sábado, 27 de agosto de 2022

tomate é fruta

 Tomate é fruta

Enfrentar os dias atuais é missão titânica. A gente tem que se abastecer de coragem e argumentos para não virar de lado na cama desvanecido e deixar o tempo trotar implacável nas nossas costas.

Eu tento uma tática que está dando certo para não sair do sério a toda hora. E vem de um conveniente apagamento, um providencial apartamento de toda maledicência, de toda provocação, de toda a live exposta no maior volume, para todo mundo ouvir. Consiste em começar o dia me envolvendo nas artes.

A música dando o tom da prosa. Os dias mais densos, podem ser permeados de Beatles. Quando é possível uma distensão, música paraense, meu compadre Edir Gaya, os interiores de Nilson Chaves e todos os outros encantamentos de ritmos disponíveis para a gente ouvir na plataforma preferida. O ambiente partilhado na cidade, no trabalho, no transporte, pode até estar remoso, mas se tem a música, tudo se ajeita. A paz reina provedora. E isso não significa alienação. Dá luz aos problemas, foco aos riscos e nos proporciona a resistência necessária e urgente para enfrentá-los. A música salva vidas, empregos e mentes.

De par com a música, a literatura. Ajuda que só. Ativa a concentração, a emoção. Desembrutece o espírito. Potencializa a compreensão do mundo. Começo o dia lendo. Romances, poesias, biografias, textos jornalísticos. Faço um rodízio de gêneros. Dia desses, revisitei Dalcídio. Por agora, me envolvo nas narrativas contidas no terceiro volume de “Escravidão”, do jornalista Laurentino Gomes. Edição robusta elaborada em três massudas publicações, que faz abordagem atenta dos 300 anos das práticas escravistas no Brasil. Uma composição, penso eu, suscetível aos adendos acadêmicos, mas para nós leigos, um mundo rico de informações.

A leitura matinal renova a mente e mesmo diante de temas realistas e duros demais, sempre nos oferece o estilo, O quê literário, como valência, como contraponto. Como dizem os teóricos, a transgressão, a transcendência. Não minto. Tô ali, ligado no desenrolar dos fatos, mas com um olho no peixe outro no gato. Só na bicora de uma construção atraente, uma surpresa estética. Uma tessitura assindética minimalista, “O Brasil está um desespero só”; metafórica, “este homem é um monstro” ou de uma elaboração científica de difícil apreensão, “o tomate é uma fruta”.

A leitura, a música, o tomate nos alimentam. Formam um conjunto básico de nutrientes emocionais que se estabelecem como pauta para pensamentos mais saudáveis no correr do dia e que podem até relar em aspirações ao bem e ao bom da alma. E pensamento, sabemos, voa.

Estas artes nos mostram que não há mundo apartado de nós, não há subterfúgios ou negações de dores, mentiras no âmago da natureza ou cinética irreversível na composição textual, mesmo que na forma assindética. Além de qualificar o chão esturricado que pisamos, o mergulho no oceano das artes, nos indica atalhos que tornam nossa caminhada menos penosa. Cuida para que o trotar do tempo em nosso lombo seja mais leve e a irritação diária de fácil , passe a ser mais difícil, que tenha poucas chances de nos vencer.

E o melhor: esta imersão nos faz pensar. Refletir sobre novas estratégias de sobrevivência neste mundo besuntado em ódio, fake news, deepfaces e tantos outros anglicismos manipulados com a mesma inocência fonética para dar nome aos sorvestes, só que nos dias de hoje, adaptados para camuflar o mal.

Ao final do dia, colhemos os frutos: no entendimento que tomate é uma fruta e na compreensão que a escravidão é uma chaga ainda aberta no tecido social brasileiro. E cantarolando...

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