Meu violão, meu amigo
As
cicatrizes são heranças, registros, dotes incontestes, ativadores de memórias,
de capacidades de resistir, de viver mais, superando dores. São traçados
marcantes, desenhos frutos da dor ou da crueldade dos tempos. Cicatrizes se
mostram no tecido das lembranças, na tez negra dos ancestrais, nos olhos de
quem vê, no coração de quem sente. Cicatrizes são multisons, multivozes,
muitimatérias. São recortes latentes de algum sofrimento. São remendos
recontadores de histórias.
Meu
violão, meu amigo, tem uma cicatriz.
O que
torna é que semana passada, seguindo a dita de que a gente oferece aquilo que
gostaria de ganhar, dei um violão de presente para minha nora, no dia do
aniversário dela. Ela gostou, porém confesso que a satisfação foi mais da minha
parte. Senti que fazia o bem presenteando com um companheiro da mais alta
valia, um amigo de todas as horas. O violão é parça de não se desapregar. Cuida
da gente. E a gente cuida dele...
Tenho
um Di Giorgio há nem sei quanto tempo. A lembrança mais remota que tenho dele é
que foi com ele que compus as leves canções de ninar para minha filha, logo que
ela nasceu. Só aí se contam 26 anos. Ainda que velhinho, ainda que exibindo as
cicatrizes, tem um som de responsa, e uma postura elegante. Esses dias, comprei
um suporte imponente pra ele e o acomodei num ponto de destaque na casa. Ele compõe o ambiente com aquela
elegância, aquela presença refinada digna de um Di Giorgio. Eu o trato com
carinho, respeito e uma gratidão sem fim, por me acompanhar, por me dar esta
oportunidade, de forma indulgente, em tantos anos reconhecendo meus limites, de
me aproximar dos prazeres que a música ativa na gente. Tivemos, porém, momentos
de extremada dor.
Certo
dia, cheguei em casa e me deparei com o tampo do meu violão totalmente
descolado. Um cenário desolador e distorcido que me apavorou e me desnorteou.
Meu violão, meu amigo, estava destruído!
Quem
nos salvou foi o Armando.
Na
época, meu companheiro fazia um curso de luthier. Viu meu sofrimento e sem
contar tempo, me socorreu.
Armando
era assim, na essência, o que reconheço como companheiro. Sempre agia para o
bem. Comunista bem mais preparado que eu, pois até hoje me sustento no valor
sintético do método “ver, julgar e agir”. Ele não. Era estudioso. Analítico. Dominava
as teorias, defendia e assumia os postulados que pregam uma sociedade livre e igualitária.
Militamos em nichos sindicais diferentes. Eu, na iniciativa privada, ele, no
serviço público. Armando chegou a presidir o Sinjep e a elaborar políticas
também no campo partidário. Mas foi no meio da arte, que nos aproximamos.
Armando
Soares era um ser de luz. E essa luz se irradiava. No meio sindical, na
família, nas batucadas da vida. Sempre composto em sua boina de crochê, em várias
ocasiões nos encontramos em saraus, nas intervenções populares de cultura em
praça pública, nos shows de artistas e poetas da terra. Nossa família também se
aproximou. Fizemos alguns encontros na Pirajá pautados na mais doce amizade de
nossa petizada.
Aí,
ele viu minha dor.
Pegou
meu violão todo estiolado, levou para a oficina que oferecia o curso de
luthier, organizou uma ‘junta médica’ e tratou meu violão, meu amigo. Não me
cobrou nada. Era comunista, companheiro, camarada. Trouxe meu violão recuperado
até mim, e quando o pôs nos meus braços, percebi nele, o ar de servidor que lhe
era peculiar, aquele aspecto límpido, aprazível, cheio de afeto e carinho de
quem se deleita em fazer o bem. E eu? Eu transbordando de felicidade e, ao
mesmo tempo, imensamente agradecido.
Meu
violão, meu amigo, tem uma cicatriz.
Encarou
poucas e boas. Sem pele, sem osso. Passou. Encontrou, no caminho das
desolações, Armando. Hoje dá nobreza à minha casa, à minha vida. Cicatrizes são
recortes latentes de algum sofrimento. São remendos recontadores de histórias.