sábado, 24 de dezembro de 2022

crônica da semana - Natal, bola e zaire

 E por falar nisso...Cadê o Zaire?

Procurei e não achei. É que o país mudou de nome e agora se chama República Democrática do Congo. Resulta que o antigo Zaire entra aqui na minha história de Natal por causa, ora, ora, em tempos de Copa do Mundo, por causa da bola.

Fosse eu hoje, pedir um presente de Natal, quereria, sem um par sequer de dúvidas, uma bola. Nenhuma brincadeira de rua, produção qualquer da Estrela, jogos estes ou aqueles, do ludo à dama dos tabuleiros na praça, me deram maior prazer, imensa satisfação, que uma bola. O futebol é minha alegria desde que tempo. E em detalhe: gosto mais de jogar do que ver jogos de bola, seja apreciando ao vivo ou pela televisão.

Era, no entanto, naquele jogo da copa, um molequinho esperto se metendo no meio de uma vuca de torcedores que se aglomerava na frente de uma loja na Pedro Miranda, para assistir ao jogo do Brasil contra o Zaire em 1974. Em cores.

Marcou, aquela minha parada na calçada para espiar. Uma porque o Zaire representava ali o primeiro país da região centro-africana a participar de uma copa no mundo. E outra, porque era numa TV colorida e naqueles tempos, remosos que só, TV à cores era coisa rara aqui na barra.

Na vila em que eu morava, na Mauriti, era só no preto e branco, numa ou noutra casa, ainda se esnobava com aquela peça de acrílico colorida montada sobre a tela, comprada de um homem que entrava na vila de vez em quando oferecendo aquela tentação para matizar o televisor. Quem não reunia numerário nem pra comprar do homem, inventava moda colando papel celofane na tela. E salteando as cores. Quando tinha jogo, sapecava um verde pra dizer que era a grama do campo. Em casa, sequer TV tínhamos. Nos batíamos de janela em janela na interação amiga da televizinha. TV em cores para assistir à copa naqueles tempos, era difícil. Só quem tinha era o pessoal que morava na pista. Li em uma página da internet que, depois de levar uma peia de 9 x 0 da Iugoslávia e um singelo 3 x 0 do Brasil, o time do Zaire foi ameaçado até de morte pelo governo autoritário do país. Voltaram vivos para a África, mas ainda, segundo a página, viveram o resto da vida, marcados, sem glória e na pobreza.

Pelo menos em mim, a pena era leve. A vida dura nos tirava o básico e qualquer satisfação mais elaborada. Mas a bola, no Natal, mamãe não deixava faltar. Depois de ter cometido o pecado de  me presentear, certa vez, com o ludo, mamãe dali pra frente não errou a pontaria. Era certeira na bola. E eu, ó, ficava era num pé e noutro de alegria. O objeto de desejo de todo moleque era ter uma bola Dente-de-leite. Custou. Antes, me diverti com a bola Pelé, com a bola Rivelino e outras não colunáveis que a um chute mais potente, variavam pacas. Uma outra categoria de bolas também enchia os olhos da molecada: os pneus. Eram bolas para além das travinhas nas calçadas e peladas na rua. Exigiam campos de verdade. Do Asas, Trabalhista... O mais procurado era o pneu nº5. Pelo valor, nem era contemplado como bem individual. Pneu se conseguia na coleta, com o patrocínio das mães fora de cogitação. A turma que quisesse ter um, tinha que vender muita garrafa, sucata de metais, fazer carretos...

Quando enfim, ganhei minha Dente-de-leite, tratei dela com muito carinho. Toda vez, lavava, enxugava, guardava debaixo da minha rede. Sonhava com ela. Durou mais do tanto comum, e já no finzinho, meio ovalada, ainda ganhou alguns remendos com faca quente. Sem mais ter o que dar, saiu da vida nos campinhos de caroço de açaí para entrar nesta história junto com o Zaire.

Daqui a pouco vou lá embaixo. Comprar o meu presente de Natal. Adivinhem o que será ...

 

sábado, 10 de dezembro de 2022

crônica da semana - copa arizona

 A copa das copas

Dizendo assim, hoje, é difícil acreditar que houve na história do desporto paraense, um torneio de futebol de considerável envergadura, que mobilizava penca de times de bairro, aqui de Belém (não sei se ocorria em outros lugares) e que era, ora mire e veja, era patrocinado por uma marca de cigarro.

A copa das copas foi a Copa Arizona, com certeza.

Um evento esportivo, alguém consegue imaginar, inspirador de corpos atléticos e saudáveis, bancado pelo inimigo número 1 do pulmão?

Pior que era. Um senhor evento. E que, a bem da boa prosa, contava com uns quantos atletas que, perfeitamente integrados à filosofia do patrocinador do torneio, não davam essa bola toda à ortodoxia do corpo são e mente sã.

Ao contrário do `Peladão, que tinha o Fuzuê, o Lá vai a bola... famoso também na época, que era descalço, jogava-se a Copa Arizona de chuteiras. Havia uma ordem na organização. Arbitragem contratada, todos os times uniformizados e com equipes técnicas e de apoio bem compostas. Os jogos se realizavam no gramado bem cuidado do campo da Escola de Educação Física. Era bem bacana a competição. Dava alegria e revelava talentos. A movimentação marcava o fim de semana. Aqui da Pedreira, eu lembro bem do Asas do Brasil nos representando em mais alto nível. Não tenho certeza, mas me parece que o Natal também fazia uma ferida nos confrontos. Os jogos se realizavam durante o dia todo, cobriam dois, três finais de semana com partidas disputadíssimas até chegar à grande final.

Eu e minha patota da Mauriti éramos fanchões na torcida. Enquanto tinha jogo, estávamos lá na arquibancada da Escola, que dá pros lados da Vileta. Folgávamos em pegar detalhes. Muitos dos jogadores da Pedreira, conhecíamos, jogávamos com eles nos segundos quadros da vida em treinos que antecediam o torneio, pelos campos do Asas, do Trabalhista, do Sacramenta. Tudo passado na casca do alho. Só nó cego. Eram boleiros dos melhores, mas avessos a disciplinas ou condutas espartanas em favor do sucesso. Ali pelos arredores do Areal, quando acabavam as partidas de preparação, era rápido que formavam os grupinhos para animados folguedos em mesas dos mais escondidos botecos da passagem do Arame, ou da baixa da Dr. Freitas. E tome um gole gelado, uma branquinha, o maço de Hilton no bolso e otras cositas más até altas horas da madruga. Minha turma como era menor de idade e mais da bandalha e da molecagem do que dos proibidos e desaconselháveis, peruava ao largo nas primeiras horas da noite, identificava os craques mais saidinhos e depois ganhava o rumo de casa porque a mãe marcava em cima. Deu dez horas...

O que conta é que no dia do jogo oficial lá na Escola de Educação Física, sabíamos o que as feras haviam aprontado pela baixada.

E nem era segredo. Lá mesmo, no calor da hora, pleno jogo correndo solto, numa batida de lateral ou no intervalo do primeiro para o segundo tempo, flagramos mina de vezes, nossos ídolos, chegando às bolsas capangas, apanhando de lá o maço de Hilton, Arizona ou um Gaivota, que seja, e saindo relaxado à beira do gramado, ao prazer da boa tragada. Quando não, dando goles clandestinos em água que passarinho não bebe. De volta ao jogo davam show, desarrumavam as táticas das onzenas adversárias mais afinadas.

O comercial do cigarro, que tinha cenário de um deserto avermelhado, cavalos porrudos e caubóis com cara de pupunha dizia que os homens se encontravam no Arizona. Minha patota se encontrava todo fim de semana, na arquibancada da Escola de Educação Física, enquanto durasse a copa das copas. A gente não tinha cavalo. Se batia da Pedreira para os longes do Marco era tirando no pé mesmo.

sábado, 3 de dezembro de 2022

crônica da semana - hits da copa

 Os hits da copa e dos boleiros

O meu pandeiro rebate no gol/E na defesa bate o tamborim...

Estes versos são do amazonense Chico da Silva, o mesmo compositor que criou o hit parintinense “vermelho, vermelhusco, vermelhão”. Cantei e toquei dentro dos meus limites de afinação e harmonia. Publiquei na minha time line e os amigos mais aqueles de indulgentes, até curtiram. Quis fazer uma presença no calor do momento-futebol-total-de-copa, que vivemos. Mas publiquei também porque gosto pacas da arte do Chico da Silva. Ele me torna o tempo. “Esquadrão do samba” foi gravado em 1978, época em que eu era caixeiro da taberna Santo Onofre, na Marquês, ali ao pegado da antiga recapagem de pneus. Ouvíamos o samba no radinho que o dono da taberna sintonizava toda manhã no ‘Mais mais’ da AM preferida dele. A composição tem a peculiaridade de estabelecer relação entre o samba e um time de futebol, atribuindo aos instrumentos, funções e posições que jogadores assumem em campo.

Há vagas, por agora, para retomar músicas que trazem como tema o futebol. Mesmo porque, este ano, tá vasqueiro. Eu da minha parte não conheço nenhuma marchinha ou um bambambam famoso que tenha gravado uma música para este torneio do Catar.

Como não sou de pedra concreta e impenetrável, não posso fazer que não vejo o fut rolar todo dia na TV. Dou ibope. Conta na conta, que sou boleiro e tenho na sacolinha sentimental de guardados, a minha melhor copa do mundo, aquela que marcou.

Inclusive pela prodigalidade da trilha sonora, foi a de 1982.

Teve clássico do Moraes Moreira filosofando sobre o balanceio do filó e o calcanhar de Sócrates; Júnior, discreto, viu e cantou o Canarinho verde; Luiz Ayrão cravou no ‘dá-lhe dá-lhe bola’ um refrão gramaticalmente ousado. E tantos craques... o Telê. O melhor time que já vi.

Por aqueles dias, calhou de rolar também, a colônia de férias da Escola Salesiana. Era um convênio que o padre fazia com a LBA, antigo órgão assistencial do governo e que de vez em quando, despejava uma graninha na periferia, com iniciativas limitadas. No caso aquele, férias da molecada. Para nós que orbitávamos as esferas de confiança do padre, era a chance de atuar numa função educadora e ao mesmo tempo, fechar uma remuneração.

Naquela ocasião, montamos um quadro de responsa. Especialistas em várias modalidades de esportes, instrutores de arte, músicos e atores já consagrados contribuíram com a proposta do padre de trazer um lazer mais qualificado para a Sacramenta. Foi incrível! Eu, como conhecia o espaço, ajudei na disponibilidade de estruturas da Escola. Dentre elas, o estúdio da rádio cipó. Coordenei a programação durante toda a jornada, dando informes e comandos para o dia e, na torcida pelo nosso escrete canarinho, subverti a vocação funcional da rádio com intervenções que traziam a garotada à participação. Realizava competições de calouros exatamente usando as músicas que falavam da copa. O prêmio era uma entrada adicional na fila do pão doce com caldo de cana, na cantina.

Originalmente, não era lotado no estúdio. Como eu fazia Voleibol na ETFPA, tinha as manhas e as teorias, iniciei a colônia em quadra. Ocorre que tínhamos uma combina, os instrutores, de todo dia, ainda no escuro da madrugada, traçarmos um fut-moleque-doido, antes da chegada das crianças. Na primeira dessas partidas, recebi uma entrada que rebolei lá adiante. Na queda pisei em falso e torci o tornozelo que nem o Polêmico Neymar.

No mesmo dia, mandei uma benzedeira puxar. Depois, o padre achou por bem me tirar da quadra e me aproveitar na rádio. Melhor. Todo dia punha a vitrola pra tocar o samba do Chico da Silva e os hits da copa.

 

sábado, 26 de novembro de 2022

crônica da semana - velocidade mínima

 Velocidade mínima

Por esses dias tive uma experiência incrível. Ocorreu-me um choque causado por uma passagem acidentada, uma precipitada translação de um livro que eu estava lendo para, imediatamente, outro.

Lia “Flor de Gume” da escritora paraense Monique Malcher, e ao chegar à última página, tentei iniciar logo ao pegado, um outro livro que levava na mochila, porque livro é companhia certa na minha viagem diária para o batalho, na travessia da baía do Guajará.

Ledo e límpido engano. Não se desliga de uma leitura de Monique Malcher e se adianta em outro tipo de narrativa assim, no instantâneo, no mais que depressa bate-pronto. Há de se respirar, suspirar. Organizar o íntimo, metabolizar as revelações, enquadrar as dores e aos poucos ir-se desopilando o espírito. Para certas reviravoltas literárias, a velocidade deve ser mínima.

Ainda mais quando as narrativas são distantes na forma e no conteúdo. O livro de Monique Malcher realiza-se em uma sequência, do que considero ser, contos extremamente profundos, com temáticas dramáticas. Explora fissuras na alma, no tecido social, expõe intimidades tapadas, no cotidiano, pela hipocrisia e pelo preconceito. Não sou crítico literário, nem nada, mas senti um acutilado toque contextual quando fechei o livro de Monique e, de prima, abri um tijolaço escrito pelo jornalista Osvaldo Bertolino. Obviamente, fechei na hora o tijolaço de 600 páginas. Em tempo, percebi a incoerência no clima e na consternação. Adiei para outro dia a leitura do livro novo, e naquela horinha atravessando a baía, me impus a meditação. Fechei os olhos e digeri as mensagens de ‘Flor de Gume’ em reflexões e mea culpa.

A velocidade mínima, devo admitir, é uma prática que devo garantir na minha rotina de leitor. A bem da verdade, não é de bom termo, ler um livro às carreiras, ainda mais aqueles que exigem, nos convidam a uma evolução mais cadenciada, às vezes pela severidade do tema, outras pelas belezuras das contruções textuais. Em outras ocasiões até presto reparo e reduzo a velocidade, no automático. Machado de Assis, com aquele delineado delicioso na escrita, pela estética, sempre me prende, me fecha o sinal. ‘Cem Anos de Solidão’, então, por causa da sucessão de personagens, a cada reedição de leitura, me faz voltar páginas e páginas até encontrar o Aureliano certo.

Reconheço que nos últimos tempos, tenho me quedado à ânsia e ao desregramento. Até a Monique, estava lendo aos emboléus, no varejo. Não estava me entregando aos aprendizados de uma boa leitura. Entretanto, sempre é tempo de, como diriam os narradores de futebol das antigas, nas transmissões pelo rádio, sempre é tempo de retroceder. Aprender e entender a pegada de cada autor ou autora.

Agora, lendo o tijolaço, estou fazendo este exercício. É a biografia de Maurício Grabois. Sou um apreciador de biografias. É o tipo de narrativa que nos conta sobre um personagem principal, mas também informa muito sobre o contexto histórico, o universo político, sentimental, social que rege aquela trajetória.

Mente reordenada, estou , providencialmente, me adestrando à história de Maurício Grabois. Não conhecia muito da sua caminhada. Sabia da militância e também da influência dele e de João Amazonas na estrutura do PC do B. Cheguei na parte do livro tijolaço, em que o autor fala da Assembléia Constituinte de 1946, em que Grabois e mais alguns comunistas (famosos como Jorge Amado e Prestes) se articulavam contra as investidas ferozes dos remanescentes do Estado Novo. Qualquer semelhança com os dias de hoje...

Creio que voltamos páginas e páginas na História atrás de um Aureliano.

sábado, 19 de novembro de 2022

crônica da semana - quem sabe isso quer dizer amor

 Quem sabe...

A hora é aquela de tardinha, quando o sol se põe e o mundo entra num estado de luz que a gente não define bem se ainda é dia, ou se já é noite. O que se percebe é uma inquietação no quieto do momento. Vento tinindo de arreliado chegando à janela e invadindo a casa na maior e muito bem vinda sem-cerimonice. Um arranjo de cores pintando o horizonte em pinceladas arrojadas, cheias de contrates, inclusive com o escuro próximo da noite. Um céu doce-acre, leve-denso, frio-cálido. Intenso e sereno. Aqui, acolá, um relampejo.

Penso que este contorno do final da tarde tenha definido versos. Haja tencionado e inspirado. Quem sabe isso quer dizer amor...

A imensidão do tempo, das cores, do fervor climático, do humor dos mortais em poucos minutos. O tanto de um clarão no infinito ou de uma matiz indefinida na conjugação de cores. É um isso de ilusão, um nada de fantasia, um trisca de genialidade pra este encanto todo virar música.

É desse jeitinho que defino a fertilidade musical de Milton Nascimento: baseado na canção “Quem sabe isso quer dizer amor”. Poderia vir de outras músicas a minha submissão benfazeja de espírito. São inúmeras e cada uma mais cintilante que a outra. Tenho, é certo, um chamego com esta. Quem sabe... porque fez a trilha de todos os saraus de realizamos lá na Pirajá, ou até porque me acalentou na batente da casa em que eu morava lá na Vila dos Cabanos, em noite família, quando eu acompanhado do violão cantava para as crianças, na época que elas eram bem pequenininhas e brincavam no terreiro numa tardinha assim, colorida. É a canção, alerto a turma aqui em casa, pela qual eu gostaria de ser lembrado porque me transporta para dentro de muitos corações. Eita. Alerta de cisco no olho!

Um coração bem distante no tempo, em especial...

A época era aquela da repressão ainda aprontando. Tínhamos nossos grupos de resistência. Os valorosos movimentos de jovens ligados à Igreja. Nesse tempo, conheci muitas histórias, vivi outras, tracei caminhos, conheci Leila Paixão e por ela, Milton Nascimento.

Leila era diferente da maioria de nós. Tinha uma percepção apurada, reconhecia já naqueles momentos, chagas doloridas ligadas ao racismo, à afirmação feminina, aos fossos sociais. Interpretava, tomava juízo, agia. Nos tornamos amigos de nos visitar nas casas. Eu era muito fã. Admirava o poder intelectual que ela demonstrava, e que me inspirava. Numa dessas visitas, naquela hora estratégica do lanchinho (eu sempre chegava na hora de um cumê providencial), ela pôs na vitrola o mais novo lançamento do Milton. Aquele disco arrasador que trazia “Caçador de mim” num arranjo fenomenal. Foi um choque.

Confesso que ouvir aquelas canções naquela época, me pirou o cabeção de acreaninho de terras ermas dos seringais. Me impôs uma lixiviação nos conceitos, uma renovação na estética, na apreciação e na compreensão das composições. E um compositor negro! Um cara igual a mim! Estabeleceu-se ali, uma relação musical companheira. Para mim, foi um reinventar de espírito na minha caminhada e na minha auto-estima.

No domingo passado, querida Leila, o Miton fez o último show ao vivo, de palco, da carreira (e aqui em casa foram tantas as lágrimas, vendo o Bituca pela TV!). Já está com oitenta anos. O tempo agiu sobre fisiologias frágeis. E ele, sabiamente se permite preservar-se. Sai dos palcos, mas não sai da música, da minha história e deste céu de fim de tarde que eu não sei ser dia ou noite. Quem sabe? 

O que torna e o que deixa é que isso, certamente, quer dizer amor.

 

sábado, 12 de novembro de 2022

crônica da semana - o patrono

 O Patrono

Agora, no final de outubro, a Academia Barcarenense de Letras realizou a primeira Assembléia Ordinária da entidade. Constou da pauta a cerimônia em que cada membro escolheu o seu patrono. Na hora me veio uma paz, uma leveza de perpetrar o ato com o carimbo de um eficaz recado. Escolhi Rufino Almeida como o patrono da minha cadeira. Foi a maneira de dizer para Barcarena, para a família do Rufino, para os companheiros de prosa e verso e para o Rufino que vive em nossas memórias afetivas e literárias que ele não passou por essa beira de rio em vão.

Sobre meu patrono.

Rufino Almeida foi um homem da ação. Absoluto e prático.

Ativista. Defensor das condutas urbanas (lutou em campo minado contra o hábito de fumar nos ônibus e ambientes fechados). Atleta empedernido (além dos 70 anos de idade, competia em todas as campanhas esportivas locais, nacionais e em várias modalidades). Fotógrafo dos grandes eventos culturais (boas lembranças os escritores paraenses têm registradas, por ele, das primeiras Feiras do Livro, no Centur). Escritor em várias frentes e vezes. Contista, cronista, poeta, crítico, trovador.

Inspirador do companheirismo, formador e disseminador do espírito coletivo, foi membro entusiasta, ao lado de estrelas como Ruy Barata, da Associação Paraense de Escritores. Pertenceu junto com o poeta Antonio Juracy Siqueira à União Brasileira de Trovadores Seção Belém e também na UBT, assumiu a função de vice-presidente de administração. Era um sonhador este barcarenense. Empregava desmedida fé na união dos escritores.

Revisitando a obra “Quaterno”, que ele classifica no predicado do título, como sendo de “crônicas, contos, cartas e discursos”, localizo os vários nichos estilísticos de Rufino e ainda me certifico do caráter de pleno cidadão que o envolve, como ilustra o jornalista Lúcio Flávio Pinto, na orelha do livro: “Rufino é um homem que lê, ouve e informa, empenhado em projetar-se em sonhos e utopias. Até por força de suas práticas esportivas e da luta pelo pão de cada dia, circula intensamente pela cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará e seus arredores, como a Barcarena, do seu nascimento”.

As circunstâncias, a construção de uma articulação mínima entre escritores nos permitiram encontros freqüentes na “Banca dos Escritores Paraenses”, espaço coordenado pelo escritor Cláudio Cardoso, na Praça da República, nos últimos tempos. Desses encontros, resgato “Poemas Nus”, edição de 2011. Tenho o livro de poemas autografado na página de rosto, e, donde, mais adiante, em nota, o autor reproduz um texto que o acompanha desde a primeira publicação, em 1984. Nele, uma narrativa quase em código.  Um recado: “a pretensão de ser um dia reconhecido, ainda que na posteridade, requer a prática de um insistente exercício de paciência e resignação ante à indiferença dos que vêem a literatura e, especificamente, a poesia, como um gênero menor. Embora a busca do sucesso seja o principal objetivo de todos os que se lançam em qualquer segmento das artes em geral, confesso que meu principal objetivo é dividir solidariamente com os leitores, minhas emoções experimentadas, ao longo da vida”.

Nascido em Barcarena, Rufino Almeida viveu 30 anos no Rio de janeiro. De volta ao Pará, nos contou sonhos.

As palavras de Rufino nos indicam o caminho.

Em trinta anos de literatura publicou, entre outras obras...

Quatro caminhos; Poesia Nua e Crua; Poemas Nus; Quaterno; Sincrônicas; E os infantis, A menina que soltava passarinhos e O sapinho guloso

Não passou por essa beira de rio em vão.

 

 

sábado, 5 de novembro de 2022

crônica da semana - a dança da rua

 A dança da rua

Dante Gatô criou, elaborou o tempo, a marcação, os movimentos poucos e plenos. Seleciona os brincantes, ensaia por noites e noites, e quando dá o momento, faz uma apresentação no passeio central da Pedro Miranda.

Olhando de cima a gente identifica uma ordem. Silenciosa em azul, rosa, vermelho; percebemos traçados na calçada, riscados no espaço, debaixo do céu claro. A dança é de dia e bebe o ritmo do sol.

Dante Gatô criou

Veio da França, logo depois da Copa de 1998. Desembarcou em Belém, evaporou o passado, de tanto calor; tomou açaí, comeu da farinha baguda, e se aninhou na Pedreira. Tinha uma sonoridade e uma cadência na cabeça que talvez guardasse uma origem nas celebrações celtas, mitificadas, misteriosas e proibidas. Recebeu a herança de aldeões bárbaros das Ardenas, de mulheres poderosas das florestas e dos druidas de barbas gris e longas. Nos trouxe a idealização de um proscrito caldeirão celta, temperado com ingredientes subversivos, ervas revolucionárias e vapores revoltosos da fervura.

O mais extraordinário é que não tem música cantada ou tocada na apresentação. Apenas uma marcação extraída do próprio movimento dos dançarinos. Um tum tum cadenciado que habita o íntimo de cada um. Altivo e elegante. Cada qual com seu par. Um passo à frente, trocam sorrisos e gentilezas, fazem a ginga e se tocam. Girou! Aos seus lugares. Tum tum.

Lá de cima a harmonização do universo em chapéus com fitas rosas e boinas vermelhas com raminhos na borda. Alvos e bem cortados paletós diante de saias rodadas. Evolução simples, educada, num ritmo mágico, pleno, de singular candura. Instigante. Sensual. Bem tramado no espírito, no mais escondido da alma. Girooou!

Dante Gatô criou.

Não conheci Dante Gatô de palmo em cima. Ele nem é deste plano físico. Ele e a história dele existem apenas no sonho. Acordei num dia desses graves de outubro com este nome, a dança se realizando, e essa região da Pedreira, entre a Escola Salesiana e a Dr. Freitas fazendo o cenário. Como era um sonho, vi tudo de cima. Ao acordar, havia a estrutura de um poema com o andamento inspirado na dança de rua. Logo pensei no meu compadre Edir Gaya. Imaginei como ele ficaria feliz com uma forma diferente, uma construção poética além do que se dá no meu comum. Os versos se movendo. E se animaria: “ulha, manda pra mim”. Na mesma pegada, pensei numa prosa que simbolizasse a leveza, o fluir da alma, a liberdade conquistada. Um espetáculo visto de cima, como se nos estivéssemos livrado de um peso de quatro, cinco anos de chumbo quente sobre nossos sonhos e...flutuássemos.

A dança de rua se dá com os personagens dispostos nas margens do canteiro da Pedro Miranda, local, no dia-a-dia, usado pra tudo em quanto que não signifique arte. Formam duas fileiras que assim, de cima, assemelham-se a gigantes sucuris coloridas. Aos serpenteios, as fileiras se tocam ponto a ponto, em contatos de puro prazer e amor.

Cada qual com seu par. Uma passo à frente, trocam sorrisos e gentilezas, fazem a ginga e se tocam. Girou! Aos seus lugares. Tum Tum no coração. Leveza no espírito e generosa entrega.

É extraordinário este fato da gente acordar e ter uma história, um fato, um cenário, um personagem, surgidos do vazio noturno. Rapidola registrei na minha caderneta. Sim, tenho uma caderneta! Organizei as sequências, e me encantei com tanta arte extraída do consciente adormecido.

Ansioso para conhecer a dança da rua de perto

E para conhecer Dante Gatô

Que a criou, elaborou o tempo, a marcação, os movimentos poucos e plenos.

Fez a ginga e... Girooou!

 

 

sábado, 29 de outubro de 2022

crônica da semana - retrato velhinho

 Retrato velhinho

Este ano, restaurei o retrato de casamento dos meus pais. De minha mãe, não, tenho outras fotos, mas do meu papaizinho, o único registro é o que me mostra o retrato. É daquelas composições gráficas antigas, que nem retratam fielmente os retratados. Tem acabamento a peso de retoques retorcidos, imprecisos, sem a cor autêntica da tez dos modelos e exibe um sugestivo fundo azul que levava minha avó, quando nos descrevia a fotografia, a afirmar que aquela pose foi tomada na imensidão insondável do céu (e isso para mim sempre foi uma inabalável verdade). Só muito amor mesmo para reconhecer ali, minha mamãezinha linda e o sorriso encantador de meu papai. Dando todos os descontos, relevando as tecnologias que eram possíveis lá naqueles ermos do Xapuri, em tempos outros, vi a chance e providenciei uma reconstituição, porque o papel já estava bem carcomido e acompanhei com carinho a execução do reavivamento da imagem. Emoldurei e pus o retrato na parede da sala outra vez, agora neste outubro da graça de Deus e da Virgem Maria.

Há um sentido permeando a volta do quadro à parede. Representa uma rememoração. Padre Lourenço, nosso orientador Salesiano, quando explicava a Eucaristia, dizia que era um ato de tornar presente de novo, de rememorar a paixão com todos os seus compromissos e implicações. Então, papai e mamãe estão ali para nos mostrar, à nossa família, que temos sempre a chance do diálogo, da reinvenção de idéias, do aconselhamento desapegado de interesses. A mim, como pai, me serve de inspiração recontar, recalcular cada passo que dei junto à minha mãe, que enviuvou cedo, na construção de minha personalidade e na adaptação dela, querida mamãezinha, aos tempos que se moviam velozmente. Nos erguemos indo lá nas convicções dela e vindo cá, nos meus anseios. Luto todos os dias para que a minha relação com meus filhos seja este ir e vir, este dar e receber.

Mamãe, na foto, tem um sorriso de Monalisa. Não esconde, porém, enigma ou ironia. Talvez uma certeza atávica. Dá os papos: não é fácil romper crenças ou formatos estruturais de dominação.

Pus o quadro na parede, rogando por bênçãos e proteção porque fiquei desnorteado, coisa de mês atrás, com um textão que li de uma pessoa que se acusa amigo. Um festival de inconsistências. Mas o destaque foi o valor que dá a relação pais e filhos. Diz o texto que, se este ou aquele comportamento observado não confere com os ideais dos pais, é resultado do descuido, da falta de método utilizado no lar para formar o caráter dos filhos e filhas. Neste ponto eu bambeei. A narrativa a partir daí coloca as crianças, os adolescentes, jovens, como passivos, como meros receptores de leis e condutas pré-estabelecidas. Não dá e nem vislumbra ferramentas para livres interpretações, não estabelece via alguma de volta ou reivindicação. Achei este texto de uma arrogância típica daquelas pessoas que, como diria minha mãe, só querem ser o que a folhinha do ano não marca.

Não me arvoro à menção que seja, de ser o melhor pai do mundo. Digo apenas que pelejo. E certifico. Nos últimos anos aprendi pacas com meu filho, com minha filha. Por eles, assumi conceitos outros de convivência, assimilei tolerância onde eu radicalizava. Nossa interação mais pródiga se deu na música. Apresentei-lhes Cartola, Milton, Chico, Caetano e me voltaram com Pelé do Manifesto, os meninos da Zeromou, Tulipa Ruiz, e já velho, me danei a ouvir Beatles, por causa dessa troca.

Pus o retrato velhinho na parede, rememorei, quero forjar um ato de tornar o amor presente de novo. Bença pai, bença mãe.

domingo, 23 de outubro de 2022

crônica da semana - causos do Círio

 Causos do Círio

Teve aquela vez que ante o engarrafamento gigantesco da José Malcher, desci do ônibus e saí em desabalada carreira pela calçada. Meu joelho bichado reclamando, minha percata escapando aqui, ali; o ar faltando, mas varei na Praça da República tomado da mais plena emoção, bem em tempo de ver a Santa passar, na chegada da Fluvial.

E tem das outras, poucas e boas, já da banda do profano. Foi também num sábado.

Saltei de um lado pra outro da Presidente Vargas depois que aquele vuco-vuco de motos passou. Nisso, neste entretempo, o cortejo do Pavulagem já se ia no bem adiantado do passo em direção à praça do Carmo. Me atrasei na margem interceptada pelas motos, mas não amofinei. Parti atrás. Foi um dos shows mais pródigos do grupo. Muitos convidados, lançamento de novas canções. Já na praça, fui me deixando tomar pela empolgação. Música no ar, gente amiga à beça. O tempo correu a mil e quando dei fé só restávamos eu, o jornalista Edson Coelho, uns poucos e a noite como testemunhas remanescentes do folguedo. A notícia, inclusive era que a Transladação já vinha que vinha. Como voltar pra casa, com todas as ruas que levavam à Pedreira travadas? Fizemos o último brinde e saímos à cata de um jeito de tornarmos ao lar. Fora a dificuldade de achar um táxi (não tinha uber na época e mesmo se uber houvesse, penso que seria difícil destravar a bom termo). Outro porém, severíssimo encalacre: o cacau, o picholé, o money, o tutu, o dindim. Passar o dia todo na rua leva todo nosso recurso. Eu estava na raspa. No pira paz não quero mais. Alentado. Não falei nada pro Edson. Não queria que ele se preocupasse com minha falência. Fizemos um plano, conseguimos um táxi além da Tamandaré e de lá, o motora se esmerou em malabarismos e traçados exóticos de roteiros. Fez um arrodeio estratégico e emergiu na 14 de março, ali na parte comum ao Umarizal e que era a primeira parada para deixar o jornalista. Natural que o cerzido executado pelo taxista onerou pacas a corrida. Edson desceu e quitou a viagem até ali na Quatorze. Eu seguiria para a Pedreira. Aí foi que foi. Apalpei os bolsos, catei os caraminguás, o montante não chegou a 20 contos de dinheiros. O que me restou foi me pegar com a Santa. Estava decidido, dizque, a parar e descer quando o relógio marcasse o tanto de dinheiro que eu tinha. Mesmo que fosse ainda distante de casa. Segui na apreensão.

O chofer entrou na Pedreira, pegou a pista do meio, em boa velocidade. Meus sentidos ligados no taxímetro. A cada tac (ou tic, ou tec) do reloginho captado pela minha audição, a visão aferia quantas casas se moviam no totalizador da corrida. Tensão, fé ardorosa, orelhas esquentando. Quinze paus e chegamos à feira da Pedreira, confluência da Mauriti. Mais um pouco, cruzando o Josino, já contava dezessete e uns caroços. Quando entramos na reta final da Aldeia Cabana eu estava a suar frio, a vista turvando... dezoito e uns trocados. Na hora que o homem pisou no freio e parou diante de casa, nem olhei pro marcador. Dei tudo que tinha coletado nos bolsos. Ele assentiu, agradeceu, deu boa noite e eu só disse Amém. A conta foi abençoadissimamente certa, o tanto absoluto e irremediável das minhas posses.

Este ano aconteceu que nem. O mesmo aperreio pra voltar pra casa. Nem uber valendo os tubos apareceu para nos resgatar após a Transladação. Esperamos que entojamos. Tá na hora de se pensar com mais humanidade, numa operação de resgate, com mobilização de transporte em vetores estratégicos, após os principais eventos da quadra nazarena. Senão o romeiro aqui não dá mais conta.

domingo, 16 de outubro de 2022

crônica da semana - análise provecta crustácea

 Análise provecta crustácea

O camarão é um animal invertebrado do grupo dos crustáceos. Tem o corpo alongado, coberto por uma casca transparente dura, mas flexível. É aparentado do santospés, da abelha e da barata entre tantos e diversos exemplos. É tido na natureza como um animal decompositor, aquele que recicla matéria orgânica gerada por outras e variadas espécies. Dizque é por isso que causa aqueles emboloamentos na’zurelhas e alergias de fechar a glote. Mas tirando os contras é uma iguaria de excelência, de potenciais culinários altíssimos. Chega a ser chique. Bom pra dedéu tratado, cozinhado de tudo quanto é maneira ou, que seja, cru, quando subtraído numa beliscada rápida do colfo de um vendedor distraído, lá do veropa. Dou maior valor.

Eu tenho muito respeito pelo camarão. De modos a não achar que deva ser servido de qualquer jeito. Pelo status, entendo que sempre deve compor um prato engalanado. Pode até ser ao alho e óleo, só; no bafo, mas essas são exceções práticas ou culturais, repletas de perdões. Na regra e no certo, espero sempre um arranjo, uma mimetização, que seja, na completude do caruru, um estilo este de atraente, um modo aquele de simpático, assim é minha receita para a degustação do camarão.

E é tanto recato, que desde que tempo, assumo uma postura analítica quando vou comer camarão. Seja ele do tamanho que for. Dos taludos, dos gitos, eu sempre divido aquela estrutura alongada em pedacinhos. Sério. Não passo pra dentro um camarão inteiro nem a pau. Acho uma afronta. Uma descabida soberbia.

Taí, olha, o mundo pode estar se derretendo em críticas. Todo mundo cortando a gíria pra cima de mim, dizendo que tô rendendo o prato, que isso, aquilo, mas na hora de apreciar a moqueca, o estrogonofe; e mais ainda quando encontro aquele heróico espécime no vatapá, arrumo uma faca, o garfo, separo o zinho e o vou decompondo em pedacinhos. É pra render mesmo.

Esta minha conduta analítica é certo, tem a origem lá atrás na infância pedreirense, quando a gente comia camarão uma vez na vida e pra dar mais uma prova, só em eras outras imensuráveis.

Até hoje faço do mesmo jeitinho.

Para os nossos padrões de consumo e ainda mais nestes tempos cascudos que vivemos, o camarão é caro pacas. Pelo comum, entra nos pratos mais humildes, só pra dar o gosto. Mamãe mesmo alertava. “Vai no Sandra, compra as coisinhas da lista e depois pede pro rapaz pesar uma mãozinha de camarão. Uma pequena porção, só pra dar o gosto na gororoba que vou fazer pro almoço de domingo”. E assim se dava. E mesmo o pouquinho que nos cabia, eu picava até a enésima parte.

Há um tempo, eu impinimei que deveria conhecer a origem, o sentido das palavras. E fiquei num pé e n’outro com a palavra ‘análise’. Consultei dicionários, fui até a Grécia, desci para as sintaxes indo-européias, me acudi ao vulgo, emendei nas estilísticas. De tantas sinalizações, achei atraente a definição “dispor em partes”. Relacionei este sentido com a ação que Seu Excremento, que era vizinho da Mauriti, tomava toda vez que a nossa bola caía no quintal dele: inevitavelmente fazia uma análise da bola e a nos devolvia bandada.

Com o tempo, dei de bandar também, outros sabores, diversos prazeres, inevitáveis frustrações, dolorosas quedas, ácidas relações, tímidas e contidas euforias, puríssimas tristezas, fluidas alegrias; a orelha emboloada, a alergia... o comichão na glote por essa tragédia que vivemos no Brasil. Hoje, atomizo muita coisa. Não só o camarão. Além da porção bem pesada pelo rapaz do Sandra, me imponho analisar coisas além, de forma a forjar, ao menos, um gostinho à esta dura arte de viver.

domingo, 9 de outubro de 2022

crônica da semana - não é peru, é pato!

 Não é peru, é pato!

Este ano, muita coisa emboloada. Eleição. Uma gripe inesperada. Show da Simone na bienal. Chuva de temporal pleno setembro, um dia esticado na ativa até além das 8 e meia para o remelexo do esqueleto por prescrição médica. Atenção nisto, naquilo e naquil’outro. No que deu? Ficamos, a família, sem o pato do Círio, depois de ter mina de pato no nosso micro latifúndio de meia-légua-indo-e-voltando, ali pros lados do salgado. Perdemos o trem da linha Belém-Bragança e ficamos sem a aviação da ave, no mês nazareno. E agora quede que a gente encontra unzinho pra remédio do comércio varejista da cidade? Nem crista nem copa. Pode até encontrar, ali pela feira da Jutaí, mas é com o preço por acolá de secar bolso fundo. Mais caro que o diamante da rainha.

Vá lá que seja, é da época. E também da pouca inclinação que temos para a criação de pato, em nossa região. Bem a calhar o causo de há alguns anos, ainda na minha atividade sindical, eu ter alimentado o sonho de transformar as margens do rio Murucupi em Barcarena, num centro produtor de patos para o Círio. A idéia não foi minha. Partiu da companheira Vera Paoloni, dirigente do sindicato dos bancários, que à época fazia uma parceria muito das suas di rocha com o nosso dos Químicos. Construímos muitas ações juntos. Realizamos o Passeio Ecológico pelo Furo, apoiamos as encenações da Paixão de Cristo, nos demos as mãos em campanhas salariais. Tecemos também programas cidadãos com projetos de geração de emprego e renda para as comunidades vizinhas. A criação de patos surgiu daí. Cenários políticos adversos, mudanças de orientação no campo sindical em’pata’ram o desenrolar do plano. O tempo corroeu nossas intenções, outubros mais vieram e nosso projeto dissipou-se na brisa que se espalha pelo Arrozal, Caripi, e vai dar aos pés de Nossa senhora do tempo, lá na falésia empavonada do Cafezal. Ainda hoje imagino como seria aquela pataiada ali em todo o estirão do Murucupi, esperando pra mergulhar de cabeça, num caldeirão de tucupi. Formo imagens, paisagens, fantasio patinhos chapinhando na margem argilosa, escura, lamacenta... Ilusão. Este ano não vai ter pato em casa.

E por falar em pato...

Volto a época de sindicato quando escrevi um comunicado à categoria classificando como uma intervenção cultural danosa, a iniciativa do setor patronal de distribuir aos trabalhadores um peru para as festas do Círio. Mas onde já se viu, protestei. Corporações de fora, ao instalar-se em nossa terra, deveriam antes de tudo, conhecer costumes, paixões, impulsos e devoções de nossa gente. E dei a letra: No Círio, não é peru, não. É pato. Pato!

Resmunguei, mas acabei pegando o meu peru congelado. Casou de aquele final de semana ser exato, meu período de folga das jornadas em turno. Agasalhei meu peru no congelador na sexta, e na manhã do sábado, embrulhei bem embrulhadinho num chumaço de jornal, arrumei na bagagem e parti cedinho para o porto de São Francisco, na intenção de embarcar no primeiro popopô para Belém. Esqueci um detalhe: era o sábado da romaria fluvial. Estavam todos, desde o casquinho até o catamarã mais porrudo, no cortejo pela baía. O jeito foi esperar. O tempo foi passando, eu ali na esperança de um barco, e nada, a temperatura do dia foi subindo, quando dei fé, estava pingando uma aguinha da minha sacola. O peru estava descongelando. Quando o barco apareceu, já estava um sol além do meio-dia. Até me aninhar no meu canto, já batiam os ponteiros do relógio, bem mais que quatro da tarde. O peru não resistiu ao calor. Já chegou em casa esverdeando.

Naquele ano não teve pato, no almoço do Círio. Nem peru.

 

sábado, 1 de outubro de 2022

crônica da semana - encontros e despedidas II

 Encontros e despedidas II

Toda de branco, aquela exuberância na voz, e elétrica que só na presença de palco. Ela, lá, cantando e eu cá, chorando parece menino besta.

Um roteiro intensamente emotivo, entrelaçado, para a crônica de hoje, pautado na cantora Simone.

Ex-jogadora de basquetebol, dona de um timbre que se equivale em precisão e beleza a uma cesta do meio da quadra; apareceu pra mim, se não me é errada a lembrança, como uma Gota d’água plena, irrigadora, inspiradora de emoções. E se estendeu presente, percolou o encarreiramento traçado pelas décadas de 70 e 80, do século passado. De repente sumiu, e como o Papai Noel, o bom velhinho do look vermelho, vermelhusco, vermelhão e das renas voadoras, só aparecia de Natal em Natal, dominando, com a versão da música de John Lennon, até a programação de rádios cipós nas feiras.

No período de isolamento, por causa da pandemia, reencontrei a cantora sem os enfeites natalinos, nas lives. Foi quando me fiz a pergunta de resposta não tão fácil. Como vivemos sem Simone tantos anos, como deixamos o talento da cantora ser reduzido (e até vilipendiado) por causa das intervenções sazonais validadas pela construção adverbial “então é natal”? Ela é o que é, meu irmão, e tá que tá presente com tantas e simbólicas canções na história de muita gente. E, diga lá espelho meu, na minha! Daí as lágrimas enquanto ela cantava “Encontros e despedidas” aqui no meu escaninho pedreirense. A música é a cara, o corpo e a alma dos tempos que vivi em Rondônia. Retrata um cenário muito particularmente verdadeiro que é a plataforma da estação, a vida daquele lugar.

Em minha jornada por Rondônia, cumpria uma rotina que me permitia sair da mina em que eu morava e gozar três dias por mês de folga em Porto Velho. Este meu trajeto (este vaivém) sempre contemplava uma parada na rodoviária da cidade. E os instantes que eu passava na rodoviária eram tão intensos, tão reveladores, exerciam uma narrativa imensamente realista daquele momento. A plataforma daquela estação era, efetiva, verdadeira, incontestavelmente, a vida daquele lugar. Eram momentos em que eu sentia a vibração da luta diária minha e deste povo brasileiro que é extraordinariamente, e antes de tudo, um forte.

Enquanto esperava meu transporte, via gente diferente, porrudos, loiros de olhos azuis, outros nem tanto, tipos mais comuns, nordentinos, nortistas do meu top, pantaneiros. Todos em busca de um futuro. Desciam com as tralhas todas. Fogão, geladeira, camas, um móvel ou outro, filharada, cachorro, gato, um quadro de santa, aviação para poucos dias e... esperança. Amontoavam tudo num canto isolado da estação, menos o sonho, que permanecia nos olhos impactando, encandeando. Eu ali, esperando a minha vez de embarcar, acompanhando. A molecada corria pelos salões, juntava-se na hora de repartir o cumê, depois largava-se. Até aparecer alguém. E sempre aparecia. Rondônia naquela época era vetor de migração. A cada instante vinha um preposto e arregimentava uma ruma de gente para as frentes de trabalho. Quando cheguei lá em 1983, enquanto o resto do Brasil se batia com o desemprego. Rondônia chamava gente pra trabalhar, até pela TV e a cada hora.

Quando a Simone cantou “a plataforma dessa estação é a vida desse meu lugar”, a rodoviária de Rondônia me voltou na lembrança de palmo em cima. E aí, não teve combate. Chorei pacas.

Ouvindo a cantora na Aldeia Cabana, resgato lá de longe, a mesma impressão cunhada por Euclides: somos, antes de tudo, fortes. Temos condição de fazer um Brasil melhor. \Pode ser amanhã o “dia da nossa alegria atravessar o mar”.

 

sábado, 24 de setembro de 2022

crônica da semana - banzeiro

 Banzeiro

Todo mundo fala, comenta, expõe inquietações, conta casos. Eu tenho uns quantos. O certo é que daqui pra dezembro este banzeiro aí na baía do Guajará e mais além, na baía do Marajó, vai ser pauleira, têi-têi, de beira a beira.

Somos parte dessas águas. Estamos de confronte, todos os dias nos vemos e nos sentimos de variadas maneiras e jeitos. Tiro por mim, que me vejo de cá a Barcarena e de lá a cá, pelos caminhos que se abrem entre os ventos e as grandes ondas (tirando um pelo outro, nos meus 28 anos de Barcarena, passando pelas travessias de passeio, aquelas da universidade, outras do sindicato, muitas para precisões de ocasião, e contando a média de duas viagens por dia a trabalho, posso estimar um pacotão com mais de 13 mil travessias, ao longo desse tempo e isso medido no padrão barcão, popopôs, lanchas rápidas, lanchas lentas, barcos que ficaram pelo caminho no prego e balsas minadas de carros para o Círio, por exemplo. É um feixe bom de viagens, né). Nesse tempo, já fui assaltado no meião da baía do Cafezal, já ocorreu de a lancha em que eu viajava ser varada no meio por outro barco, num encontrão que deixou alguns feridos, outros traumatizados e os que se jogaram na água, ensopados e assustados. Aconteceu de certa vez eu vivenciar na prática aquele problema de Física, clássico, do triângulo na travessia de um rio. Foi no popopô. O piloto varou na baía apontando a quilha pro vetor Cidade Velha e a correnteza e os ventos ajustaram o traçado gerando a resultante que nos levou ao desembarque certinho no Veropa. Vivenciei inúmeras operações de embarque e desembarque baseadas na polaridade do não e do sim. É quando a onda está tão forte e grande, que a cada dissipação, tira a rampa de acesso do nível de segurança. Então a gente faz a contagem do tempo pra acessar a rampa. Onda vem, não. Onda vai, sim. E é nessa cadência que se vive a vida no vaivém diário enfrentando os banzeiros.

Antigamente eu afirmava com gosto e zelo que a travessia para Barcarena, não era uma viagem, era um passeio. Ocorria quando o caminho se realizava pelos furos da Ilha das Onças. O trajeto era uma experiência incrível de aproximação com a lida ribeirinha. Maleducação e velocidades altas provocaram desmoronamento das margens, transtornos para os moradores e a rota foi alterada. Agora é tudo por fora. O que não deixa de ser também um passeio, com o detalhe de contemplarmos uma ilha se formando no meio do canal e ao longe, o nicho de Nossa do Tempo. Vigilante à beira da falésia do Cafezal, a Santa dadivosa que não permitiu que mal algum nos atingisse no dia em que o barco em que eu viajava foi assaltado e desviado para uma entradinha bem pertinho do nicho.

Olhando de palmo em cima, o número de 13 mil viagens em 28 anos, estima-se que a estatística está a meu favor. Dois ou três casos de atenção em 13 mil. Benza Deus. Entendo assim porque observo ser o banzeiro, um evento natural que devemos apreender e tirar dele as soluções. Representa as variações que podemos dominar. O Vikings noruegueses quando navegaram até a América reconheciam e controlavam a variação das marés, dos ventos, das ondas. Penso que, apesar dos repentes impostos pelas nossas águas, temos que confiar na engenharia e nos artesãos ribeirinhos. Um Fé em Deus não navega os rios amazônicos sem aquele piloto conhecedor, um maquinista experiente ou uma tripulação treinada para reagir a qualquer contratempo. Nem um transatlântico, nem um Sacramenta-Nazaré fazem seus itinerários sem o saber dos repentes das rotas.

Daqui pra diante, vamos falar muito sobre os banzeiros.

 

sábado, 17 de setembro de 2022

crônica da semana - alvíssaras

 Alvíssaras

Não sou dado ao negócio do convencimento inapelável, do marqueting certeiro, da venda sem barreiras. Mamãe sim, quando batia a sandalinha por essa Pedreira velha, não tinha quem resistisse: com uma coisinha ou outra a freguesia se comprometia no crediário Santa Luzia, depois de uma conversinha com mamãe.

Até tentei seguir na mesma pisada, mas me faltou o talento...

Contada já foi por aqui a minha aventura de vendedor do mais famoso carnê de capitalização do país, e num período que o talão vendia como água. Também, contava para o sucesso, a promessa que depois de quitadas as parcelas, o freguês herdava uma bolada de volta, corrigida por obrigações reajustáveis do tesouro nacional. Pois não vendi nenhum. Bati perna da Pedreira ao Entroncamento com minha pastinha, no sol de fritar o miolo, fui e voltei na vontade e... nada. Não vendi um pra remédio.

Fiquei na panemice e no desânimo até que, com a chegada dos shoppings na cidade, me engracei. Criei um projeto ainda hoje engavetado de um point diverso. Mistura de gourmet com retrô, popular e erudito, cult e brega. Também já relatei aqui este projeto. Consta ser um espaço de venda para várias modalidades de chopes. Sim, o do saquinho. Um ousado comércio popular, e de preferência encravado no mais sofisticado centro de compras de Belém. Um empreendimento audacioso. Até a maquininha de soldar o saquinho está nos planos. Porque no princípio, era assim, no ferro quente.

Eu mesmo operei uma máquina dessas quando fui colaborador na taberna do seu Valdivino, celebrado naqueles anos passados, na Mauriti, por dar conta de uma venda, até grande, apesar de ter perdido totalmente a visão. Naquele tempo os sacos de chope eram quadradinhos. A nossa linha de produção contemplava o preparo do bom Q-suco, a dosagem certa em cada saquinho e por último, chegava a mim para lacrar a borda. Era um equipamento simples. Ligado na tomada, aquecia uma placa de metal afinada num gume preciso. Eu posicionava as duas partes do plástico bem no eixo do gume, pisava no pedal, a placa descia, fazia um cerzido quentinho no plástico chega saía uma fumacinha e estava no jeito, pronto para ir ao congelador mais um puro de groselha ou qualquer outro colorido e artificial sabor. Durou pouco este processo. A máquina era com base em resistência, que nem o ferro de engomar, consumia energia pacas. O crionegócio pautado no chope não resistiria se um empreendedor de muita fé não tivesse a brilhante idéia de substituir a solda com resistência elétrica pelo nozinho. Mudou o formato do saquinho, os fornecedores desandaram a produzir na escala do milheiro, e ao produtor, bastava agora providenciar o conteúdo doce e colorido, dar o nozinho e esperar a petizada.

Hoje, na versão industrial, a cor ainda lista os sabores, revelando um contexto sinestésico ao negócio. Os sucos também ficaram mais azedinhos, e os saquinhos são grossos, difíceis de rasgar com os dentes. Na última prova, tive que me acudir a uma tesoura para cortar a boca do saquinho.

Por isso, por essas inconsistências da modernidade é que, tenho a esperança ainda, quando um governo mais humano nos tirar deste caos Brasil, de montar meu empreendimento Simbolista. Nos primeiros dias de funcionamento já está agendado o concurso de quem chupa todo o sumo colorido do chope, e deixa só o branco do gelo no interior do saquinho. Nos meus tempos tinha uns moleques que faziam previsão do futuro do dono do chope, a partir dos desenhos que as bolinhas de ar deixavam nas trincas do puro branco do gelo. Vou apostar no aparecimento de um vidente e quem sabe ele nos inspire alvíssaras.

sábado, 10 de setembro de 2022

crônic da semana - sonho que tive

 Gentes

Dou o maior valor nos sonhos. É coisa de impressionar. Ouvi algures que o sonho, mesmo aquele que roteiriza uma vida toda, não dura mais que poucos segundos. Não sei se é válida esta afirmação. Um dia vou me envolver no resultado de alguns estudos e me certificar desses detalhes, mas sei lá, acho que tira o encanto. Até lá, às certificações, o termo dos sonhos e das viagens que a gente faz, enquanto dorme, bom mesmo é deixar rolar.

Faz poucos dias, coisa de uma semana, sonhei com a primeira vila operária que morei, quando cheguei a Rondônia. Isso há quase 40 anos. E olha, meu sonho foi buscar detalhes. Cantinhos, nichos de reflexões, beiradinha de igarapé, recanto das diversões, minha casinha, as pedras que eu colecionava, as fotos de Belém, dos amigos e dos amores que me matavam de saudade e que eu deixava em lugar estratégico, defronte do meu choro diário... Um sonho tão perfeito! Sonorizado em dolby stereo, colorizado em todos os tons do espectro, com passarinhos cantando, carro passando ao longe, barulho de panelas na cozinha, lá em cima, além da ladeirinha e um canto de trabalho da Dona Adélia enquanto preparava os pratos do dia... o zunido do vento invadindo o talvegue dos igarapés desde lá de longe até cá embaixo, no cenário do meu sonho, rés o meu travesseiro.

Não sei vocês, a ser sincero, não sou de lembrar, confesso, mas dizque também, que dos sonhos, é normal a gente esquecer logo que acorda, por isso corri aqui para o computador, pra registrar este um, ainda na fresca da manhã. É que exato este sonho me chegou com uma retórica rígida, munida de realismo espetacular, cheio de sentidos, tato, cheiros, meu barraquinho...

A bem da verdade era um bloco de alojamento composto por dois quartos. Chamo de minha casa porque durante a maior parte do tempo que vivi ali, morei sozinho no bloco. Era como se habitasse numa casinha com dois quartos. Os blocos ficavam no entorno de um espaço multiuso que chamávamos de refeitório. Área ampla, de um salão grande com a mesa se estendendo e dominando todo um lado do compartimento. Ali, era também nosso local de convivência e recreação. Havia um bar, com bebida de tudo quanto é qualidade, de cor e teor alcoólico, e olha, era bem freqüentado, porque o que fazíamos muito por lá era beber. Dava de tardezinha depois do expediente, todo mundo encostava no balcão, sujo mesmo do trampo e entornava o caldo. No destaque, uma mesa de bilhar dominava o lado oposto ao balcão. Era o teatro de operações onde nos debatíamos em acirradas contendas. Meio largadinha, uma TV pregada na parede, que ninguém nem ligava porque não tínhamos parabólica e o sinal da região era bem fraquinho, só rolava um chiado e um chuvisco intenso. Tudo isso fazia parte do agrado, era o chama da empresa para nos segurar naqueles sertões do oeste brasileiro. Ao pegado, na extensão do salão, ficava a cozinha que era comandada por dona Adélia, nossa cozinheira, aquela que nunca errava a mão e produzia nosso cumê com um livro de receitas (dela mesma) debaixo do braço (e que saborosas lembranças! No sonho, eu senti o cheirinho dos carinhados pratos que ela criava e, ora veja, o mais fantástico, a base de quiabo).

De manhã, acordei mais afeito aos ânimos de Rondônia em 1983, nos estertores do regime militar, que aos dias plúmbeos atuais malinados por nostalgias espasmódicas golpistas.

Um sonho perfeito, tão real, que me cobrou os pés mergulhados no igarapé da memória. Que me propôs, assim como há 40 anos, lutar sem reservas e sem limites pela vida. Não vi gentes (nem mesmo D. Adélia), no sonho. Minha gente anda triste.

sábado, 3 de setembro de 2022

crônica da semana - meu inglês é fraquinho

 Meu inglês é frakinho

Jovens que conheci na universidade, bem dizer dia desses, já estão completando 40 anos. Éraste! O tempo...

Deixa estar que, sábado próximo passado, fui convidado, por uma querida amiga herdada desses tempos, para a comemoração desta nova fase na rima dos ‘enta’, com aquela continha se realizando na cabeça... Quando estudava, criei amizade com a turma de 18, 20 anos, e eu já era quarentão... Daí, mais uns bons vinte anos se passaram (para ambos os lados)...

No ritual da festa, discursos, emoções, agradecimentos. Bufê e na sequência, a banda mandou ver iniciando logo com o som do Pussicaty, ‘Smile’, ‘Mississipi’, depois emendou com o Abba, Bee Gees e éramos todos da mesma geração nait’fiver. Fiquei ligadaço.

O detalhe é que a maioria das músicas que marcaram as afetividades passadas foram selecionadas em inglês. Era o que sinalizava a playlist-saudade, misturando inclusive várias etapas e ritmos da música estrangeira. E o programa da banda calhou certinho no gosto dos convidados. Afinal são canções que varam gerações de um lado a outro.

Faço um paralelo quando na época de estudante, encarava rolês com os jovens. Certa ocasião, bancamos a missão de frequentar um bar que tocava só Beatles. A garotada cantava todas. Dominava a pronúncia e a articulação fonética do bom inglês. Reaprendi a gostar dos rapazes de Liverpool com essas baladas temáticas. Só não aprendi um isso aqui das músicas no original. Meu inglês é fraquinho. A petizada tinha que exercitar a tolerância. Eu era aceito no grupo mesmo sendo coroa, aluno universitário temporão. E ainda tinham que relevar o meu completo apartamento na hora dos coros entusiasmados de ‘Help’ ou do recitado quase rap, da bela Blackbird, quando nos envolvíamos com tudo no som dos Beatles. Apesar d’eu ter uma boa média de acertos e me virar satisfatoriamente num errezinho nas aulas de Inglês Instrumental, na fala, não me garantia não.

Eu os admirava. Curtia pacas aquela geração valorizando os iês iês iês lá dos anos 60. Ficava meio acabrunhado, ensimesmado, sentia uma vergonhinha porque não conseguia acompanhar a galera nos coros, por falta de um acervo eficiente de palavras ou memória compatível para decorar as letras em inglês. Dei de me fazer cobranças e me imputar carões. Por que não estudava mais, não procurava jeito de dominar o idioma apenas para não me sentir daquele jeito, deslocado da turminha? Com o tempo desencanei ao reconhecer que tenho acervo, mas me falta memória para cantar ou acompanhar refrões até de músicas em português... inclusas as minhas músicas e poesias, que não raro me fogem, quando as procuro para uma palinha ao violão ou uma recitação nos saraus. Tenho as evidências aqui em casa, nas eventuais audições domésticas: “éraste, o papai não sabe a letra de nenhuma música inteira, e as poesias, então, não decora nem aquelas, curtinhas dele”.

Devo adiantar que não é falta de memória, ou índice de alguma patologia. Muito menos desleixo, descuido com as vastas e caras obras. É que são muitas as informações no cocuruto e, de fato, não tenho o dom de guardá-las todas. Acho que dediquei toda a minha capacidade de armazenamento para decorar a tabuada, lá nas aulas da professora Lurdes, pelos idos de chumbo dos anos setenta, sob a mira ameaçadora da palmatória.

O que vale é o prazer do som. Se a gente não sabe a letra de cor, seja no inglês, seja no português, vamos de nã nã nã, e na palminha. Curti pacas a festa dos quarenta anos animada pelas canções que atravessam as eras. Éramos todos blackbirds nait’fiveres nos embalos daquele sábado.

sábado, 27 de agosto de 2022

tomate é fruta

 Tomate é fruta

Enfrentar os dias atuais é missão titânica. A gente tem que se abastecer de coragem e argumentos para não virar de lado na cama desvanecido e deixar o tempo trotar implacável nas nossas costas.

Eu tento uma tática que está dando certo para não sair do sério a toda hora. E vem de um conveniente apagamento, um providencial apartamento de toda maledicência, de toda provocação, de toda a live exposta no maior volume, para todo mundo ouvir. Consiste em começar o dia me envolvendo nas artes.

A música dando o tom da prosa. Os dias mais densos, podem ser permeados de Beatles. Quando é possível uma distensão, música paraense, meu compadre Edir Gaya, os interiores de Nilson Chaves e todos os outros encantamentos de ritmos disponíveis para a gente ouvir na plataforma preferida. O ambiente partilhado na cidade, no trabalho, no transporte, pode até estar remoso, mas se tem a música, tudo se ajeita. A paz reina provedora. E isso não significa alienação. Dá luz aos problemas, foco aos riscos e nos proporciona a resistência necessária e urgente para enfrentá-los. A música salva vidas, empregos e mentes.

De par com a música, a literatura. Ajuda que só. Ativa a concentração, a emoção. Desembrutece o espírito. Potencializa a compreensão do mundo. Começo o dia lendo. Romances, poesias, biografias, textos jornalísticos. Faço um rodízio de gêneros. Dia desses, revisitei Dalcídio. Por agora, me envolvo nas narrativas contidas no terceiro volume de “Escravidão”, do jornalista Laurentino Gomes. Edição robusta elaborada em três massudas publicações, que faz abordagem atenta dos 300 anos das práticas escravistas no Brasil. Uma composição, penso eu, suscetível aos adendos acadêmicos, mas para nós leigos, um mundo rico de informações.

A leitura matinal renova a mente e mesmo diante de temas realistas e duros demais, sempre nos oferece o estilo, O quê literário, como valência, como contraponto. Como dizem os teóricos, a transgressão, a transcendência. Não minto. Tô ali, ligado no desenrolar dos fatos, mas com um olho no peixe outro no gato. Só na bicora de uma construção atraente, uma surpresa estética. Uma tessitura assindética minimalista, “O Brasil está um desespero só”; metafórica, “este homem é um monstro” ou de uma elaboração científica de difícil apreensão, “o tomate é uma fruta”.

A leitura, a música, o tomate nos alimentam. Formam um conjunto básico de nutrientes emocionais que se estabelecem como pauta para pensamentos mais saudáveis no correr do dia e que podem até relar em aspirações ao bem e ao bom da alma. E pensamento, sabemos, voa.

Estas artes nos mostram que não há mundo apartado de nós, não há subterfúgios ou negações de dores, mentiras no âmago da natureza ou cinética irreversível na composição textual, mesmo que na forma assindética. Além de qualificar o chão esturricado que pisamos, o mergulho no oceano das artes, nos indica atalhos que tornam nossa caminhada menos penosa. Cuida para que o trotar do tempo em nosso lombo seja mais leve e a irritação diária de fácil , passe a ser mais difícil, que tenha poucas chances de nos vencer.

E o melhor: esta imersão nos faz pensar. Refletir sobre novas estratégias de sobrevivência neste mundo besuntado em ódio, fake news, deepfaces e tantos outros anglicismos manipulados com a mesma inocência fonética para dar nome aos sorvestes, só que nos dias de hoje, adaptados para camuflar o mal.

Ao final do dia, colhemos os frutos: no entendimento que tomate é uma fruta e na compreensão que a escravidão é uma chaga ainda aberta no tecido social brasileiro. E cantarolando...

sábado, 20 de agosto de 2022

crônica da semana - ninguém escreve ao coronel

 Ninguém escreve ao coronel

Pode até não ser o rabiscado exato dos fatos, esta minha afirmação, mas pelo que vivi uns tempos atrás, me parece ser nessa mesminha batida o caso.

O peão é ralado. Não se une. O bacana, mais ajeitado de grana, não. O aristocrata é ali, imbricado. Um no cangote do outro. Respirando o mesmo ar, comendo da mesma comida, bebendo da mesma bebida. Os bacanas se dão. Peão, não. Peão é num desapego sem razão.

Sobre o coronel: este é personagem de García Márquez que, no desenvolvimento do romance, consome anos de sua vida à espera de um comunicado do governo sobre sua aposentadoria que nunca chega. Uma vez por semana ele vai ao porto encontrar a lancha que traz as correspondências e a frase que ouve do carteiro é sempre a mesma: “ninguém escreve ao coronel”.

Esperanças criadas por personagens ligados de alguma forma a graduados, e refletidas em angustiante espera por um comunicado, um ofício estão presentes em outras versões da arte. O cartunista Addison Morton Walker criou o general Dureza, nos quadrinhos do Recruta Zero e o municiou da mesma e inquebrantável esperança de um dia receber um alô do Pentágono. Engalanados em narrativas diferentes na forma, compõem o mesmo conteúdo daqueles que esperam por um sinal de um grupo organizado que os conheça e os reconheça, e que talvez, no braseiro das desditas, nunca chegue. Formam uma marginalidade que traduz a realidade cruel da desunião, do apartamento de interesses, da quebra de juras e credos. É o caso de escolhas e preferências. Abonar uns parças, aliar-se por conveniência àqueles grupos e abandonar outros, mesmo que isso signifique contradição, infidelidade, conflito de classe, alta trairagem ou até uma inocência entorpecida irrigada pelos fluidos irrefreáveis do sistema, são artes da nossa frágil compleição social .

Tornar para o tempo e se pegar esquecido pelo mundo sem direito a uma cartinha, um ombrinho sequer é experimentar o amargo da solidão, a dor da impotência, o vazio de qualquer luta. O apagar de sonhos e esperanças.

É o ferro esquentando no couro da gente. Ardendo de nos levar ao sofrimento e ao desencanto. Um dedo no olho a nos legar a frustração.

Foi o que percebi naquele dia todo que varou pela noite, na sala de observação da emergência em um hospital de Barcarena.

Estávamos eu, peão do chão da fábrica e um graduado, regado no tutu, gente grande da cidade. O custo da ocasião era respondermos aos medicamentos e esperarmos o resultado dos exames. Como não havia ordem de internação, não tinha o cumê ou outras atenções.

O tempo que fiquei por lá era gente chegando para assistir o ungido. Era maçãzinha, pêra, uvas sem caroço. Revistas da semana, conversio, uma vuca dedicada a dar comodidade ao observando. O peão aqui, ninguém visitou. Nem uma bula de remédio a mim me foi dada a ler, um completo de pastel e suco, um pão da esquina. Nada. Se eu quisesse beber uma água, tinha que ir arrastando o suporte do soro até o bebedouro. Xixi, então, só ia quando não me agüentava mais e com o sangue voltando da veia por causa dos tropeções que dava pelo caminho. O privilegiado até me oferecia coisinhas que sobravam, um isso doce, um aquilo azedinho. Menos por frustração e mais por orgulho de operário, mesmo na broca, declinava das ofertas, alegando uma queimação no estômago, uma azia de mentirinha.

É o caso: Ninguém escreve ao coronel. A parceirada tira férias, assume compromissos vãos, arruma uma constipação...Acaba a tinta da caneta...O peão é ralado. Não se une.

O alto clero, não. A turma dos bacanas mais aqueles de bufufa e de pose, são, ó, unha e carne.

 

 

sábado, 13 de agosto de 2022

crônica da semana - carapanã às pampas

 Carapanã às pampas

Naquela horinha da tarde quando o calor é de correr doido pelos estirões do mundo afora da Pedreira, ajeitei um banho para refrescar o cocuruto. Mas foi eu entrar no banheiro e a carapanã varou bem na minha frente. Pleno ensolarado da tarde. Muito das suas porruda. Apareceu condoreira como daqui pra’li, bem ao meu alcance. Não contei conversa. Posicionei as mãos espalmadas em linhas paralelas de ataque. Não tinha errada aquele clap, ainda mais que ante o contraste dos azulejos brancos, aquele serzinho enxerido era alvo fácil. Concentrei e dei-lhe uma boa palmada. Minhas mãos chega doeram, tornaram vermelhas da investida, mas evidência de sucesso na operação, não traziam não. Como por encanto, a sacrista da carapanã escapou.

Eu heim, tô pra adivinhar como conseguem. Estão ali, no papo, no jeito para serem esmigalhadas, mas num trisca somem, escafedem-se. Penso ser até uma arte de desaparecimento, de natureza além do que prevê a nossa vã filosofia de zap.

Maldo ser fenômeno quântico equivalente àquele elaborado por  Schrödinger (e não me perguntem como se pronuncia o nome do gênio), só que na hipótese do cientista, o personagem era um gato. Aquele ser que experimentava a superposição de estados opostos da matéria. Se Schrödinger tivesse ilustrado sua teoria usando a carapanã aqui do banheiro de casa, o mundo seria outro, teríamos a compreensão exata do fenômeno, pois que seríamos testemunhas de que uma carapanã decidida pode estar e não estar, parecer voando de palmo e cima da gente e não parecer voando de palmo em cima da gente. Responder ao espectro da luz visível, e assim, num tapa vão, não responder. Acrescento até que o comportamento de uma carapanã em suas fugas espetaculares, dá significância a abstrações cósmicas, induz a existências de mundos paralelos. Outras e impenetráveis dimensões. Escudos etéreos contra mãos espalmadas a fim de esmigalhar um abdome de inseto. Foi o que aconteceu naquela tarde quente quando eu me aviava a um refrescante banho. Estava em tempo de amassar aquele mosquito porrudo, quando ele engatou uma velocidade de Enterprise, dobrou a esquina do horizonte de eventos e sumiu para o infinito e além.

Uma sina essa de abicorar carapanã. Vem da primeira malária que peguei em Rondônia. Fiquei impressionado. Criei pavor. Sofri de marré com meia cruz de vívax, daí a minha cisma, minha inquietação. Ainda me recuperando no hospital, não dormia. Tinha como meta a vingança sará maligrina. Enquanto eu estivesse tomando agulhada na poupança e rente na dosagem periódica de primaquina, não deixaria uma única carapanã ao tempo pra contar a história. Espirrava veneno, esmigalhava com a chinela, ia atrás, caçava embaixo da cama, atrás das coisas, do cortinado e dos pressentimentos. Às vezes atacava o vento.

Anos mais tarde experimentaria uma aventura que se eu não fosse do crédito e da certeza, seria difícil de acreditar. Acampado à beira do Xingu, a partir de 4 e meia, cinco da tarde me via envelopado por uma inimaginável população de carapanãs. Mas eram muitas mesmo. A gente jantava ainda com um sol quentinho e olha, mais que depressa era perna-pra-que-te-quero e tibum, debaixo do mosquiteiro. Ali carapanã não precisava de velocidade Entreprise não. Estavam no comando e se a gente bestasse, era risco certo sermos derrubados e sofrermos algum trauma de queda por causa daquela nuvem escura nos empurrando. Lá no Xingu, é que tinha carapanã às pampas e olha como são os caprichos de um lugar bom. Mesmo com aquele rio de carapanãs, no Xingu não peguei uma malarinha doce sequer.

 

sábado, 6 de agosto de 2022

crônica da semana - aline

 “Aline!" pour qu'elle revienne

A tarde findava. Eu e meu melhor amigo Edir Gaya, na ocasião, único funcionário e empreendedor compulsório do Crediário Santa Luzia, negócio mantido por mamãe aos trancos e barrancos, contabilizávamos o movimento do dia e nos preparávamos para desarmar a barraca. Seu Jorge, meu tio, no estirão de calçada que margeava a Mauriti, tomava um cafezinho e dava um tempo para decidir se ia embora ou não. Olhava pro céu, fazia umas contas, comparava datas, direção do vento, textura das nuvens e definia a previsão meteorológica da hora. Outros feirantes tomavam decisões diversas. Alguns optavam por uma cervejinha para encerrar a lida. Outros rearrumavam a mercadoria já no modo viração. Era nesse clima, meio ocaso plúmbeo, meio esperança vibrante; um tanto desilusão com a liquidez e rentabilidade, outro tanto e mais um pouco de contentamento com a féria diária. Parte racional com um futuro incerto e a outra parte destacando o romantismo da esperança presente... Pautado neste cenário, o rapaz do som (que era como chamávamos os DJ’s à época), que operava a rádio cipó, dava voz aos ventos que varrem a Pedreira, e colocava pra tocar o disco do Cristofhe. Ao ouvir a introdução da música em arranjo emotivo, soltando faísca, convulsionando as mais recatadas reações, eu dava aquela paradinha, olhava o entorno, gravava as imagens, os sentimentos, as energias que vagavam em eternas trajetórias ao largo do mercado da Pedreira. Era sábado encantado. “Aline!" pour qu'elle revienne.

Era o único dia que podíamos trabalhar os dois períodos, o sábado. Durante a semana e no domingo, a feira da Pedreira só operava até o início da tarde. Duas horinhas da tarde, um tantinho a mais ou a menos e a turma já deveria capar o gato. Não tinha escapatória. Era a vez da limpeza e do churrasquinho pra mais tarde e que ia noitinha à dentro.

Penso ser por isso que tenho comigo a força do sábado.

E entendendo essa vibração do sábado é que conjuguei carências, condensei nostalgias, agrupei desejos e me abalei para o veropa, semana passada.

Mas tava na ira. Sabe um cuíra, um comichão, uma vontade incontrolável de comer uma carne assada de panela da feira? Pois é. Estava fazendo menção, ensaios, uma tentativa em casa, mas ainda não havia realizado este meu desejo. E quando isso poderia acontecer de forma mais emblemática? Num sábado, ora.

Também, fazia tempo, desde o início da pandemia que não me arriscava em ônibus. Pois peguei um Ceasa-Ver-o-Peso, pela meio-dia, e  me abalei pro centro.

Piririquei pelo furdunço à beira da baía. Gente pacas, só um rego pra passar no meio do povaréu. Dei pra trás. Desci nos PFs. Mais mina de gente e olhe lá, olhe lá, umas tentações untadas no mais remoso dos colesteróis ali, a nos assediar. A muito custo, lutando contra meus diabinhos assanhados por uma gordurinha, dei de banda. Atravessei para o mercado Bolonha, àquela hora da tarde, mais aquele de tranquilo em termos de gente, de coisa e de movimento. Consegui uma mesa só pra mim, pedi meu prato e uma cervejinha pra espairecer. Apreciei o som difuso, bati o pezinho e cantarolei baixinho, sucessos antigos enquanto esperava.

Desejo satisfeito com sucesso, quando fui saindo, adivinha que música o DJ do som difuso pôs pra tocar? “Aline!" pour qu'elle revienne.

Voltei na mesma pisada e tomei mais uma. Com uma lagriminha rolando dos olhos. Senti Seu Jorge, os feirantes amigos, minha mãe e o crediário Santa Luzia perto. Bem pertinho de mim.

 

domingo, 31 de julho de 2022


                                             O nascer do sol na Praia do Farol

sábado, 30 de julho de 2022

crônica da semana

 A Ponta do Farol

Um jeito que nos permita ver o nascer e o pôr do sol num pacote espacial só, é difícil. Esta combinação no avistamento destes eventos depende de muitas coisas. Época do ano, urbanização, densidade de vegetação no horizonte, relevo, e disposição pra acordar cedo, na batida da campa da aurora. Foi o que fiz na praia do Farol.

O pôr do sol estava na escrita diária sem esforço ou campana. Acontecia de confronte à varanda do hotel. Era só a gente dar as caras no tempo e na vez, que lá s’estava aquela bolona vermelha mergulhando no horizonte ao pegado de Cotijuba. A campana necessária foi para dar de encontro com a bolona, no amanhecer. Não tínhamos a experiência, não sabíamos o local exato. Rolou até um desânimo de não ver nada já que, a partir daquele instante da tardinha, fizemos a menção de projetar o caminho inverso do sol, e estimamos que de manhã, ele surgiria pras bandas da maior concentração urbana e isso nos impediria o avistamento dos primeiros raios de sol.  Pesquisamos o horário certinho do alvorecer, ajustamos o despertador e ficamos só na bicora do sono leve. Se eu contar a maravilha que foi...

Passar uns dias no Hotel Farol estava no meu plano de férias domésticas. Coincidiu também com o período de lançamento de edição, em três volumes, contando a história do hotel e dos Mártyres de Mosqueiro. Organizada por Andréa Mártyres de Oliveira, a coleção vem em produção rica e respeitosa. Conta a história do hotel, do casal Zacharias e Adelaide, filhos, e dos descendentes que herdaram a responsabilidade de manter a vocação da exuberante construção. Que, sem dúvida, é um ambiente de lindezas. O salão nobre, que guarda móveis, peças de decoração e luminárias originais, por exemplo, é de entontecer. Destaco ainda, o piso em madeira refinada que, tratado ao brilho e ao fulgor é arte de simetria e silêncio atávico, chega dá uma paz na gente.

Quando cantei a pedra aqui em casa e falei que iríamos veranear no Farol, a turma saiu de banda. Ponderações e considerações sobre o aporte financeiro sacolejaram a decisão. Ouvi que era, de minha parte, um lampejo burguês. Banquei. Quis porque quis, afinal, pra quê me bato o ano todo nesta minha vida de operário, enfrentando as contradições do capitalismo, suportando além disso, e por agora, ante os levantes conservadores, os rotineiros embates, nunca cordiais, ideológicos, tensos; e mais para frente previsivelmente políticos-sectários e ferozes. Se me embrenho em superações, ora, ora, se não mereço realizar uma extravaganciazinha burguesa rapidola. Arrumamos a bagagem e caímos no trecho rumo à bucólica, sem pesos na consciência...

E tem a varandinha... De lá, contemplamos, no segundo dia, após todos os preparativos, o nascer do sol.

O hotel fica na chamada Ponta do Farol. De lá, se traçarmos a linha de praia, percebemos que ela toma uma direção bem mais  leste/oeste que as outras praias. Resulta que, neste mês de julho, nos oferece um sol aparecendo, ao amanhecer, lá na fronteira do Chapéu virado com o Porto Arthur e de tardinha, do outro lado, mais um espetáculo nas mesmas águas da baía do Guajará/Marajó. Maravilha!

E eis que diante de tanta beleza, de par com a história do hotel, me bateu a cuíra de voltar mais ainda no tempo e me juntar aos tupinanbás, buscar um peixe bom, tratar, tirar o fato, envolver o pescado na folha de guarumã. Além, acender a fogueira com gravetos do murucizeiro, montar um tapirizinho e sobre ele lançar e entregar o peixe embrulhado ao fumeiro. E ficar ali, ao tempo e à paz, só apreciando o moqueio no Mosqueiro.