sábado, 28 de dezembro de 2019

crônica da semana - bota cor de gelo


Bota cor de gelo
Na minha cabeça, o leito acidentado da Marquês, os barrancos discretos que ladeavam a rua, o capinzal que num ponto ou noutro nos desviava para pequenas trilhas, as poças de água formadas por causa do peso dos caminhões de gás e de refrigerante que se arriscavam a atravessar o trecho, representavam o cenário para as fantasias. Eu calçava a minha bota cor de gelo e, fazendo a menção der ser o tenente Rip Masters, revivia as aventuras mais eletrizantes do seriado Rin tin tin, que passava na sessão vesperal.
Minha avó ficava piriricas da vida porque eu usava minha bota para essas brincadeiras de rua. Era a parte que me cabia, no final do ano, e de jeito e maneira tinha a finalidade de alimentar meus sonhos. Deveria servir unicamente como sapato de sair para as partes. Ir para a escola, para o arraial, um ou outro festejo de aniversário...
Vovó, que ficava com a gente enquanto mamãe trabalhava na panificadora Aveirense, já havia demonstrado descontentamento com a minha bota cor de gelo. Até com razão. Nossa rua não tinha asfalto e um calçado clarinho logo logo estaria impregnado do encardido da piçarra. Agora cabeça de menino lá pensa nisso! O vendedor mostrou alguns modelos, me agradei mesmo foi daquela bota com uma pequena fivela no dorso, que fazia um barulhinho metálico discreto quando eu andava. O encantamento maior, porém, veio pelo discernimento do vendedor que aliado a uma locução bem postada, transformava uma bota desenxavida de branca, em estilosa bota cor de gelo. Pirei naquela cor. Diferente de marrom ou vermelha, ou preta ou bege. Minha bota era de uma cor invulgar. Isso, por si, era fascinante. Um sonho. Minha avó, logo na primeira chance, espetaria: “ora, sonho; ora, cor de gelo”.
Os tempos eram difíceis. O numerário a mais de dezembro servia para prover o ano, do mais urgente para cada um. Uma roupa nova, sapatos, dinheiro para uma obturação no molar... tudo contadinho às precisões.
Era natural o conflito entre as minhas presepadas nas tardes mormacentas de Belém e as convicções da minha avó. Um embate entre a realidade e a fantasia. Vivia no mundo da lua, eu. Mas minha avó era centrada no carnê da sociedade e no contracheque de pensionista, a cada mês mais raquítico de poderes e possibilidades.
Hoje percebo que meu herói, o tenente Rip Masters representava um exército que explorava o trabalho infantil (o garoto Rusty), exterminava ou expulsava a população indígena do oeste americano. Inocente, achava aquilo bacana que só (os índios eram os malvados vilões).
Sei que minha avó não exigia de mim uma leitura crítica das informações que recebia na sessão da tarde. Tampouco questionava minha postura autoritária quando subia num monte de barro de construção, imaginando ser uma escarpa do Grand Canyon, e gritava com nossa cachorra Lolita, querendo porque querendo dela a destreza do Rin tin tin, e ela, nem seu Souza pra mim. Importava-se vovó, apenas com a certeza de eu ter o que calçar durante o ano que se iniciava. Daí, os ralhos por gastar minha bota cor de gelo em brincadeiras de caubói, nas tardes calorentas de Belém.
Dessas aventuras, desses conflitos, dessas contradições entre sonhos e fantasias, tirei o aprendizado de ter sempre algo para calçar a cada início de ano. Para ir às partes, ao arraial, a uma comemoração de aniversário. E reconsidero minhas antigas fascinações. Cor de gelo é uma cor que não existe.


sábado, 21 de dezembro de 2019

crônica da semana- o natal do seu sandoval


O Natal do Seu Sandoval
Vamos abrandar os espíritos no Natal. Ater-nos ao altruísmo, Quedar-nos às colaborações, largar-nos às ações comunitárias. Mas pelo amor do Jesus Cristinho que nasce e que já na manjedoura, atento a nós está. Nada de sair por aí jogando presentes dentro do rio para fazer as crianças, em mergulhos desesperados, alcançá-los antes que a correnteza os leve, para o finis terrae. Isso já é maldade.
Sugiro: se quiser fazer uma presença com a criançada ribeirinha, articule um contato com a comunidade, com a igreja do local, a escola, a sede social, enfim, procure uma forma de atingir as crianças coletivamente, com respeito e segurança. Procure realizar um evento, mesmo que rápido e discreto, e entregue o seu presente em mãos. Ponha-se téti a téti com as crianças. Dessa forma, além da oferta material, surgirá a oportunidade de oferecer afeto.
Já vi cenas de bondade tão distantes e higienizadas que se aproximaram da mais insidiosa maldade, e que resultaram na conquista dos presentes se dando a base de muitas e infantis braçadas contra a corrente.
É Natal, e, apesar do risco de sentimentos maquiados, não estamos nadando na fartura. Tenho que admitir o valor, por menor que seja, de um gesto concreto. Afinal, tudo está uma carestia só, o cumê diário está pela hora da morte. O que for feito para ajudar de vera, o outro, vá lá que seja, mesmo que realizado só por esses tempos movidos pelo espírito natalino, será de boa acolhida.
Mas criança, sabemos, quer mesmo é brinquedo.
Seu Sandoval entendia desse jeitinho mesmo. Tinha precisões enormes. Pai de quatro. Ganho pouco como empacotador de supermercado. Um pensamento na cabeça, naquela véspera de Natal.
Fazia parte de uma turma de novatos. Atuava na frente dos caixas dividindo o espaço com os boys (como se usava chamar os empacotadores dantes). Não tinha nem dois meses no emprego quando chegou o Natal.
Sabia que Seu Sandoval e outros que estavam chegando, faziam parte de um processo de substituição. Até aqueles dias, os empacotadores eram todos menores. Eu tinha meus doze, treze anos, por aí. Tínhamos carteira assinada, plaquinha de identificação no peito, batíamos cartão e usávamos a bata (vira e veste) azul da empresa. Com as pressões contra o trabalho infantil, aquele era nosso último Natal embalando as compras dos barões, faturando uma gorjeta, merendando pão com fiambre no estacionamento.
Seu Sandoval já contava uma certa idade. Percebia que fazia o mesmo esforço sobre humano que eu para acomodar os paneiros de compras nos carrinhos de entrega. Não corria da missão. Tufava a veia do pescoço, conseguia e com pouco mais voltava contando os trocados da gorjeta.
Naquela noite do dia 24, antes de fechar o supermercado, Seu Sandoval contou o apurado. Pegou uma cestinha e caminhou entre as gôndolas coletando o di cumê para a ceia. Eu fui atrás dele. Incentivei para que levasse também uns brinquedos para as crianças. Ele recontou o apurado. Não dava. Amofinou. Fui até a seção de brinquedos, com minha graninha das gorjetas e quedei-me ao altruísmo. Comprei presentes para mim (porque eu era criança e criança quer mesmo é de brinquedo) e mais quatro brinquedinhos para os filhos do meu colega de trabalho.
Lembro das lágrimas rolando dos olhos do Seu Sandoval, quando o relógio já beirava a meia-noite e a gente caminhava pela Almirante, na esperança de ainda pegar o cristo para a Pedreira. 

domingo, 15 de dezembro de 2019

                              cordilheira

crônica da semana- tua graça


Qual a tua graça?
Arrumava a quadra de vôlei bem confronte a minha sala. Eu me desconcentrava todo quando ela rodava e chegava na saída de rede.Vibrava nos relances que aquela visão mínima me proporcionava. Preparando o salto, ajustando a passada, elevando-se para a cortada. Não via o desfecho da jogada, mas se ela não saía do meu estreito campo de visão, era sucesso na certa. Um olho na aula da professora de Ciências, e o outro, mirando a fresta que capturava os lances do jogo de vôlei, na aula das meninas.
Era bem maior e mais robusta que a grande maioria de nós. Levava certa vantagem quando estava na rede. A imponência se realizava na harmonia perfeita entre o short vermelho e a camiseta com o emblema do Estado, que compunham o uniforme de Educação Física. Eu dava no ombro dela.
Certa vez, eu estava zanzando pelos corredores, sem aula porque o professor estava doente. Enquanto não batia a campa do próximo horário, fui apreciar o jogo das meninas. Ela estava lá.
Estudava à tarde. Era da oitava B. Tinha Educação Física às terças e Quintas, mas como esbanjava estilo e liderança, foi recrutada para auxiliar nos outros dias da semana. Antes das nove, armava a rede. Nessa aula vaga, nos topamos. Após umas das jogadas bem sucedidas, ela caminhou para fora da área demarcada com um fio, que definia a quadra de jogo, e me pediu água. Peguei meu caneco da merenda que tinha um azul já descolorindo, fui até a cantina e voltei devagarinho, me equilibrando para não derramar uma gota. Na pedida de tempo, ofereci-lhe a água. Ela bebeu em goles longos e atropelados pela pressa. Ao terminar, devolveu-me o caneco, agradeceu e perguntou qual era a minha graça. Sorri um riso nervoso, titubeei. Não respondi. Não sabia o que queria dizer aquilo. Qual era a minha graça? Que graça? A campa bateu, desviei o olhar para o corredor, buscando a minha sala e saí com mais de mil tentando formular uma resposta para aquela pergunta que um copo de água ensejou. Qual era a minha graça?
O professor sarou e só fui ter um tempo vago naquele horário, apenas lá pelo final do ano. E nem era tão livre assim. Estava no pendura. Em algumas matérias, precisava de oito, para passar. Qualquer tempinho era usado para rever o ponto da aula anterior, fazer cópias, responder questionários. Um lugarzinho na biblioteca para estudos extras, era disputado. Eu tinha que estar sempre na biqueira. Sempre na vez. Já havia repetido a sexta, se fico de segunda época de novo, mamãe ia ralhar de não parar mais. Postava-me, ainda, na bicora daqueles meninos que sabiam mais, das meninas que tinham um caderno completinho com a matéria. O tempo deles era o meu tempo. Ficava só na fresta, esperando o time dela recuperar a vantagem e fazer o rodízio.
Na minha sala tinha uma menina que se chamava Enedina. Considerava este nome por demais diferente. A curiosidade pelo nome nos aproximou, partilhávamos preocupações com as matérias e com outras coisas da vida. Era amiga da garota do vôlei. Fez o meio campo. Conseguiu um encontro depois da minha aula de Educação Física, de tarde. Naquele dia descobri que era um moleque que vivia das brincadeiras de rua, dava meu reino por um jogo de bola e não sabia nem beijar. Ela relevou. Me deu uma chance. Nos encontraríamos na tertúlia do Bosque, no próximo domingo.
Eu falei que ia pedir pra mamãe. Ela disse “tá, vou esperar”. E completou: “ah, minha graça é Irene”.

sábado, 7 de dezembro de 2019

crônica da semana - éramos seis


Maria José (Avenida Angélica)
O sobrenome é Dupré. Mas reduzo o nome, desde quando li “Éramos Seis”, na publicação da editora Ática de 1975. Tenho receio de cometer uma gafe. Não sei ao certo a pronúncia para “Dupré”. Vai que é francês.
Importa, no entanto, expressar o quanto este Romance me bate, revira e mexe.
Em tudo em quanto. No alinhavo histórico (corta algumas fases da trajetória da sociedade brasileira), na exposição de cenários urbanos lá dos primórdios da expansão das cidades. Na fala e na postura das pessoas. No figurino, nas linhas de bonde e no desenho dos poucos automóveis.
Toda a ambientação do Romance é dinâmica: obedece a passagem do tempo. É efervescente: notifica movimentos das organizações sociais, como as ações feministas e as manifestações anarquistas.
E a narrativa me cativa mais ainda quando focaliza lá dentro da família de Júlio e Lola.
Esta semana, fui às lágrimas com a morte de Júlio.
Tinha uma atenção especial com o personagem. A mim ele me vem como retrato de tantos pais que conheci. Aquele pai tradicional que bota o cumê em casa, exige respeito e silêncio na hora das refeições, tem sonhos de montar um negociozinho, casa própria. Aquele pai que vi em algumas dimensões, lá pelos idos de 1970. Que era severo e sisudo no trato com a família, mas um pândego desregrado, nos ‘serões’ que fazia à beira da piscina da Palhoça, aquele refúgio pra lá de avançadinho, que reinava em seduções, e que ficava lá pras bandas da Tavares Bastos. Aquele pai que, embora de maneiras e costumes humildes, se esforçava para estar sempre alinhado em boas peças de linho, de tergal e um lenço perfumado no bolso da camisa. Um pai que entendo. Não julgo nem discrimino. Um homem no seu tempo. Que tinha muitos filhos, fazia o tipo sério de seu fulano pra cá, seu fulano pra lá; cuidava para que nada faltasse à família, mesmo trabalhando em ofícios de pouca renda. Um pai distante dos filhos em idéias, diálogos e afetos. Amigo respeitoso da esposa. E que esperava dias melhores que nunca vinham. Porque morria antes de úlcera.
Meu pai morreu também com um dodói no estômago.
Outras adaptações foram exibidas na TV. Não tomei conhecimento dessas edições. Falta de oportunidade. Desta vez, calhou de passar exatamente no horário em que atravesso a baía. Vejo as cenas na tela. Não dá pra ouvir por causa dos barulhos ambientes. Mas reflito sobre estes sonhos cultivados, o planejamento do futuro, a casa, o comerciozinho, a escola dos filhos. Horizontes acalentados que desaparecem de repente, como foi no caso de Júlio e de tantos outros papais que conheci.
A vida e o Romance seguem, agora com Lola tomando pé. Assumindo a família. E de novo, um contexto refletindo as inúmeras famílias que conheço. Comandadas por mulheres.
Meu pai morreu alagado pela hemoptise e mamãe, sozinha, sem eira nem beira, nos criou vivendo da marretagem. Vendia até as amostras grátis dos perfumes, se isso, ao freguês, lhe aprouvesse. Como na família fatiada pela perda do pai, em “Éramos Seis”, na minha, também havia a tia rica, incertezas e o milagre da vida se realizando a cada nascer do sol.
Pesquisei. Diz-se como se escreve. “Dupré”. Oxítona e com o /e/ aberto. Uma escritora premiada, de texto apurado, um tanto esquecida (que bom que a novela a trouxe de volta) que emociona e me fez, na primeira visita a São Paulo, fazer de um tudo para conhecer a Avenida Angélica.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Cr^nica da semana- a grande perca


A grande perca (vai um cafèzinho aí?)
Nos meus tempos de estudante, participei de um projeto em Barcarena chamado “Revisão Solidária”. A idéia era juntar estudantes universitários em jornadas de apoio aos alunos da rede pública que se preparavam para o vestibular. Cada um doava um pouco de si ao projeto. Com as bases do meu curso de Geologia, podia contribuir em Matemática, Geografia, um pouquinho de Ecologia... Mas, como na época já tinha a coluna no jornal, a coordenação sempre me escalava para os horários de Literatura e Língua Portuguesa. Tenho plena certeza que era deslocado, também, porque tínhamos uma galera feríssima nas outras áreas do conhecimento, e, penso que antes bem mais que hoje, ansiosa por partilhar saberes.
Fazia das minhas. Costumava valorizar a leitura. Levava textos para as aulas, líamos em voz alta. Interpretávamos. Deixava como dever de casa, uma redação. E porque sou gramatiqueiro, muitas vezes tratava das formalidades da Língua. Mostrava o jeito de usar as ferramentas da gramática, para construir meus textos. Inventei o sacolão. Fazia menção, descia das costas o sacolão pesado e revelava que ali, estavam os elementos que organizariam minha escrita. E de lá eu tirava os tijolos etimológicos, sintáticos, as análises, as constituições frasais simples, os apoios semânticos.
Citava os gregos como fabricantes daquele sacolão. Como intuíram um grupo de palavras para dar nomes às coisas. Os substantivos. E depois de as coisas nomeadas e identificadas, para que não fossem, umas iguais às outras, criaram os adjetivos. E quantas eram? Para contá-las, os gregos criaram os numerais. Quando quiseram dar movimento, dar vida aos seres e às coisas, o gregos criaram os verbos. E as partes do discurso iam saindo do sacolão, compondo pensamentos, estabelecendo a compreensão.
Foi um período interessante. Muito produtivo. Já desconfiava, mas nesse tempo, me certifiquei da dificuldade enorme que os estudantes têm na leitura. Quando, no início das aulas, lemos pela primeira vez juntos, quase tive uma síncope. Por outro lado, quando fizemos a última leitura do ano, uma lágrima de felicidade brotou dos meus olhos. Tinha conquistado uma vitória.
E são as vitórias miúdas que me levam a relatar o caso do sacolão. Porque em outra ocasião, quando da minha primeira vez na Universidade, fazia o curso de Geografia e meu professor de Português era o Pedrinho. Já maduro, magrinho, delicado no falar e no andar. Gramatiqueiro. Marcou minha trajetória, me apresentando o acento grave nas sílabas subtônicas (que já havia caído no Acordo ortográfico de 1971). Avalie só hoje a gente parando esta prosa para tomar um cafèzinho. No entanto, o que ficou mesmo no cocuruto foi a aula sobre as formas nominais dos verbos.
Os verbos são palavras retiradas do sacolão que indicam ação, estado ou fenômeno da natureza (ah, os gregos!). Quando não estão inseridos neste cenário, não são verbos. Assumem o papel de outro elemento do sacolão.
Pirei o cabeção com aquela aula do Pedrinho. Arrumei vários macetes para entender melhor aquele tema. Um deles é procurar sempre conjugar a forma ‘verbal’. Por exemplo, articular o verbo ‘perder’ na base do eu, tu ele, nós, vós, eles.
São essas pequenas reflexões, e essas buscas no sacolão da memória, que me fazem crer que não seria grande perda de tempo, uma parada para o cafèzinho.

sábado, 23 de novembro de 2019

crônica da semana - dois pierre


Dois Pierre (A Terra não é plana)
Eu sou do tempo do Francês nas escolas públicas. Tenho dúvida se foi na quinta ou na sexta série que estudamos a língua de Voltaire. Certo estou que foi por aqueles idos cheios de ideais (sufocados) de liberdade, igualdade e fraternidade, dos anos 70. O livro de apoio era o emblemático “Le Français Par L’Image”, de Irma Aragonês Forjaz, e só pelo nome da autora potencializava o conteúdo em doirada élégance.
O formato do livro era com base nas ilustrações. Pequenas historinhas cotidianas eram desenhadas em quadros coloridos e traziam a legenda explicando a ação. Um enredo era montado com elementos comuns aos nossos dias e acabávamos decorando a sequência da lição. Na aula seguinte, o professor usava uma tela de papel que cobria a legenda, ficando à mostra somente a imagem. O exercício consistia em reproduzirmos em francês, as cenas, oralmente ou escrevendo numa folha de papel almaço. Sei umas lições até hoje. “Pierre, où vas-tu maitenant?”... “Je vais rentre à la maison”...“où est ta maison?”... “ Regarde em bas, la maison jaune”.
Tirando aí a distância de mais de quarenta anos, acho que ainda fecharia um cinquinho numa prova com telinha encobrindo as legendas.
Convivemos juntos um período, eu e o Pierre das lições, pelejando para um não machucar o outro, atentos aos esforços do professor para que se articulasse as palavras fazendo biquinho com os beiços em frases universais, poderosas. “Amour toujours amour”. Oui, oui, monsier.
Depois, das séries seguintes, e me parece que para sempre, dos curriculos escolares, o Francês desapareceu. Quando dei fé, já eram dois Pierre. Os encontrei, anos mais tarde, não como personagens de uma lição por imagem, mas explicando formas e resultantes matemáticas do círculo.
Dois Pierre compõem uma dedução matemática, das mais elegantes. No frigir dos ovos, a gente até se familiariza com a fórmula, nem que seja na base do decoreba. Trata-se do cálculo do perímetro de um círculo.
É um enredo geométrico usado para tanta coisa, mas para tanta coisa, que passaria dias listando os efeitos que uma continha envolvendo o círculo faz na vida dos seres animados, dos nem tanto e na natureza das coisas, do tempo e do espaço. E por falar em imensidões, o número essencial para o cálculo da área do círculo, é o número Pi. Surgiu da iluminação intelectual dos gregos, e ao passar dos anos foi ganhando fama como uma constante misteriosa. Muitos ainda tentam achar o seu valor completo. O Pi já chegou a ser o número três seguido por 31.811 casas decimais. Mas não é só isso. Hoje, cientistas usando computadores monstruosos ainda perseguem a totalidade de casas decimais do Pi. (Dizque já bateu em cinco bilhões de casas decimais. Já pensou?)
Voltemos ao francês. Encontrei Pierre duplicado, muito tempo depois, nesses calculinhos. A fórmula para achar o comprimento de uma circunferência é dois Pi r, Uma continha matemática que permite até fazer biquinho no beiço lembrando as aulas de Francês e os desencantos dos anos de chumbo. Oui, oui. “Pierre, où vas-tu maitenant?”
Se alguém acredita que a Terra é plana, não vai a lugar nenhum. Pierre atua em todos os cálculos de navegação. Localiza e orienta aviões, navios, e pra onde aponta o nariz. Define curvaturas. Aliás, não vai cavar nem um poço Amazonas no fundo de casa.

sábado, 16 de novembro de 2019

crônica da semana- janelas abertas


Janelas abertas
Eu quereria uma vez na vida ter engrossado as massas, fermentado o pão, multiplicado a comida, saciado de vinho e de vida os mais insanos instantes. Desmedido medidas frias, contornos vis, alinhamentos fatídicos, entalhes fatais.
(Porque a maior frustração da humanidade é conjugar os verbos no futuro do pretérito).
Preferiria que meu sonho fosse pequeno, mas verdadeiro, e a baixada alagada se elevasse em Éden florido, com praças e crianças coloridas a passear ao sol frio de domingo, assistidas por dóceis quadrúpedes e alguns amistosos monstros voadores. Apreciaria as famílias, folgando com os bichinhos de estimação, caminhando ao largo do lago verde de visgos e musgos, e trocando fartos sorrisos aporcelanados . E ainda, misturando cumprimentos e boas intenções. Olás generosos, tudo bens obsequiosos, bons dias assertivos, com licenças e desculpas reparadoras. Obrigados e graças edificantes.
Preferiria não chorar.
Mas chorei ao ler a carta de um artista, que para mim, é uma das maiores revelações da música brasileira, em que ele diz sentir a sua luz se apagar.
Ah, eu estenderia minha malha de soluções, minha esteira de fé, um traçado otimista em caminho tortuoso, para o artista, porque o tenho e o quero vivo e encantando, não fosse também a minha apatia me prender ao chão da desesperança.
Quanta frustração nos vens e vãos da humanidade!
Então, eu deixaria as janelas abertas esperando novos tempos. Sem resistência. Em silêncio, assimilando apenas o silvo acanhado dos ventos puros, captando gemidos vindos de alto mar, sendo bombardeada de santos cuidados, de castos interesses, de sagrados golpes. De joelhos, aplicaria a lei da insignificância, da entrega total. Capitularia.
Deixaria que entrassem pela minha garganta, atrasos e efemeridades. Desgostos e enfermidades. Água em ebulição. Vozes afogadas. Aceitaria engolir o choro até meus olhos se avermelharem e explodirem.
(Porque a grande mágoa, o crasso insucesso da humanidade é conjugar os verbos no futuro do pretérito).
Então eu, por mim, abriria as janelas. Acordaria e resistiria.
Contradiria a regra. Faria o termo certo e justo acontecer. Em linha reta. Sem argumentos falsos ou promessas ornadas de doces venenos.
Os verbos seriam livres e bailariam no tempo, para frente e para trás. Em ações, estados e fenômenos da natureza. Sem conjugação, e sem modos que os moldassem.
Mas o artista quer se apagar. E eu à beira do abismo, em tempo de despencar, rogo por uma força que não sei nem se tenho dentro de mim. Junto meus cacos. Redesenho minhas virtudes. Saio pelas janelas abertas e pairo triunfante sobre as bestialidades e também sobre os exércitos em marcha. E de lá de longe, sopro os narizes dos homens. Das cinzas vem o grito:
Ei, artista, não caia. Não cale. Toque seu violão. Estremeça céus e terras com acordes singulares, ilegais e irresistíveis.
Quereria tanto que de outra forma fosse.
Mas os verbos, as frustrações as humanidades. Tão sem tempo e sem modos.
Preferiria não chorar.
Mas chorei. E meus olhos cresceram e saltaram do rosto, vermelhos mais que o fogo, estúpidos, mais que mísseis de mil megatons, faiscantes como os vulcões do Éden Jurássico. E meus olhos se lançaram para o espaço, para além das janelas abertas do céu. Lá, o mais distante da humanidade, não chorei mais. Cantarolei trechos das músicas do artista, sonhei um sonho pequeno. E explodi.

domingo, 10 de novembro de 2019

sábado, 9 de novembro de 2019

crônica da semana - cinema novo


O velho cinema
Cinema para mim foi e sempre será o Paraíso.
Antes, devo fazer justiça e citar umas exibições de rua que aconteciam em frente à taberna do seu Paulo, na Marquês. Não sei ao certo, quem promovia as sessões. Armavam uma tela grande de tecido branco, montavam o projetor, a vizinhança providenciava as cadeiras, o filme era de caubói. A molecada, eu incluso, pirilampava ao largo e nos divertíamos a valer naquelas noites. Não foram muitas as sessões, mas pela iniciativa e pela novidade que era aquela movimentação, na Marquês de Herval da minha infância, ficaram gravadas em cinemascope na memória.
O Paraíso veio mais além, quando eu já ia sozinho para as partes e isso incluía as matinês (que eram à tarde) no cinema. As mais distantes lembranças datam de meados da década de 70. Ainda vigiam as fitas de bangue-bangue, só que os filmes de karatê começavam a dar seus traços e os de Kung fu, iniciavam um arrebatamento, estimulavam arremedos saltitantes e audaciosos volteios no ar, em moleques mais afoitos da minha patota.
Foi uma época que, diria eu, ser de maior democratização do cinema, em nossa cidade. Só na Pedro Miranda, contávamos com duas grandes salas. O Paraíso e o Cine Vitória. Eram fartos os oferecimentos de cinemas também no largo de Nazaré. Ao pegado um no outro, tínhamos o Iracema, o Nazaré e o Ópera. Atravessando a praça, encontrávamos o cinema Moderno. E dava pra gente ir. Não era divertimento só de ricaço não. O período mais pródigo foi quando instituíram a “meia da meia”. Estudante que entrasse antes das três da tarde, pagava um quarto do valor do ingresso. Aí, gente do bem, só dava eu.
Virei fanxão do Paraíso. Porque era mais perto da minha casa. Fazia daquele cinema, quase na esquina da Mauriti, o meu éden.
Tive uma primeira fase. De filmes de aventura. Úrsula Andrews e Bruce Lee, na matinê. Minava a molecada na fila. Parecia periquito na comidia.Todo mundo querendo entrar de uma vez. Havia uma porteira que ficou famosa pela falta de paciência. Enfezada, apanhava no jardim um galho linheiro e saía lambando moleque. Um instante que a fila se ajeitava. Na época, o programa era de duas sessões. Eu ficava pra ver as duas. A primeira para ler as legendas. A segunda para ver as cenas. Quando a gente saía, já anoitecendo, era a maior algazarra.
Tempos depois, morando na Mauriti, virei um ‘amigo do Paraíso’. Cheguei a trabalhar lá. Varria o salão (que era grande pacas), arrumava o jardim, apanhava as latas de filmes na distribuidora. Em algumas e inesquecíveis vezes, auxiliava na sala de projeção. Pegava uma ponta, mas o que me valia era entrar na boa para assistir às sessões noturnas. Sônia Braga, Vera Fischer, Nei Latorraca, Paulo César Pereio. Fiquei até amigo da tia da roleta.
Eu era vicici no cinema do meu bairro. Depois que os cinemas foram desativados, ganharam funções transcendentais, amofinei.
Desanimei de tal forma que, mesmo amante da telona que sou, abandonei as salas. Nunca fui a cinema de shopping. Outras alternativas da cidade em salas de instituições públicas são concorridas demais, e eu não tenho mais idade pra estar sendo lambado na fila. Meu bairro desfocou em uma velocidade maior que 24 quadros por segundo. A serpente que tentava Eva nas paredes do Paraíso, mimetizou-se em rolos de 35mm e atravessa a eternidade enroladinha em latas de filmes abandonadas nas minhas lembranças.




sábado, 2 de novembro de 2019

crônica da semana - cipó de fogo


Cipó de fogo e palmito
A floresta provê remediações para os aperreios, conforto para a rotina, felicidade ao amanhecer. Prazer ao pôr do sol.
Menos para mim, pensei desolado, um dia.
Eu me considerava um sujeito urbano. Sem o menor traquejo para a sobrevivência em ambiente natural. Se não tivesse um chuveiro, já chiava.
Ironicamente, parte da minha vida, foi me virando com as naturalidades, com as dádivas da floresta.
Tenho então, que remendiar o trecho aí de cima. Não que os benefícios da natureza me tivessem sido negados. A questão é mais profunda. Passa pela identificação. Contorna a história, os saberes. As interações e as necessidades.
Passei poucas e boas, no tempo em que vivia enfiado na mata, nas lidas da profissão. As dificuldades, porém, eram minhas. Não se estendiam às pessoas que estavam comigo e nem se justificavam pelo ambiente.
A minha valência foi que, na maioria do tempo, me cerquei de conhecedores. Habitantes das beiradas. Sacerdotes dos conformes e também das estranhezas.
Estas interações me proporcionaram uma aproximação. Uma certa intimidade com os encantos dos ermos.
Tirando pelo início, se me adiantasse numa picada e perdesse o rumo, podia contar que eu não daria conta de varar. Padeceria de fome, de medo e de sede.
Com o tempo tornei. Conheci o cipó de fogo e o palmito.
Tem macete para tirar água do cipó. Não é de qualquer jeito. Como me ensinaram de graça, passo aqui, porque, vai que calhe de alguma precisão.
Há de se fazer dois cortes e sacar um segmento do cipó. Uma pequena tora. O corte tem que ser enviesado. Deste pedaço, se extrai a água para um recipiente ou a gente ergue sobre a cabeça e bebe direto. Da parte que ficou na árvore, não sai uma gota de água. Só sai assim, em tora. Se precisar de mais, basta cortar outro segmento. Pronto. De sede, já não se padece. Ah, convém ter um terçado de fio bom.
Para superar a fome, tem o palmito.
Comi palmito de todas as palmeiras que encontrei. Até daquela desacreditada, com jeito de pouco amiga, cheia de espinhos. Em alguns casos e nos extremo de broca asseverada, até o terçado é dispensado. A gente pode descascar o caule da palmeira até com os dentes (não, não daquela epinhenta). Lá dentro tem uma polpa nutritiva, hidratada que vai nos segurar saciados por um bom tempo.
Eu já me perdi na mata e me vali de água de cipó e palmito. Garanti energia e sustância. Caminhei um bom tempo, mantive a lucidez e varei. Sem medo.
Mas a questão é mais profunda. Implica interpretar os sinais. Limitar os impulsos. Custei que só para me entender com a floresta. Reconhecer as entidades, respeitar os elementais. Reverenciar a sereia, dita Iara. O Mapinguari de pé pra trás. O Curupira justiceiro de caçador. A Cobra Grande cheia de paixões submersas. A fertilidade de Mani. A sedução do boto.
Custei para entender que a água encanada, vale um isso de nadinha perto de um mergulho numa lagoa do Xingu. E que o palmito que vem na salada, servida naquele restaurante que tem até reclame na televisão, nem dá a sustância que dá aquele âmago da palmeira espinhenta.
Porque à floresta não cabe prover dinheiro, lucro, fama, rótulos nem os letreiros da TV. A floresta, generosamente, provê remediações para os aperreios, conforto para a rotina, felicidade ao amanhecer. Prazer ao pôr do sol.
E nos alivia da fome, da sede e desses medos e assombros que enfrentamos embaixo do chuveiro.





domingo, 27 de outubro de 2019

crônica da semana - caçadores coletores


O alvorecer da humanidade
Morei em Macapá no início dos anos 90. O Amapá, naquele tempo, contava com pouco mais de 300 mil habitantes, isso na imensidão que se estende do Laranjal do Jari ao Oiapoque e da ilha Mexiana ao parque do Tumucumaque.
Macapá, eu comparava a um bairro de Belém. Quase uma sucursal da Pedreira. Vez em vez, encontrava um rosto conhecido, uma turma de artistas arribada, parentes, aderentes, e chegados dando bobeira no ir e vir da avenida Fab.
Era uma cidade pequena, entretanto, um campo aberto, amplo, rarefeito de tensões, de ocultas ou sutis intenções. Uma imensidão de oportunidades.
Dentre as belezas do meio do mundo, a mim, me marcou muito a orla de Macapá. Uma faixa estreita ainda. Ia da praça Zaguri, até a fortaleza. Dali não se varava. A rua acabava e a outra ponta, onde se localiza a praia do Araxá, se alcançava avançando por dentro da cidade. Para mim era o paraíso, a orla. Vivia o prazer incomparável de estar à beira do Amazonas. Sentir o fortíssimo maral riscando o rosto da gente, no final da tarde e até arrastando para longe a cobertura das barraquinhas da calçada. As ondas vibrando aos pés da estátua de São José e a lua nascendo dentro d’água. Maior, mais colorida e mais bonita lua que eu vi na vida.
Pelo que eu batia e virava, ali na beira, apenas uma peixaria encontrei, naquela época. Nem era na beira. Era pelos escaninhos do Perpétuo Socorro, nos arredores do igarapé das Mulheres. Um lugar modesto. Acanhado. Simplesinho, mas asseado, bem arrumadinho. Só ia lá quem já conhecia, quem tinha a indicação abalizada, e a localização bem explicadinha, fornecida por um freguês antigo. Era discreto. E de uma fineza. De uma qualidade. A especialidade era o famoso camarão no bafo. De tirar o chapéu! Depois que achei o lugar. Não desatei daquele escondidinho.
Saí de Macapá e parei em outras plagas. Passou, passou, o mundo girou, e eis que anos depois, voltei lá. Foi em 2005. Nada, nada, mais de dez anos depois. Participei, representando a minha categoria profissional, de evento sobre os 50 anos de Mineração na Amazônia. Só gente aquilatada. Pesquisadores, doutores na área do desenvolvimento, renomados nomes da Geografia, da Geologia. Jornalistas especializados no tema, sindicalistas. Um povo antenado.
Dez anos depois, a cidade era outra. Não mais reconhecia as ligações, o recantos, os escondidos, o caminho para a lagoa do índio. Tudo mudado. Inclusive a orla, que agora emendava a Zaguri com o Araxá, por uma grande avenida. Uma Beira-Rio minada, agora, de restaurantes e peixarias requintadas.
No programa do evento, havia um almoço numa das peixarias mais famosas.
Naquela reunião de personalidades refinadas, percebi o instinto de posse do ser humano, de conquista, de garantia de comida e espaço. Na hora do almoço, me reconheci no alvorecer da humanidade. Um discreto empurra-empurra científico, um chega-pra-lá acadêmico sem intenção, um olhar corporativo de intimidação eram sinais dos primórdios. À mesa, Peixe de tudo quanto é jeito. Frito, ao molho de cupuaçu, na brasa, ao molho de maracujá, moqueca de Gurijuba...Mas a grande disputa, creiam, era pelo ovo submerso na caldeirada. Naquele alvorecer da humanidade, eu e todas aquelas pessoas de alto gabarito, nos comparávamos aos caçadores-coletores fascinados, lutando para pescar com a concha, aquele misterioso ovo monolítico cozido, mergulhado na caldeirada de Filhote.



sábado, 19 de outubro de 2019

                              Encontro marcado

crônica da semana - manquitolando


Da andiroba à maniçoba
Verbo mais encharcado de estranhezas que acho na língua é “manquitolar”. Em tudo estabanado. Meio troncho, todo penso. Pelo comum, não aprecio. Mas dependendo do caso e do raso, cabe numa crônica que é uma maravilha.
Neste Círio, virei e mexi pelas ruas de Belém, manquitolando.
Deixo escapar. Sou da antiga. Gosto mesmo é da nossa versão acabucada para o termo. Aprecio explorar o verbo “caxingar”. Dizia-se outrora, que fulano andava caxingando porque rasgou o pé num estrepe.
O que torna é que vou dar um desconto. Em favor da boa prosa, jogo a toalha e assumo o ‘manquitolar’ na paz, em que pese este peso prum lado que esta palavra tem.
Pois estava eu bem de flozô, caminhando pela Avenida Nazaré, bem antes da descida de nossa Santinha, da romaria Fluvial. Folgo em fazer aquele trajeto. O trânsito, na hora, é fechado e a avenida se mostra acolhedora, amiga. Ganho o rumo da praça da República, admirando  os arranjos, as artes na frente das casas e dos prédios, com motivos homenageando Nossa Senhora. Paro na frente da sede do Bicola. Bato retratos, elogio o painel, as representações. E, de longe, os troféus. Lá atrás já havia me detido um pouco e me encantado com a galera do Mojuvena (não sei se ainda é este o nome do grupo de jovens do Nazaré, no meu tempo era. E como agora, no meu tempo, tocavam bem pra caramba. Eram competidores fortíssimos no Festival da Escola Salesiana, naqueles distantes anos oitenta). A música da moçada tomava conta da rua, de fora-a-fora. Quando tocaram o Padre Zezinho, pirei em lembranças. Foi nessa hora, ante os maristas, que meu joelho magoou. Estava sentado, no meio fio, apreciando o grupo. Quando levantei, chega vi estrelas.
Há anos faço este roteiro. Passo a vista pela Nazaré, recebo a Santa à altura do Palácio do Rádio, e depois, ainda com os olhos marejados de emoção, sigo cortando caminho pelo centro, para esperar o Arrastão do Pavulagem lá na praça do Carmo.
Fui o único da família, a ir patetar lá pras bandas da Cidade Velha. Este ano, o Pavulagem não foi para o Carmo. Recebeu a Santa, e fez um mini-arrastão ali mesmo pela praça dos Estivadores. E eu, olha, cheirei na vara do batista.
Fui me batendo com este joelho latejando desde lá do Marista. Varei o Centro caxingando. Se não sou rapaz, tinha ido mesmo bestar lá no Carmo. Em tempo cismei.
Antes de embicar para a Cidade Velha, sempre faço umas fotos dos barcos atracados na doca do Piry. Admiro o enfeites, o brilho e a animação da moçada a bordo. Dou aquele tempo no calçadão e procuro o Arrastão pelo estirão da Boulevard.
Maldei. Embora muita gente caminhasse de lá daquelas bandas, não vi a movimentação coreográfica característica do boi.
Caxingando, desci até o mercado e procurei o tradicional banho de cheiro. Mas quando! Assuntei para uma vendedora que, num carrinho, me oferecia três geladas por dez dinheiros. Não passou e nem vai passar, o show vai ser lá mesmo em frente à sede deles, informou-me, deixando escapar um ar de descontentamento. Tentando aliviar a insatisfação dela, comprei as cervejas da promoção e me saí, manquitolando, com o tento de cumprir a desobriga do ano.
Deu-se o combinado. Recebi a bênção da Santinha, na descida da Fluvial e rumei atrás do boi. Errei o caminho. Par’oano, me informo melhor. Dia seguinte, arriei. O joelho por acolá de inchado. No domingo do Círio, aviei-me mais da andiroba que da maniçoba.

domingo, 13 de outubro de 2019

crônica da semana - trovinha círio


Trovinha
Só faltaram catorze anos para eu me formar de turismólogo. Mas se alguma coisa apitasse nesta área, não abonaria de jeito e maneira esta presepada de a gente ser o exótico, o inesperado. É como se uma cultura pudesse ser normativa, estável. E todas as outras fossem pontos fora da curva. Um ponto, diga-se, que possa ser ajustado. Reordenado no zero da função...
Aconteceu há alguns anos. Eu era dirigente sindical. Em outubro vivíamos o pico das tensões para a negociação de nosso Acordo Coletivo.
O grupo empresarial com o qual nos batíamos, lançou mão de uma estratégia de desmobilização. No calor do puxa-encolhe e das intransigências negociais, operou a concessão imediata de um agrado para o Círio. Ofertou um peru para cada peão da categoria. No meio daquela muvuca de reuniões, de assembléias e deliberações, fomos surpreendidos com este bônus.
Olha que fiquei piriricas da vida. Não pela trairagem, que isso é tática dos contendores. Jogam com o que têm. E sim, com a total falta de respeito com nossa cultura. É sabido, que temperado bem temperadinho no jambu, quem é servido no domingo da romaria como prato típico do Círio é o pato. O delicioso pato no tucupi. E não o peru.
Não sei de onde tiraram essa marmota. Mais que depressa distribuíram o peru, armaram a cena, classificaram aquela oferenda como um passo determinante para que a categoria aceitasse os termos defendidos por eles na negociação. Eu mesmo peguei a parte que me coube naquela latomia. Um teba congelado que ia além de quatro quilos e que ainda vinha com um pininho que anunciava estar o assado no ponto.
Magoou. O peru fez efeito contrário. Articulou o desarticulado e balançou o ânimo dos trabalhadores. Obstinados que éramos, não largamos da luta. Nada estava terminado. Tiramos distância e nos pegamos com a Santinha. Precisávamos de força naquela hora. Urgia revidar àquele ataque desleal a grugulejar em nosso tino.
Era redator dos informativos do sindicato. Na sequência, busquei inspiração na mãe dadivosa e fiz um manifesto para os trabalhadores, realçando o sabor das intenções que recheavam aquele peru; e traduzindo aquela ação como uma forma de pagarmos o pato pelos evidentes riscos de perdas salariais. Ano difícil. Marcado pela reestruturação produtiva e modificações drásticas nas relações capital x trabalho. Carecíamos de muitas bênçãos.
Adiante, no mesmo informativo, teci um arrazoado antropológico em defesa das nossas raízes culturais, que no frigir dos ovos, queria dizer à bancada da patronal, que não, não era peru, o tradicional prato do Círio. Era pato. Pato no tucupi.
Claro ficou que os representantes dos empresários, sendo de fora, não atinaram para o desastre que provocaram. Entendemos aquilo como uma interferência colonialista nos nossos costumes. Um vilipêndio a uma regra culinária, quase sagrada, que vem se repetindo há gerações. Nossa fé moveu a montanha.
Endurecemos a parada e fomos bater na mediação, algumas semanas depois. Lembro que em um dos trechos da nossa tese, citávamos a gafe antropológica. O mediador aceitou o Acordo Coletivo com os termos a nosso favor, não sei se sensibilizado pela defesa que fizemos da nossa mais famosa iguaria, se iluminado por alguma luz divina ou se embasado nas jurisprudências. Assinado o acordo a vida dos operários voltou aos termos.
Ah, o peru. Congelado estava, congelado ficou. Sendo que, do Natal não passou.

sábado, 5 de outubro de 2019

crônica da semana - sabiá


Sabiá
Ouvi dizer que partiste. Foste defender a tua história em outras trincheiras. Levaste as crias. Teu talento. Planos recentes. Uma quebra na dorsal imersa da humanidade mais pura te separou do teu canto. Amores e afeições de um lado; desafios e luta pela sobrevivência de outro. Recomeço. Gente outra, frio e sotaque assim de estranhezas. Em outras terras, escreves em paraensês a crônica da resistência.
Plataforma de estação, medo de avião não te aviaram o gosto pela despedida. Tua partida está ao vento. O adeus sutil abranda o coração de quem fica. Sossega a alma de quem parte.
Não haver despedida impõe a aridez da separação, dissipa as lágrimas, evapora calorosos abraços. Dissimula o sofrimento. Mas quando tornamos... Arde na gente que só.
À chegada da notícia, foi que me dei conta que além de ti, outros amigos andam sumindo assim.
Muitos fizeram o mesmo. Arrumaram as malas, escolheram um lugar possível para viver e ganharam o mundo. Mina deles viajaram para dentro de si e desapareceram silenciosos.
Ambos, o exílio físico e o exílio espiritual corroem do mesmo jeito. Representam perdas, refletem derrotas. Ninguém abandona seu torrão por gosto. Forças nocivas ou pressões urgentes catalisam a decisão.
Ocorreu comigo um dia. Quando entrei num avião pela primeira vez e sumi, passei um tempão mofino. Chorava todo dia. Carecia de órgãos, partes vitais, pedaços de mim que haviam ficado em Belém. Foram dez anos no mundo. Dez anos com lágrimas escorrendo dos olhos a cada embarque no avião, a cada estirão de estrada. Eu vivia sumindo assim. Mas voltei.
Penso que o desterro é o gume fatal de fino e certeiro corte. Nos leva a jorros de sangue. É a carne vibrando, a voz gritando, os olhos em brasa, mutilação de ideais e vontades, ocorrendo em vapores invisíveis. Ninguém percebe. Para os outros, anfitriões ressabiados, somos um alien curioso, satisfeito com novas regras e planos. Por dentro nos diluímos em desilusões. Ninguém abandona seu torrão por gosto ou termo.
E se há causa para desenhar em outras telas a arte da revolução, é porque a ofensa é dilacerante. O ataque é selvagem. A covardia grassa insidiosa, odiosa. É que o recuo se faz necessário para recompor as forças, conquistar aliados, redefinir táticas.
Confesso que me vejo novamente ganhando o mundo, também. Fugindo de gente que nos abalroa na maldade só para medir força; eu me imagino da mesma forma desviando diariamente das cercas em que se confinam reses gosmentas organizadas na missão de me espantar com seus mugidos roucos. Penso que poderia sim, buscar um lugar bem longe para me esconder dos fantasmas que me perseguem em sonhos tensos, com a mesma desenvoltura que me acuam em delicadas confrarias, nutridos da sanha incontrolável de me impor o terror. Sem me despedir, admitindo o risco de ser esquecido, zarparia no primeiro batelão para o Acre, contanto que me visse aliviado, por um tempo, daquela pessoa que se incomoda porque leio no ônibus o livro da paciência.
O rumo que posso tomar poder ser a quilômetros daqui, além dos limites da baía do Guajará, adiante das matas do agronômico, do marco da primeira légua, ou pode ser um caminhar profundo para dentro de mim. Posso dispensar minha substância, embotar meu olhar, distrair-me deliberadamente de qualquer som, abstrair-me dos rogos da natureza. E ir-me sumindo assim.
Mas, de repente, posso voltar e fazer a minha revolução.


sábado, 28 de setembro de 2019

crônica da semana - cerrem fileiras com os estudantes


Dorme e te conforma
Deu-se então que esses dias, eu observei com mais aprumo o comportamento da baía do Guajará. Um motivo guiou esta minha atenção. Agora em setembro, por causa do Equinócio, é momento de grandes marés. Maior volume de água, maior velocidade, correnteza braba. Eis, que na rotina das manhãs, não perdia aquela olhadela. As primeiras observações demonstraram realmente um movimento afoito das águas. Acontece que, após uns dias na bicora, percebi, naquele mesmo horário, exatamente o contrário, a água parada, sem aquela ligeireza, sem os ânimos do banzeiro. Logo reconheci o fenômeno. Estava diante da maré estofa.
A educação, em vários níveis e, em especial a educação universitária, mudou minha vida. Porque tive acesso à escola, é que entendi o movimento da maré nesses dias de Equinócio. Penso, muito convictamente que, entendendo os humores da baía do Guajará, reconhecendo o instante da maré estofa, nossa vida pode ser bem melhor planejada, nosso dia tem tudo para acontecer sem desvios. É a nossa rua, o rio. Precisamos de um waze para explorá-lo nos conformes e nos ‘de acordo’ com seus caprichos.
A Universidade me deu a oportunidade de interpretar determinados fenômenos. São conhecimentos que me permitem ver o amanhecer de forma peculiar, a chuva da tarde com todas as suas relações (ainda mais estas em pleno setembro), o friozinho que faz no início do ano, em nossa cáustica Belém. Saberes que estimulam o meu cocuroto a ver uma árvore, de fora a fora, em todos os seus contornos, e não tirar os olhos dela sem antes investigar a sua simetria.
Estas podem ser visões pávulas do valor que a educação tem. Aquela conotação particular, próxima do prazer. Mas posso levar a prosa para ou outro lado. A educação, além de nos oferecer a pavulagem do conhecimento, nos proporciona a sobrevivência. Nos garante varar os dias. Bota o cumê dentro de casa.
Eu fui um menino entanguido. Raquítico e parrudo. Não cresci como os outros. Tinha baixa taxa de nutrientes, proteínas, gorduras; escasseava a energia para o meu desenvolvimento. Eu era resultado de uma luta duríssima pela vida.
Sem eira nem beira, minha mãe chegou do Acre com quatros bocas para dar de comer. Não sabia fazer nada. A vida enfurnada nas matas do seringal lhe preparou pouco para a metrópole. Uma rede de generosidade e solidariedade nos ajudou. Família, amigos, vizinhos. Em tudo fomos amparados. Conseguimos, as crianças, entrar da escola, fomos alfabetizados, ganhamos um rumo. Mamãe vendia o almoço para comprar a janta buscando calar os reclamos do estômago. Às vezes não exitávamos e o jeito era dormir e se conformar, que a dor da fome passava. Era tudo, e o máximo, que ela podia nos dar. Além, não tínhamos nada.
Escrevo aqui neste espaço há treze anos, porque a escola mudou minha vida. Escola pública.
Quando recebi o primeiro salário, em Rondônia, aluguei uma casa para minha família que tinha descarga na privada. Deixaríamos, dali em diante, de encher o balde para jogar na sintina.
Passei a comer melhor, a vestir melhor, a ler melhor. Comprei livro pra caramba na livraria da Rose em Porto Velho.
Semana passada, na cerimônia de colação de grau na UFPA, ouvi inúmeros pedidos de socorro. A Universidade corre sérios riscos. O corte de verbas para a educação superior pública está, literal e simbolicamente, tirando o cumê da boca de muitos jovens. Fica aqui o meu convite para que cerremos fileiras com os estudantes. Resistamos.

sábado, 21 de setembro de 2019

crônica da semana - canudo na mão


Canudo na mão
“Meu desejo de pai é que, com o canudo na mão, meu filho procure sempre lutar pela harmonização dos saberes... Que descarte os desprezos vis, a soberba (admitindo que a Geologia possa se realizar com o mesmo zelo, pela genialidade de um Darwin ou pela intuição de um auxiliar de campo, como o Rogério). E que em tudo seja feliz nesta profissão fascinante.” 
Rogério era bateador de primeiríssima categoria. Habilidoso, cuidadoso. Manejava a batéia, um equipamento de concentração de minerais. O processo que se desenvolve na batéia é complexo. Admite as propriedades das partículas envolvidas. Tamanho, peso, angulosidade, densidade. Todas essas particularidades entre as diversas espécies de grãos, interagindo com o volume e o movimento que a água faz no interior da batéia. Encerra em si, o ato de batear, um feixe de fenômenos físicos não tão fáceis de apreender.
Rogério não sabia nada de conceitos ou teorias. Com um cigarrinho porronca no canto da boca, não abstraía tratados. Tratava de fazer os movimentos corretos, dar a inclinação certa, a quantidade suficiente de água, para, após refinar mais de 200 quilos de terra bruta no dia, fornecer em poucas gramas, a mais valiosa informação. Era um mestre. O tempo que fiquei em Rondônia, não desapreguei de Rogério. A equipe não era a mesma sem ele, por isso, de jeito algum eu o deixava sair da turma. Aprendi um pouquinho com ele. Até os dias de hoje, se me derem uma batéia, não faço feio.   E ainda esnobo, fazendo rotação ao contrário do fluxo, só na caté.
Rogério se mirava e se media. Pouco caso fazia do talento que tinha. Não imaginava a envergadura que exibia aos meus olhos. Frente a elogios, desconversava, desqualificava coquetes. Repetia que era só um peão de Humaitá, caboquinho das beiradas. Não fugia, porém, à compensação, à sublimação: “mas a minha irmã, não. A minha irmã tem profissão. É tilógrafa”. Escorregava nas palavras. Quando precisava assinar algum documento, pedia uma caneta, riscava bem riscado o verso do polegar e imprimia a digital. Rogério não sabia ler nem escrever.
O primeiro parágrafo desta crônica é o recorte de uma homenagem que fiz ao meu filho no dia em que ele passou no vestibular para Geologia. Quando escrevi, pensei em mim, nos tropeços que dei na minha caminhada profissional. Nas vezes que fui metidão, que desdenhei de trabalhos e de opiniões de pessoas mais humildes, de poucas posses intelectuais ou de acanhados pendores eruditos. Fui buscar lá atrás meus erros. Em momento oportuno, encontrei remissões, reparações. A aproximação com mestres do naipe de Rogério me regenerou a alma. Ao mesmo tempo, me fez cair na real e perceber a pouca diferença entre mim e a peãozada que me acompanhava.
Atualizando as medições de Rogério, posso dizer hoje que eu, ah, sou apenas um peão do chão de fábrica. Tenho male-male o segundo grau. Mas o meu filho, não. Meu filho é Geólogo.
Meu desejo de pai é que ele, com o canudo universitário na mão, busque sempre além. Procure valorizar o conhecimento. Refine sua percepção do mundo e reforce a humanidade que existe nos tratados e teorias. Espero que nem o mais alto salto que ele dê na carreira o lance à empáfia. E que não se esqueça dos construtores litisconsortes dessa vitória. Do Rogério, o mestre da batéia, da irmã dele, que batia máquina de escrever; de nós outros, a peãozada. Pois que, sem estas pessoas, nada seria possível.


sábado, 14 de setembro de 2019

crônica da semana. Lavadeiras.


Lavadeiras
Era descer pro igarapé, e encontrar com elas. Estavam lá todas as manhãs, sobre as tábuas de lavar roupas. Eram pranchões lisos. Sem farpas ou cantos salientes. Talhados no bruto, mas untados pelo tempo. Tinham uma película limosa de anos de uso. Um do lado do outro. E muitos, porque muitas eram as mulheres.
Desciam com as trouxas, bacias, baldes. Os meninos na barra do vestido. Enquanto batiam, esfregavam, ensaboavam as peças, a garotada ficava por ali, cangando grilo.
Mamãe também descia. Dava a precisão, ela ocupava um dos pranchões. Eu, enrabichado.
Pelo longe que minha memória alcança, não cantavam, embora exigisse este pendor, o romantismo das minhas lembranças. Falavam coisas da vida, umas intimidades sem vergonhas ou culpas desvalidas. Muitas, ao chegarem, a primeira leva que tratavam era a roupa do uso. Despiam-se, sentavam-se à beira do pranchão, mergulhavam o pé num canto de água rasa, arqueavam o corpo e desenvolviam a lavagem até que o corpo desse um aviso de cansaço ou que o piqueirão se dispusesse lavado e enxaguado. Quando a lida ia encerrando, praguejavam avulso, pelo estirão que tinham que andar de volta. Ainda mais que logo de cara, com a bacia de roupa bem torcidinha, que era pra diminuir o volume, atracada ao lado do corpo, se lançavam ao penoso esforço de subir a primeira ladeira de umas quantas.
Esta ladeira que levava ao igarapé, era a mesminha que minha irmã, comigo no colo, em desabalada carreira, tropeçou e me lançou lá longe. Saí rebolando e quando parei foi com o joelho em cima de uma lata de conserva aberta. Abriu um talho espetacular .  E tão comprido, largo e profundo foi o golpe que até hoje, pelo arrodeio que fez no joelho, e pelo tamanho da cicatriz, ainda causa espanto. Mais até, porque sarou sem ponto nenhum. Só na fé na borra de café.
Se eu fosse pintor, faria uma tela retratando as lavadeiras do seringal. Daria uma pincelada de singeleza; Comporia o quadro em tons... não, não... em semi-tons de fantasia, que era pra não desviar do realismo da beira do igarapé. Meu traço se dedicaria a deixar a cena que nem que nem. O retrato das lavadeiras teria movimento. Expressaria os corpos nus, elevando as peças de roupas, armazenando energia para o choque com a prancha lodosa. Adiante, uma outra lavadeira ventindo-se com o vestido ainda enxombrado. Além, aquelazinha mais afoita, indo embora, se adiantando nos primeiros passos ao pé da ladeira. O barranco teria aquela cor de terra fértil, de topografia contínua, revestido de rara e baixa vegetação com folhas arredondadas e grandes. Completando a cena, a meninada folgando entre as pranchas, em brincadeiras irresponsáveis com as bacias de alumínio, mergulhando no ponto mais fundo do igarapé, espreitando peixinhos arredios. Eu no meio, pescando lembranças. Ao fundo, o céu azul e o sol ocidental do Acre.
Ao fim dos trabalhos, subiam o caminho íngreme e permitiam-se recuperar o fôlego no terreiro do barracão. Mamãe servia água, um café, chá ou leite de alguma rês, que fosse. Dali partiam para as colocações. Algumas caminhavam mais de hora, para chegar. O local de moradia dos seringueiros, onde tinham um barraco e as possíveis posses, era conhecido como colocação. Espalhavam-se pelos ermos e sem-fins do seringal.
Nos meses de agosto a setembro, o igarapé secava de ficar só um fiozinho.
Nessa época, as lavadeiras lavavam as roupas com o que tinha.


sábado, 7 de setembro de 2019

crônica da semana - simplesinho conzê


Simplesinho Conzê
Eu sei traçar uma mediatriz usando somente o compasso. Sem medir com régua, sem nada. Sei também localizar a bissetriz de um ângulo sem lançar mão do transferidor, da mesma forma, só na caté, só articulando as perninhas do compasso.
Aprendi tudo num livro, antes de entrar na escola. Edição das antigas. Daquelas de lombada costurada. Livrão massudo assim. Meu tio estudou nele pra fazer os exames de Admissão ao Ginásio. Tinha que saber Desenho para entrar no Científico. Depois do caso passado, herdei o livro massudo.
Sei que para muitas pessoas, saber traçar elementos da Geometria é um conhecimento absolutamente inútil. Gente que se diz gabaritada, não faz e nem fez questão, em tempo algum, de saber o que caixas e balatas vem a ser mediatriz ou a tal de bissetriz.
A curiosidade de abrir aquele livro e aprender uma ou outra técnica do Desenho, mais adiante, me ajudou quando entrei na Escola Técnica. Lá, o compasso foi meu companheiro dileto. Em outros tempos ainda, na pira do desemprego, me vali do livro de Desenho em aulas particulares concorridas, lá pras bandas do Telégrafo (quando ainda se estudava Desenho na rede pública). E por ali, nos arredores da Rodovia Snapp, numa tarde de sábado, por um descuido, me separei daquele livro. Eu o perdi em lugar incerto. No caminho pela avenida, nos degraus do ônibus, na casa de uma aluna... Nunca mais.
Mediatriz, num repente, entendamos como o centro de um segmento de reta. A linha que divide a reta em duas partes iguais. Por exemplo, o traçado no meio de um campo de futebol é a mediatriz do gramado. Agora, se o jogador for bater o escanteio e colocar a bola exatamente no centro daquela meia luazinha no canto do gramado, a bola ocupará um ponto no eixo da bissetriz do ângulo formado por aquela curvinha. A bissetriz é a linha que divide um ângulo em duas partes iguais. No caso do corner do futebol, em dois ângulos de 45 graus.
A curiosidade é aparentada do horror. Às vezes se encontram e causam turbulência no ponto de vista do observador. Achar um livro antigo, massudo e de lombada costurada, cheio de postulados euclidianos pode resultar numa síncope e nos jogar no chão tremendo e babando verde. Por outra, pode nos ajudar ali adiante, a sobreviver.
O mesmo ocorre quando nos deparamos com um dicionário, abrimos uma página no qual pega e encontramos a palavra “paralisação”.
Nesta hora divina, caímos na real e reconhecemos o dito e certo que numa hora de precisar escrever a palavra, tascaríamos no texto a bendita com “z”. Paralização. A vocalização, a percepção do som, a queda à sedução fonética, nos empurrariam para o erro.
Assim como, de repente entender o que são os elementos geométricos mediatriz e bissetriz exige uma ação libertadora que é abrir um livro, Escrever paralisação com “s’, também exige a mesma ação.
Só há uma maneira de escrever as palavras sem o medo de mutilá-las na forma. Tornando-se íntimos delas através da leitura de várias, várias obras. Literárias, jornalísticas, técnicas, acadêmicas, religiosas, de saliência ou de trovas inocentes.
É simplesinho assim com “s”, de mesinha mesmo. Um livro nos acolhe, nos previne e nos eleva. Para uns, inspira curiosidade redentora. Para outros, o horror. Quem tem pavor dos livros, quem ataca a educação; governo que calcina a cultura nas ruas, sofre de uma paralisação moral irrecuperável. Do tipo simplesinha conzê.


sábado, 31 de agosto de 2019

crônica da semana - página em branco


Página em branco
Hoje e amanhã vou pintar lá no Estande dos Escritores Paraenses, na Feira do Livro. Este ano, faço o relançamento de “Corrente”. Devo adicionar que a reimpressão é uma homenagem ao professor Hélio Santos. Com o texto de Hélio, na capa do livro, reafirmo este elo da corrente que o professor representa. E que me garante ter fé nas pessoas.
A participação na Feira é o momento que o fazer literário ganha evidência, e as indagações, as dúvidas nos chegam imprevidentes. Falando por mim, me impõem reflexões.
Fiz uma divulgação do relançamento de “Corrente”, nas redes sociais. Um dos convidados me voltou perguntando do que trata o livro.
Poderia responder com a velha fórmula. Identificando meu gênero como crônica, citando Antônio Cândido, dando as características do texto, um relato sobre meu jeito de criar e as consequências do estilo. Mas antes de responder, arriou sobre mim outro fato envolvendo a arte literária.
Dia desses, fui marcado numa postagem que anunciava a adaptação do Romance “Cem anos de solidão” para o cinema. Uma notícia espetacular já que sou vidrado nesta obra de Gabriel García Márquez. Curti a postagem. Qual não foi a minha surpresa, quando resolvi dar uma olhada nos comentários. Uma galera detonou a obra. Fiz uma análise estatística e percebi que o motivo mais volumoso da aversão pela obra era o fato daqueles críticos “não entenderem nada do livro”. Havia queixumes, indagações. Mas a maioria mesmo dizia não entender a história.
Fiquei num pé e noutro tentando achar argumentos que validem não só a leitura da obra colossal de García Márquez, mas também valorizem as vastas produções literárias que nos rogam atenção (a minha inclusive, lembram? Relançamento de ‘Corrente’ daqui a pouco na Feira Panamazônica do Livro). Fucei, forcejei. Catei impressões de minha filha, que tem o nome, Amaranta, saído das páginas de “Cem anos de solidão”.
É preciso entender um livro? Emendo logo nas reflexões sobre: escrever é caminhar por veredas juncadas de vida. É a arte se realizando nos dizeres perenes. Nos símbolos enlevados. Em significantes arrebatados. O escrito não existe, em verdade. Só tem algum sentido quando alguém, não necessariamente o entenda, mas generosamente, interaja com ele. Engravidar uma página em branco é pedir companhia. É partilhar audácias, medos e metáforas. É desapegar-se de credos apaziaguados ou de vilanias inclementes. Escrever, antes de tudo, é um ato humano.  Semear palavras no papel em branco é acreditar em humanidades possíveis dentro da gente.
Já vi criança folhear um livro inteiro, só vendo as figuras. Sem procurar entender os segredos ou as abstrações prometidas pela lógica das letras. Então, dentro do livro se revelam também, além dos sentimentos, a linguagem, o estilo, a poética, o ritmo, o jeito e a cor das palavras; partes concretas da narrativa que nos estimulam a simpatia. Fora isso tudo, conta-se também a criatividade. Em “Cem anos de solidão”, García Márquez semeia as páginas em branco com dezenas de personagens, cada um com o seu cada qual, cada um com seu destino, com sua história. Isso é pra lá de genial. (Vou eu tentar... Quem me dera!).
Para quem detonou o Romance vencedor do Nobel de Literatura de 1982, aconselho voltar a ele, folhear, forcejar.
Outros que se dispõem à interação generosa com um livro, vos espero encontrar logo mais lá no Hangar, para descobrirmos do que trata meu livro.
                                                                                                   






sábado, 24 de agosto de 2019

crônica da semana - igarapé piscina


Igarapé Piscina
Agora digue lá se, só de saber o nome deste igarapé, não vem logo uma vontade de dar um tibêi. Ainda mais com este calor de estoporar que está fazendo às três horas da agonia e da tarde, em Belém. Éraste, chega dá pra imaginar. É só fechar os olhos...
A trilha saía da estrada, ia beirando um campo árido. Depois de um desvio, onde tinha um imenso tronco caído, o caminho se misturava a uma vareda varrida dentro de uma grande área de cacau plantado. Até chegar na mata alta, era um estirão calorento. Adiante, a mudança de temperatura era o sinal de que estávamos chegando à floresta de vera. Começava a forra. Uma frescura generosa se espalhava por entre as árvores. A vegetação era mais robusta, e mais densa. A picada não era muito usada. Em alguns pontos se fechava e se a gente não cuidasse, de repente, se perdia. Por isso, depois de uma caminhada guardando referências que ainda podíamos identificar, cortávamos logo para o igarapé.
Nas palavras mais aquelas de técnicas e aplicadas, caminhávamos pelo interflúvio. Que, traduzindo, é aquele cocuroto de terra mais alto, que divide duas nascentes ou separa dois leitos paralelos de rios ou igarapés.
(sabe aquele dia que a gente amanhece com a impressão de ter pegado uma surra com um feixe massudo de vara de goiabeira? E de ter ficado com o corpo quente, com o peito e os olhos empapuçados de engolir choro, com as mãos tremendo do nervoso que dá na gente nessas horas? Imagine aquela sensação de ter apanhado uma coça de se ver de dor por tudo quanto é lado e de tudo quanto é jeito. Dor concreta, padecimento abstrato, pesar diluído em revolta; mal indiscreto, dordolho, dor de saudade, dor física de um peso nos ombros de a gente não aguentar, dor de verdades indesejadas, de desejos impossíveis, dor de frustrações com a humanidade, lágrimas de guerra, agonia de causas perdidas em fendas profundas de obscuridade e intolerância. Dor de tristezas e desesperanças. Dor de cabeça se desfazendo em líquido pesado e viscoso. Esta semana que, ora se vai, começou com um sentimento, ou até com alguns sintomas de um esmigalhamento. Uma quebradeira parecendo até maleita da braba, enternecimento com poder de quebrantar. De empalidecer.
Mas eu resisti. Bati, virei, mexi, tornei e fui sarar a cuca com as lembranças refrescantes do igarapé Piscina).
Daqui deste calorão de Belém, só dá pra imaginar mesmo. O igarapé Piscina corre em terras rondonienses, longe pacas. Era alvo das minhas atenções, quando trabalhei na região de Ariquemes.
Ganhou este nome porque, no meio curso, era barrado por uma raiz de Samaúma que não tinha termo de tão grande. Uma teba. Atravessava o igarapé, freava o fluxo de água no leito e formava um poço de água azulzinha, com mais de metro de profundidade. Uma maravilha! Água azul-piscina.
A área constava da minha quadrícula de operação. Vasculhava os quatro cantos coletando sedimentos, mapeando afluentes, pesquisando. Perto de voltar para o acampamento, dava um jeito sempre de cruzar com o Piscina. E dar uns mergulhos naquele metro e pouco de água azul.
Enquanto a gente banhava no igarapé, a turma exagerava no extraordinário das histórias. Uma delas dizia que a Samaúma que emprestava a raiz para formar o poço azul era tão grande que consumia um dia e uns carocinhos de horas ainda, além, para que uma pessoa completasse uma volta em torno dela. De bicicleta! Agora digue lá.