sábado, 14 de setembro de 2019

crônica da semana. Lavadeiras.


Lavadeiras
Era descer pro igarapé, e encontrar com elas. Estavam lá todas as manhãs, sobre as tábuas de lavar roupas. Eram pranchões lisos. Sem farpas ou cantos salientes. Talhados no bruto, mas untados pelo tempo. Tinham uma película limosa de anos de uso. Um do lado do outro. E muitos, porque muitas eram as mulheres.
Desciam com as trouxas, bacias, baldes. Os meninos na barra do vestido. Enquanto batiam, esfregavam, ensaboavam as peças, a garotada ficava por ali, cangando grilo.
Mamãe também descia. Dava a precisão, ela ocupava um dos pranchões. Eu, enrabichado.
Pelo longe que minha memória alcança, não cantavam, embora exigisse este pendor, o romantismo das minhas lembranças. Falavam coisas da vida, umas intimidades sem vergonhas ou culpas desvalidas. Muitas, ao chegarem, a primeira leva que tratavam era a roupa do uso. Despiam-se, sentavam-se à beira do pranchão, mergulhavam o pé num canto de água rasa, arqueavam o corpo e desenvolviam a lavagem até que o corpo desse um aviso de cansaço ou que o piqueirão se dispusesse lavado e enxaguado. Quando a lida ia encerrando, praguejavam avulso, pelo estirão que tinham que andar de volta. Ainda mais que logo de cara, com a bacia de roupa bem torcidinha, que era pra diminuir o volume, atracada ao lado do corpo, se lançavam ao penoso esforço de subir a primeira ladeira de umas quantas.
Esta ladeira que levava ao igarapé, era a mesminha que minha irmã, comigo no colo, em desabalada carreira, tropeçou e me lançou lá longe. Saí rebolando e quando parei foi com o joelho em cima de uma lata de conserva aberta. Abriu um talho espetacular .  E tão comprido, largo e profundo foi o golpe que até hoje, pelo arrodeio que fez no joelho, e pelo tamanho da cicatriz, ainda causa espanto. Mais até, porque sarou sem ponto nenhum. Só na fé na borra de café.
Se eu fosse pintor, faria uma tela retratando as lavadeiras do seringal. Daria uma pincelada de singeleza; Comporia o quadro em tons... não, não... em semi-tons de fantasia, que era pra não desviar do realismo da beira do igarapé. Meu traço se dedicaria a deixar a cena que nem que nem. O retrato das lavadeiras teria movimento. Expressaria os corpos nus, elevando as peças de roupas, armazenando energia para o choque com a prancha lodosa. Adiante, uma outra lavadeira ventindo-se com o vestido ainda enxombrado. Além, aquelazinha mais afoita, indo embora, se adiantando nos primeiros passos ao pé da ladeira. O barranco teria aquela cor de terra fértil, de topografia contínua, revestido de rara e baixa vegetação com folhas arredondadas e grandes. Completando a cena, a meninada folgando entre as pranchas, em brincadeiras irresponsáveis com as bacias de alumínio, mergulhando no ponto mais fundo do igarapé, espreitando peixinhos arredios. Eu no meio, pescando lembranças. Ao fundo, o céu azul e o sol ocidental do Acre.
Ao fim dos trabalhos, subiam o caminho íngreme e permitiam-se recuperar o fôlego no terreiro do barracão. Mamãe servia água, um café, chá ou leite de alguma rês, que fosse. Dali partiam para as colocações. Algumas caminhavam mais de hora, para chegar. O local de moradia dos seringueiros, onde tinham um barraco e as possíveis posses, era conhecido como colocação. Espalhavam-se pelos ermos e sem-fins do seringal.
Nos meses de agosto a setembro, o igarapé secava de ficar só um fiozinho.
Nessa época, as lavadeiras lavavam as roupas com o que tinha.


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