sábado, 26 de setembro de 2020

crônica da semana - fundo de quintal

Isso é Fundo de Quintal

Aconteceu comigo, durante este tempo de isolamento social, o que eu mais temia. Comprei uma caixa de som. Parece um robozinho. Desses que reproduz ‘blutufe’, ‘pendraive’, internet e tale’quais em decibéis suficientes para homenagear o sossego dos vizinhos.

No domingo, baixei no celular uma seleção só de sambas e, após o almoço, joguei pro robozinho. Não abusei não, adianto que é brincadeira minha essa marmota de atazanar a vida dos outros. Graduei um volume discreto, aquele tantinho de nos aprazer somente a nós no aconchego sonoro do lar e nas imensidões silenciosas da saudade. Só os clássicos! Com a clareza do som novinho em folha e a flamejante chama da comoção em cada faixa.

Quando o Martinho da Vila entrou equilibrando em brandos tons os primeiros versos de ‘Disritmia’, voltei os olhos pro quintal e resgatei aqueles momentos dos saraus em que alguém puxava o samba, com o mesmo abrandamento, mas não se equilibrava nos versos e a gente vacilava na letra. Nessa hora pensei alto “quem salvava a roda era o Vitu. Segurava essa música no sarau que era uma maravilha. Sabia a letra todinha”. Foi então que o aplicativo trocou de faixa e veio uma sequência com o Fundo de Quintal.

E eu, atado aos cordéis da pandemia, amarrado a súbitos temores, ressabiado com os acasos e as escolhas do vírus... solitário ante a caixa-robozinho, me surpreendo com esse som clarinho dos tantãs, do repique de mão, instrumentos engendrados pelos ‘velhinhos’ do grupo de pagode; e que marcaram (sublimaram) e revolucionaram as batidas do samba.

Adiantei os olhos além das memórias do Sarau do Quintal e dei com a luz do meio-dia se espalhando pelo estrito retângulo que se forma no longe do chagão. Minha clausura, minha deserção, minha entronização no reino das particularidades, das íntimas lágrimas, dos possessivos tremores, da hermética e resistente pulsação acelerada. Seis meses no ‘esconderismo’ secreto onde nenhuma de suas balas puderam me atingir seu vírus boboca dos infernos! O portão, o jambeiro e o pé de jucá me acodem como se couraças de aço fossem.

Antes de refletir sobre a melhoria na qualidade do som e como era antes a minha vida sem o robozinho, me veio um medo verdadeiro, à bordo de uma fantasia que criei: um estado de pressão total. Abandonado em uma redoma virtual. E como no filme Matrix, aqueles monstrinhos se esforçando, usando todos os seus talentos e a força dos tentáculos metálicos para romper as paredes que me protegiam. Não me perguntem como, mas sabem quem me salvou das sentinelas malvadas? O jambeiro, o pé de jucá e o portão desenhado em luminoso retângulo. Éraste! Chega suei de pavor, tensão e um incontrolável odiozinho por causa de um bando de gente que conheço de vista, de perto mesmo e que desgraçadamente, cerra fileiras com as sentinelas. Em pensamentos, palavras, gestos e intenções. Tentáculos!

Fazia tempo que não tomava uma cervejinha, e ainda em meio a uma letargia ‘disritimada’, em mirabolantes pensamentos onde se misturavam os sambas que cantávamos no Sarau do Quintal, as sentinelas da Matrix e a luz, mãe de todas as cores, que vinha do portão, dei com o copo sobre a mesa. A cerveja quente, um mosquitinho tricotando zunidos baixinhos, na borda, espuminha rala. Tentei interagir com alguém da casa, mas o que me ocorreu, foi instintivamente, apontar o dedo para o robozinho que ainda encarreirava os sambas da galera de Ramos, abrir um sorriso e sentenciar: isso é Fundo de Quintal, é pagode pra valer. 

sábado, 19 de setembro de 2020

crônica da semana - meu erro

 Meu erro

As crianças eram implacáveis. Não me permitiam um isso de sucesso com minhas mágicas. A cada tentativa, uma queda. Era desmascarado, pego na mentira. Um, logo dizia ‘tá ali, tá ali a banda do ovinho’. Noutra encenação, Argelzinho que não tinha dó nem piedade em impor-me a desmoralização, denunciava: ‘a carta tem dois lados, frente e costa’. Puxava o baralho da minha mão, todo ele, incrivelmente viciado e exibia as cartas para a platéia exaltada.

Namorava aquele joguinho de mágica que vendia na Lobrás, desde que tempo. Depois de muitos casos passados, a petizada já graúda, consegui comprar a caixa completa. Diversas peças para uma apresentação amadora. Tinha o baralho, o ovinho, o lenço, as moedas, o funil, a garrafinha de água, a cartola e até a varinha tinha. Cheguei em casa todo faceiro pronto para dar o espetáculo. Articulei com a família, queria audiência.

Dei um tibêi no fracasso. Não que fosse um jogo ineficaz. Tinha manual, dicas, procedimentos. Faltava-me a destreza. Errava em movimentos simples. Em detalhes de ligeireza e atenção. Denunciei-me. Logo na primeira sessão, entreguei os segredos.

Aí, a garotada caiu de pau. A molecada da vizinhança toda veio para minha apresentação de mágica, só para me anarquizar. Para ajudar na chuva de vaia. Não amofinei. Aceitei o revés. Não levava jeito mesmo, nas sutilezas. nem nas ilusões.

Não me deixei, porém degradar-me em desinteresses pelos truques.

Uma ou outra arteirice com o ímã é arte que continua até hoje me mundiando.

O ímã é um tipo de matéria especial. Tem sempre um lado que atrai e outro que repele. O espetacular nisso é que, se a gente tem um ímã de dois centímetros de comprimento e parte a peça ao meio, não vamos ficar com uma parte que só atrai e outra que só repele. Os pólos se repetem nas duas partes. E assim por diante. Se dividirmos de novo, vai acontecer o mesmo. Se partirmos infinitamente, se esmigalharmos o ímã em partes pequeníssimas, ainda assim ele vai ficar atraindo numa ponta e repelindo noutra. Devo dizer que este comportamento magnético do ímã é sentido por materiais que têm propriedades afins com ele. Superfícies metálicas, pelo comum, das quais, a porta da geladeira me vem como um exemplo que a nós, nos é mais íntimo e nítido.

Falo agora sobre, porque depois daquele malogrado intento com o jogo de mágica, me abalei de novo aos truques recentemente, agora, manipulando as esferas de neodímio.

As esferas são sólidos que não têm lado. Não há em cima, embaixo, do lado, nas esferas. A impressão é que a esfera tem sempre o mesmo jeito e modo não importa a direção que nos estimule o sentido. Aí é que reside o truque da esfera de neodímio. É um ímã que a gente pensa que só tem um pólo. Mas não. Tem os dois. E dá pra gente fazer cada arrumação, cada ilusão e presepada usando a forma e o magnetismo em favor de nossa mágica doméstica. Lavei a alma! Sucesso total, minhas apresentações com as esferas.

Essas histórias de intentos insolventes tiveram como consolo os felizes resultados com os ímãs de neodímio. E é essa oportunidade, almejada, requerida, conquistada, magnetizada para que eu possa corrigir meu erro.

Tive que doirar o grão de arroz até agora, para reparar a informação que dei na semana passada aqui. A Aurora Boreal é resultado da interação do vento solar com o campo magnético da Terra e não com o campo gravitacional, com afirmei equivocadamente. Por este erro, humildemente, peço vênia.

sábado, 12 de setembro de 2020

crônica da semana - Aurora

 Aurora

Vou dar a letra no justo e certo: no início desta pandemia, entreguei os pontos, me encolhi no canto, ‘aconsoado’, e julguei ser aquele início, o meu fim.

Passados seis meses, sustos, lágrimas muitas, medos, pirações, esperanças sufocadas, decepções com a humanidade e incertezas de montão, cá estou, como diria minha mãe, suspirando. No ritmo indicado à manutenção da vida, com a saturação de oxigênio, ó, lá em cima.

Esse sentimento de expiração inevitável teve suas justificativas, afinal, no pico da pandemia no Brasil, quando me vi diante da ameaça de um vírus letal grassando e se valendo de nossas obsequiosas licenças; no momento em que me peguei abismado com a imagem de um presidente usando máscara na orelha como se estimulando a população a praticar o auto-extermínio; na hora que me bati nas nuances do home office e fui contemplado compulsoriamente com as gasguitagens  do Arrocha e abençoado pelos louvores gritados a plenos pulmões; quando quedado e humilhado pelo vírus, pela falta de governo e pela poluição sonora, pensei cá comigo: não tem escapatória. O fim é chegado. Dei adeus a este mundo cruel. Emagreci. Perdi a barriga de jogador de porrinha e dormi um sono resignado. Foi aí que sonhei com a Aurora.

Nada é muito certo nesse mundo. Mas taí, se eu varar, se alcançar a vacina, a meta a ser buscada é conhecer, ver de palmo em cima, a Aurora Polar.

(E atenção, tudo o que for dito a partir daqui, só terá serventia para quem acredita na lição de Geografia lá da quinta séria, que dizia a Terra, ser redonda e achatada nos pólos. Se não considera essa afirmação, pode desembarcar e mergulhar nas sombras do fim do mundo que distam um nadinha assim dos abismos pavoroso da terra plana).

Aurora, sabemos, é nome próprio, de irmãzinhas que chegam e nos alegram. Está presente em marchinha de carnaval, em samba de breque, e na mitologia romana. É um evento temporal, também. Em nossos dias comuns, tem o sentido do amanhecer, do nascer do sol ou o início da lida.

Das polares, a mais conhecida é a Aurora Boreal. Aí já vem com sobrenome. Boreal é uma alusão ao Titã Bóreas, citado na mitologia grega e que comandava os ventos do norte. Mas a Aurora também ocorre no sul do planeta e por essas bandas é conhecida como Aurora Austral. O adjetivo austral já não tem entidade grega ou romana que o inspire, mas lembra da mesma forma, vento. O vento do sul.

A mais famosa das Auroras polares é a boreal. Por um motivo simples. Pode ser vista em regiões, mesmo que acanhadamente, habitadas. Ocorre nas altas latitudes, nos longes e frios. Ambientes onde não são comuns, as aglomerações urbanas. Do outro lado, no sul do planeta, a Antártida é pouco simpática às gentes e coisas.

Os lugares de melhor visibilidade são aqueles localizados na região do (Terra redonda e achatada nos pólos, heim, gente!) Círculo Polar. É um fenômeno que produz no céu, luzes verdes, vermelhas, azuis e em ondulações, como se fosse uma dança leve e suave de tonalidades. Tem origem na interação do vento solar com as linhas de força do campo magnético da Terra.

Eu, vendo as imagens, os registros dos viajantes que se lançam àqueles longes, fico fascinado. É arte da natureza que merece todos os esforços para ser contemplada (vencer o vírus conta).

A Aurora Boreal acende em mim a esperança, credencia a possibilidade de, ainda em meio à pandemia e às incertezas, nutrir um objetivo futuro. Pensar metas, ter expectativas.

Enquanto suspiro, esperança há.

 

 

sábado, 5 de setembro de 2020


 

crônica da semana. O touro de cara pro céu

 

O touro de cara pro céu

O tempo foi passando e eu fui ficando velho olhando pro céu. Por vezes dormia e acordava sem chão, sem peso, sem lei que me prendesse à terra. Imediatamente, eu me recompunha e abraçava a gravidade. Meu planeta vence e me atrai mais que o profundo, cintilante e silencioso infinito.

Eu sou de Touro com regente em Vênus. Sou touro de cara pro céu. Sou gente descrente, sou jeito insensível. Displicente discípulo, transgressivo servo. Um poeta a procura da lua todo mês, às vezes no mais expressivo escuro. Por outra, me pego metódico, medindo distância de estrela a meio olho, a palmo diante, a indicador indicando; ou com o polegar, assim, de lado. Aldebaran é tão longe!

Certa vez eu, touro de cara pro céu, acompanhei a noite minuto a minuto. Desde o despontar da primeira estrela no horizonte até a lua cheia no alto da abóbada. O brilho da lua ofuscou a exuberância de Aldebaran que é muito longe. Nuvens vieram de fora e nem eram das minhas posses. Um vento rasteiro rastejou sob meus olhos, deu um ardor na alma, um achaque em minhas tolerâncias. Lagrimei. Foi aí que choveu e eu me vi envelhecendo molhado olhando pro céu.

Touro é uma constelação que vemos aqui no hemisfério sul, em horários mais apropriados, entre novembro e maio. Chama a atenção porque vem acompanhada de Sírius, a estrela mais brilhante do céu, das Três Marias, da gigante vermelha Aldebaran e de um aglomerado fofíssimo, as Plêiades, também conhecido como As sete irmãs, Chavinha ou ainda, Tercinho. Na Antiguidade, os gregos perceberam aquele belo ajuntamento de estrelas e criaram histórias sobre ele. Viram ali o grande caçador, e seu cinturão luminoso; a matilha agitada e o cão maior, um imponente touro. Perceber sair daquele V de cabeça pra baixo o desenho perfeito de um touro, requer muita imaginação. Admiro a constelação, mas não consigo formar a figura. Compete contra a minha percepção, atualmente, obvia aversão a este tipo de gado.

E também não creio que um animal imaginado, vagando pelo espaço em uma ordem impecável, possa interferir na minha personalidade, no meu futuro e nos meus humores desordenados.

Na ponta do V virado pra baixo e que seria a cabeça do touro, distingue-se o vermelho brilhante, de Aldebaran. Cheio de fascínio, inspirando mistérios, refletindo a arte espontânea, de plástica apurada, imensa e casual . Mas Aldebaran é tão longe!

Nada, nem minha descrença, nem meu cinismo (com regente em Vênus), ou a minha desconfiança antigravitacional me impede de ser um touro de cara pro céu. Porque a constelação é um deslumbre! O universo é cativante e convidativo. As estrelas mundiam. Há uma eternidade cheia de nadas, sideral, nos chamando, aos confins, às fronteiras invisíveis, às margens indivisas, aos abismos cósmicos; a cada noite, para nos contar paixões.

Por vezes, touro de cara pro céu, eu durmo. Cheio de versos vazios, desejos opacos, esperanças, sonhos e sono. Cuido para que a vigília me resgate do éter tão cativante. Torno ao chão esturricado da Terra, meu planeta regente, que me atrai mais que os aglomerados e as mitologias. É absolutamente necessário estarmos juntos, nos atrairmos. Porque o tempo está a passar e me cutuca e me alerta que não posso somente ir-me ficando velho e também, não devo lançar-me sem regras vagando pelo céu. Tenho que acordar gravitacional e amar a vida sobre meu planeta. Ainda mais que Aldebaran de Touro é tão longe!