Vigília,
vigilância e o pé de alface
A mamãe sempre
me ralhava por causa dessa minha lerdeza em reparar as coisas. Às vezes ela me
deixava ‘tomando de conta’ de umas sacolas, uns embrulhos, uns tereréns do cumê
ou do uso recém comprados, enquanto voltava ao mercadinho pra pegar um isso, um
aquilo da feira da semana que ela havia esquecido e...plut, um esperto puxava
da minha mão o embrulho, eu me distraía e um sacrista me subtraía um pé de
alface que se mostrava além da beira da sacola, ou ainda, não levavam nada e eu
simplesmente abandonava o posto atraído por uma tentaçãozinha de menino mesmo.
Só não apanhava porque mamãe não era de bater, mas que ela reinava, ah,
reinava.
A guarda, anos
depois eu descobri, exige da gente mais que atenção. Exige malícia, conhecimento
do entorno, visão apurada e interpretação dos movimentos alhures. O cuidado com
bens, entes e tereréns requer intuição, percepção de surpresas e a certeza de
que o improvável é sempre possível. Então, eu moleque, nem era tão pateta
assim. O mundo é que é ágil, ardiloso.
No início dos
anos oitenta, militava na Igreja e me envolvi nas mobilizações de apoio aos
padres franceses presos por causa de conflitos de terra no Araguaia.
Aristides Camio
e François Gouriou estavam presos em um prédio da polícia federal que ficava ali
no centro, acho que na Manoel Barata (ou 13 de Maio?). Acusados de incitar a
violência e a invasão de terras, com base na Lei de Segurança Nacional,
poderiam ser condenados e até expulsos do Brasil. Houve um período de muita tensão,
inclusive com uma manifestação fortíssima em favor dos padres ocorrendo no seio
da procissão do Círio. A sociedade envolvida e próxima dificultava a ação do
governo em dar prosseguimento aos ritos contra os padres. A estratégia era
transferir os acusados para Brasília com o objetivo de tirar a visibilidade dos
movimentos sociais do caso. Estando longe, as mobilizações seriam mais
atrasadas, operacionalmente mais difíceis. Sabendo dessa artimanha, vários
grupos envolvidos no apoio aos padres resolveram montar uma vigilância diuturna
em frente à polícia federal tentando, dessa forma, intensificar a pressão,
impedir a transferência dos padres e ganhar tempo para a elaboração da defesa.
Havia um
edifício do outro lado da rua com uma escadaria tomando toda a fachada. Era lá
o nosso QG. Fazíamos revezamento o tempo todo. Não arredávamos o pé de lá. Pra
vencer o cansaço, na vigília, cantávamos, rezávamos, entabulávamos discussões
políticas, filosóficas, de Remo e Paysandu, das festas populares também
falávamos.
E foi exatamente
no meu plantão da noite, que levaram os padres. Não falei que o mundo exige da
gente? Não tirávamos o olho do prédio da polícia, não descolávamos de lá a
atenção, mas um aparato extremamente malicioso foi montado pela equipe da PF e nos
mundiou naquela noite. No dia seguinte, só soubemos da notícia: os padres já
estavam em Brasília. Para mim, foi como se, eu menino lerdo, um sacrista
tivesse me subtraído um pé de alface da sacola. Mas reinei, olha que reinei.