sábado, 26 de agosto de 2017

crônica da semana - boiúna

Na boca da boiúna (crônica dedicada a Eduardo Costa)
“Lugar que tem pouco cachorro, desconfie.”
Tinha cinco cabeças de gado. Tirava leite bom todo dia. Enchia os baldes, transportava, reunia a família, fazia uma empreitada, distribuía o leite em garrafas de vidro de um litro, e depois deixava de casa em casa, na currutela próxima.
O rio corria lá embaixo. A margem era bordada de um capinzal alagado no baixio. Ao elevar-se um pouquinho, a beira era tomada por um emaranhado de raízes grossas e troncos retorcidos. Lá em cima, no plano, se erguia numa ponta de mata alta que tinha até uma castanheira resistente, solitária, mas vitoriosa. O caminho para o pequeno rancho era uma mistura de capoeira, pasto e uma mata rala nascendo. Não havia uma vareda bem definida, cuidada, limpa. Utilizava aquela área de beira-rio apenas como piseiro para os animais e para raros momentos de pescaria, portanto, qualquer trajeto, era trajeto, mesmo que se esgueirando entre os galhos, se abaixando sob troncos, deslizando em declive cheio de limo. Água boa para as coisas domésticas, apanhava de um poço, ao pegado da casa, que dava água o ano todo. Na época da seca, o custo era soltar a corda que o balde ia buscar água limpa e friínha lá embaixo, bem no olhinho do sol.
Quando deu pela falta de uma vaca, não disse nada.
O tempo foi passando. A lua cheia nascendo na planície alagada trazia a beleza colorida do horizonte para o alpendre. Entes e mundiamentos, trazia também.
A cada lua, um animal sumia. Até não restar mais nenhum. Ficou sem produção, sem jeito e dinheiro para conseguir outras leiteiras. Mas não disse nada.
Tinha uma criação coadjuvante pequena, mas diversa. Galinhas poedeiras, umas quantas cabras. Patos, picotas, marrecos. Alguns animais silvestres domesticados também incrementavam o plantel. Veado mateiro, uma preguiça sonolenta, uma penca de macacos excitados, jabutis, pacas e quatis. Um grupo de cachorros valentes guardava a criação e a casa.
O terreiro foi se esvaziando aos poucos.
E ele nada dizia.
Percebia uma mudança naquele largo que levava ao rio. Aos poucos, regos varridos, escavados, iam se formando. Eram bem lisinhos e mostravam certa ordem na direção. Saíam de vários pontos do capinzal, mas lá no alto convergiam no rumo único do pequeno rancho.
Quando não restou mais nenhum animal, nem de cria, nem silvestre, nem de leite, nem de couro, nem de pena, ele mandou a família para a casa de um tio, na baixada da Pedreira e mergulhou na solidão. Ficou só. Ele e os cachorros valentes.
Sobre as perdas, nada falou.
Não bastou ser valente. Na lua seguinte, nos seis dias de luz e colorido só restou um cachorro fazendo um arremedo de guarda.
Quando, no sétimo dia de lua, o último cachorro sumiu, ele refletiu nos dizeres do povo: “lugar que tem pouco cachorro, desconfie”. Desceu até a margem do rio e se deteve um pouco ante o capinzal alagado. Ouviu o silêncio da sucuri digerindo a última presa. Na outra margem o dia amanhecia cinza. Deu a volta subiu o barranco e, sem dizer nada, sumiu triste e derrotado ali pros lados da castanheira solitária.



domingo, 20 de agosto de 2017


Natureza morta. Fachada mais flores lilases.Madrid,2012

sábado, 19 de agosto de 2017

crônica da semana - segundona

Segundona
Não me tenham, como tantam por inteiro, apenas vou na leva. Na média. E é cada marmota que a gente arruma, nessa vida louca...
O que se deu foi que em pleno domingo véspera de feriadão, minha mulher se surpreendeu de me encontrar todo ajeitado no meu cantinho da cama, embrulhado só com o nariz de fora. Espantou-se com a minha determinação já que não iria acordar cedo no dia seguinte. Aliás, por causa do feriado imprensado, só voltaria a madrugar, na quarta-feira. Me toquei nas paradas e a única coisa que me ocorreu justificar foi que aquele é o meu costume, o meu jeito de ser meio doidinho.
E é de espantar por inteiro. No domingo, o custo é aparecer o letreiro do Faustão que já vou programando meu despertador, bebo aquele golinho de água, rezo o “com Deus me deito, com Deus me levanto” e vou me ajeitando pra dormir. E é tão centrada a intenção, que eu, que gosto pacas de futebol, às vezes nem vejo ‘o gols’ de tanta precisão que vejo em dormir cedo para acordar cedo. Diga se não é leseira por demais.
Esta minha determinação vem se construindo ao longo do domingo. Falo brincando, mas é sério. Domingo, depois de meio-dia, pra mim, já é segunda. Segundona cheia dos ais e uis.Tudo pode acontecer no domingo até a hora do almoço. Toco um pandeiro no samba, tomo uma gelada, passeio, bato o ponto na Banca dos Escritores Paraenses, na Praça da República, espaireço e libero o cocuruto de compromissos. Mas deu aquela horinha, o dia volteou ali pelas doze badaladas do sol a pino, vai dando aquele tóim óim óim na cabeça, e já que me avio nos termos. E de tal forma é, que, antes que a noite caia, o meu uniforme já está passado, meu par de meia separado, a mochila com minhas coisinhas pessoais arrumada. Só não calço a bota logo porque dou uma forra à comodidade, à confortabilidade.
Desde que tempo sou assim. Faz parte da minha carteira de responsabilidades este exagero. Sou meio aperreado nas amarrações de compromissos, mesmo sem pressão.
Nos tempos que trabalhava no mato, em Rondônia, no Xingu, por aí pelo ermo amazônico, armava acampamento nas mais altas lonjuras, pra lá donde o vento faz a curva. E mesmo distante dos centros administrativos das empresas, dos chefes e dos cartões de ponto, não dava mole. Sete horas já estava tomado café e de boroca no ombro, pronto para a lida. Por estar longe, fora de foco, com a equipe na mão, controlada, bem que poderia variar a jornada. Sair um pouquinho mais tarde, deixar a neblina sentar, tomar um café mais sossegado. Mas quite! Fazia questão de cumprir horário. E ia na frente. A galera atrás, emburrada, alguns ainda bocejando, outros terminando de mastigar as bolachinhas do café, os mais atrasadinhos, se equipando, ajeitando um lado do meião sobre a bainha da calça, dando uma correndinha para alcançar o grupo, ajeitando o outro lado...

O tempo passa, as urgências mudam, algumas seduções, permito que apareçam imperdíveis, irresistíveis, no domingo. Eu vou ficando mundiado, me arredando pra perto. De repente...Tóim óim óim. Não tem escapatória, domingo, pra mim, depois do meio dia, já é segunda, a segundona.

sábado, 12 de agosto de 2017

crônica da semana - 22 anos

22 anos e lá vai poeira
Na terça-feira próxima passada, inteirei 22 anos trabalhando na mesma empresa. Para mim, um fato extraordinário. Mas antes de ter este aspecto portentoso, na minha carreira de operário, cria um caráter subversivo na minha trajetória de cronista. Nunca na história desta coluna, falei deste trabalho do qual vivo os últimos 22 anos. Hoje vou falar.
E como sou um narrador dos pretéritos nem tão perfeitos, começo com o primeiro de agosto de 1995.
Foi um choque. Uma atividade completamente diferente daquela que eu desenvolvia até então. A mim me destroncou totalmente, o momento em que recebi uma pá, como instrumento de trabalho. Eu tinha mais de dez anos de formado como Técnico em Mineração e, até ali, a única ferramenta que conhecia era a lapiseira. Éraste, sofri que só com aquele choque de realidade. Chorava pelos cantos, meu corpo reagia mal àquela lida, àquele regime bruto que me fazia duvidar da mais remota possibilidade de vingar naquele serviço, um mês ao menos (que dirá, 22 anos). A barra pesou pacas pro meu lado.
Não desisti. Encarei a parada. Dei o valor exato àquele trabalho. Achei argumentos para torná-lo digno e importante para o processo em que eu militava e, ora, ora, para a minha sobrevivência.
A terça-feira próxima passada se deu em branco para muita gente. Não para mim. Volvi aos primeiros dias e catei uma razão para meus momentos de infortúnios. O motivo, talvez, viesse até mesmo daquele processo de formação na Escola Técnica que penso, sem maldade, nos incutiu este temperamento arrogante, ao sair para o mercado de trabalho. Não admitindo reveses. Na Escola a doutrina pregava a liderança, a chefia de grandes hordas de peões indisciplinados. O salário ali em cima, o status de ser um capataz melhorado, a soberba dos iludidos. A cartilha em que rezávamos não vislumbrava em momento algum, um cenário em que nós seríamos os peões. Daí o sacolejo que me tirou de órbita.
Mas não me arrependo, ao olhar para trás. A vida de operário me apresentou outros desafios rigorosíssimos (daqueles que deixavam o ato de empunhar uma pá, lá atrás em termos de tensão e inquietação). Aprendi o sentido de coletividade quando me envolvi no movimento sindical (ainda hoje, apesar da alteração na diastólica, não sei pensar só no meu umbigo. Tudo que diz respeito ao ambiente de trabalho, mesmo que me seja alheio, dou pitaco, faço zangas, contesto, apoio).
Meio sem jeito, um tanto bambo, com uma vergoinha besta, rogo o perdão dos meus leitores por desvelar essa passagem recôndita, escondidinha da minha vida profissional ativa. Não poderia deixar passar em branco esta data. E nem admitiria um silêncio sobre a minha alegria em ter conquistado 22 anos como operário. Sim, sou feliz por isso. A família, meus livros editados, alguns prazeres a que me dou o direito, uma ou outra ajuda a quem precisa, a minha cervejinha. Parte do que sou, os amigos que conquistei são produto daquele dia primeiro de agosto de 95, em que tomei como instrumento de trabalho uma pá e a transformei na mais lustrada, refinada e precisa lapiseira que arrisquei empunhar.


domingo, 6 de agosto de 2017

fotopintura


Baía de Guanabara em Paquetá - Natureza morta - Julho 2017

sábado, 5 de agosto de 2017

crônica da semana- sou dos becos

Sou dos becos, sou das bocas
Foi um tempo bom que não volta mais. Essa coisa de pobre andar pra cima e pra baixo de avião já que acaba. E nem é pelo preço das passagens. A baixa participação do nosso povo vai ser por causa do preço das bagagens. Agora, se a gente não cuidar, corre o risco de, só para despachar as tralhas, pagar quase o triplo do valor das passagens compradas naquela promoção pai d’égua.
É, vai pesar mesmo no orçamento... Como tínhamos uma promoção boa que nos franqueava a bagagem e nos levava por um preço bem em conta, escolhemos novamente o Rio de Janeiro como destino de férias. A paisagem, o traçado geomorfológico do Rio, é encanto comum. Todo mundo que visita a cidade, espera conhecer suas belezas naturais. Da minha parte, tinha uma motivação especial. Fui atrás dos becos, das bocas. E achei.
O que chamo de becos, ou bocas, porém, vai além das vielas perdidas e escuras. São as referências marginais, são formatos subversivos de arte, são resistências culturais. Algo diferente de ‘um cantinho, um violão’. Embora aprecie a dupla, estava mais para “barracão de zinco”, mais para “lata d’água na cabeça”. O meu norte era o samba, mas seguindo o som dos becos, apaniguei  a balada singela e até o Jazz.
O começo de tudo foi na Pedra do Sal. Um lugar de manutenção e realização da cultura afro-brasileira. Um espaço que agregou e congregou a religiosidade e a arte dos negros. Era o que eu estava procurando. De repente, estava pisando no mesmo chão que pisaram símbolos da nossa história como Pixinguinha, Donga, Heitor dos Prazeres. Um ambiente que reunia o negro vindo da ‘Costa’. E que, hoje, reflete a trajetória do samba sob as bênçãos de Tia Ciata.
Atualmente, há um esforço muito grande para sustentar aquele lugar como um local de culto à memória. A roda de samba que acontece ali, além de pôr a turma para cantar e dançar, além de reunir pensamentos comuns, também é um nicho de conscientização. E por isso sofre, como sofrem por este Brasil afora as manifestações populares, quaisquer que sejam, de rua. Uma semana antes da minha visita, a roda de samba não se realizou por causa da ameaça de ser empastelada pela Guarda Municipal.
O vento frio, o ar seco, cortante me levou a lugares aquecidos. Uma ponta prateada de lua me indicou o caminho e fui dar em uma reunião embebida pelos mais concentrados fluidos de liberdade. Uma rua, até um dia desses, abandonada, ao largo da praça Tiradentes e que hoje se move excitada respondendo aos estímulos vigorosos do Jazz.
Mais uma voltinha no vento, e o encontro com a palavra de esquina, plena,vulcânica. A Lapa, na praça Luana Muniz, se iguala em opulência à mais extraordinária feição geomorfológica da cidade. O Sarau do Escritório é uma grande planície florada, com campos densos, e aqui, ali, escaninhos reluzentes, misteriosos, donde surge um Chacal a uivar versos livres.
Nas ruas do Rio de janeiro, encontrei a música (algo diferente do cantinho e do violão), a poesia, o traço, a cor, a história, a memória, corações e afetos, valores e conteúdos que me ratificaram como sendo dos becos. E das bocas.