinheiro da minha equipe de geologia, em Altamira.
Sempre me contava sobre os primeiros e difíceis tempos lá no alto do Xingu. O conflito era constante. Os seringueiros avançavam, os índios atacavam. Destruíam, matavam. Os seringueiros revidavam. Incendiavam, dizimavam aldeias inteiras (me contou casos de crueldade extrema em que crianças índias eram lançadas pelos pés e tinham o crânio esmagado contra o tronco das árvores. Por outro lado, contou também, ter visto seringueiros sendo partidos ao meio com uma bordunada de um índio forte. A violência era recíproca, vasta).
Os acampamentos que a gente montava para a pesquisa, pelo comum eram localizados no ermo. Lá pra dentro da mata. Não tinha luz, água encanada, geladeira. Era tudo no mínimo. O divertimento da equipe, ao final do dia era o baralho, o dominó, um cigarrinho. Eu, como não jogava, pegava meu candeeiro, um livrinho, procurava um jeito na rede e passava o tempo. Quando não, ia pra cozinha traçar um papo com Seu Adalberto. Era homem de muitas histórias. Das refregas com os índios, narrou o termo das coisas na ação do sertanista Chico Meirelles. Depois do contato, muitos seringueiros acabaram morando em aldeias, convivendo perto. O cozinheiro foi um deles. Adalberto derrubou muito índio. Adalberto virou índio.
Uma noite, superando o zunido dos mosquitos em volta do candeeiro. Adalberto lembrou o tempo que trabalhava para uma empresa da Vale que pesquisava ouro em Marabá. Certa vez, enquanto esperava a turma que havia descido para o igarapé pegar água, foi pego por uma patrulha do exército. Adalberto, homem de tantas histórias, foi enterrado vivo.


quarta-feira, 8 de abril de 2015

crônica remix - intermediário

O intermediário e a chuva das três
Por aqueles dias, eu fazia a 6ª série no Jarbas Passarinho, lá detrás do bosque. Estudava no intermediário. Um horário que ninguém gostava. O horário da fome.
Eu não tinha bronca nenhuma do horário. Dava pra chegar em casa na hora de acompanhar os eletrizantes episódios de ‘Perdidos no espaço’, de ‘Daniel Boone' e ainda sobrava tempo de formar a grade na pelada de travinha, pelas calçadas da Mauriti.
E não era horário da fome, não. A gente saía de casa, ao menos com um bico de pão, um Q-suco de groselha, um isso, um aquilo qualquer que a mãe ajeitava pra enganar o estômago. Depois, na hora da merenda (naquele tempo não se usava ainda o anglicismo ‘lanche’), a gente tinha um desconto. Sempre rolava alguma coisa substanciosa na escola, Um macarrão com picadinho, um caldinho de feijão com arroz, um macarrão com picadinho, um caldinho de feijão... Um macarrão...Depois, no portão, a gente comprava um chope da pura uvita e pronto, transformava aquela refeição num apreciável, verdadeiro e inquestionável almoço (lunch, para os britânicos).
O intermediário era um horário cercado de preconceitos imediatos, mas depois, com o tempo naquela batida bipartida entre a manhã e a tarde, a gente acostumava e percebia que, assim como os horários ditos nobres, tinha as suas vantagens e desvantagens.
Dentre as desvantagens, a hora da saída, era a que tinha mais realce. E nem era de todo um problema. Era um momento delicado mais neste período de início de ano, quando a batida da campa coincidia exatamente com os exuberantes, afortunados e certeiros pingos da chuva das três. Era batata. Quando a gente tava se aprumando pra zarpar, o pampeiro arriava.
Às vezes a chuva me pegava pelo meio do caminho. Aí, não tinha outra: ou eu procurava uma marquise (coisa bem difícil de achar naqueles idos da década de 70, na pedreira), ou encarava o toró. Não podia ficar preso, pela chuva. Tinha o Seriado de Aventura, né.
Numa dessas, dancei. E em alto estilo.
Nem bem tinha me adiantado na 25, a chuva veio. Mais que depressa, tirei a camisa. Com ela, fiz uma trouxinha pra abrigar meu material escolar. Tirei os sapatos e, com a trouxinha numa mão e os sapatos na outra, ganhei o mundo, às carreiras.
Quando eu estava na frente da Mesbla, percebi alguém em desabalada atrás de mim. Me parou e perguntou se eu não tinha perdido um livro assim, assim. Falou que tinha visto um menino apanhar do chão um livro na 25, depois da minha passagem por lá.
Larguei os sapatos por ali e dei uma olhada na minha trouxinha. Caramba, necas do meu livro de História! Voltei na mesma pisada. Nem dei que naquele momento, meu par de sapatos Vulcalite estava sendo levado pelas águas abundantes que reinavam em forte correnteza pelo traçado inclinado da Lomas.
Perdi meu livro e meus sapatos naquela chuva. Mamãe passou dias me ralhando por causa da minha lerdeza.
O livro, não comprei outro. Varei o ano emprestando aqui e ali. Complicado foi enganar a inspetora um bom tempo, indo de chinela pra aula. Tive que recorrer a uma boa, inofensiva e necessária mentira: todo dia amarrava uma tira no dedão do pé e lambuzava o curativo com uma aguada de urucum. Quando a madame (não se usava, na época, também, o detestável ‘tia’) me parava no portão e perguntava pelos sapatos, respondia com a cara mais sofrida que podia expressar, que tava com um golpe difícil de sarar e que não ficava bem ir pra escola com um lado de sandália e outro de sapato. Ficava assim, com um baque meio zambeta. Ela olhava pr’aquela marmota no meu dedão, se apiedava e abria caminho.

Por aqueles dias, eu continuei voltando pra casa na chuva, afinal, os inadiáveis compromissos da idade me aguardavam e também  porque, menino, a gente sabe, não tem jeito que dê jeito.

sábado, 4 de abril de 2015

Crônica da semana- pra donde

Pra donde, já, mano?
Uma contagem que me faz a maior latomia no cocuruto é esta dos dias da semana. Por que não se emendam os numerados: “...quinta, sexta, sétima e  oitava-feira”?
Caberia direitinho, né. Mas não. Colocaram um sábado e um domingo encerrando o estirão ordenado que me vinha até bem.
São as descontinuidades oportunas, as conveniências históricas, as vaidades e as presepadas do poder que desequilibram a contagem, e olha que Deus, no Gênesis, do alto da sua infinita bondade, deu a letra da sequência: “e no sétimo dia, descansou”. Eu, heim, pecado mortal esta desobediência.
Mas vá lá que seja. Tá feito. Caímos fora do paraíso e agora nos vemos pra dar jeitos nos dias.
Aonde então arrumar forças? As armadilhas são implacáveis. Tenho caído em algumas. Dia desses dei com um texto meu pautando a prova de um concurso aqui da cidade. Não me deram nem as horas, nem um “bom dia, vamos usar teu texto na nossa prova e coisa e lousa”.  Relevei. Fui ver as questões formuladas e procurar entender o que eu quis dizer naquela prosa. Percebi que esses elaboradores de provas são mesmo uns sacristas. Traçam as perguntas e, no lugar de explorar as construções mais elegantes que varam do nosso cocuruto, fuçam as armadilhas, os escorregões. Neste dito concurso, me pegaram na curva porque não separei com vírgula, uma locução adverbial em determinado momento do texto. Ora, faça-me  o favor! Estes caras acham que não sei disso. Pô, estudei com professora Cleide Nascimento no primeiro grau, com o Alfredinho, na Escola Técnica. Tenho aqui ao meu pegado, a novíssima gramática do Celso Cunha. Nos meios de discussão das coisas da linguística que me enxiro, sou taxado de gramatiqueiro enjoado, conservador, afetado. E até me considero mesmo bem chegado ao preciosismo, prezo essa história de escrever direitinho, mesmo que por linhas tortas.
São as descontinuidades oportunas... as presepadas do poder que desequilibram a contagem e olha que Deus deu a letra: “não errarás”!
Então tá, pequei, Senhor. Os concurseiros que fizeram a prova, tascaram um xis na resposta certa e eu passei como um literato iletrado nesta questão.
Cabe a explicação: quem escreve num veículo de linguagem rápida, sabe o entrave que as marcações, algumas vezes, representam. E aqui está um exemplo. Usei o aposto “algumas vezes”, que pela regra, vem entre vírgulas. Mas perceberam, né. O ritmo sofre um baque com esta marcação. Ocorre uma desaceleração na pegada. Pequei. Mas acho que pecava mais quando era um virguleiro ortodoxo. Me desapeguei do paraíso das vírgulas, ganhei o rumo feliz do pecado.
No frigir dos ovos, o  elaborador da prova me pegou na ratada, numa imprudência sintática que, por fim, nem dói.

Se quisesse me pegar de jeito, me detonar gramaticalmente, de vera, bastaria pegar um texto em que lanço mão dos advérbios “onde” ou “aonde”. É batata. Sempre erro. Mesmo com o Celso Cunha do lado, emprego sempre o advérbio errado para esta ou para outra situação. Pra esse erro, não cabe a desculpa de ritmo ou explicação de linguagem. Não sei pra donde vou mesmo. Pode tascar o xis.