sábado, 29 de maio de 2021

crônica da semana - A pedra do amor.

 A pedra do amor

A vinheta da novela Império, no finalzinho, exibe em destaque, um fragmento bruto de quartzo rosa (ou diamante cor de rosa, como queiram).

O enredo da novela é pautado na ascensão social do personagem José Alfredo, financiada pelo comércio e industrialização de pedras preciosas garimpadas nas alturas do Monte Roraima. Acompanhando toda a sequência da vinheta, achei estranho o desenlace dando relevo a uma pedra que, pelo que torna e pelo que deixa, não é tão rica de talentos e valores. Já que o império fora conquistado com a exploração de gemas, esperava a produção mostrar peças mais clássicas no mundo precioso das pedras como diamante, esmeralda, ametista... ou pelo menos uma versão do quartzo  mais simpática já que, sabe-se, sem pudores o mineral faz as vezes estéticas e estilísticas até muito bem.

Queixo-me entender do traçado. Contando a vivência e os anos na universidade, arrisco reconhecer em mim uma composição de 50% geólogo. Tenho também cá na minha estante, exemplares de minerais que coletei eu mesmo com meu próprio charme, aí pelo mundo, cada um mais enxerido de bonito que o outro. Vejo nas formas dos minerais, no brilho, no jeito firme e sólido de aparecerem para a gente (característica que os geólogos chamam de ‘hábito’), um encanto extraordinário. E quem quiser experimentar o que digo, sugiro uma visita ao museu da Federal do Pará, ao pólo joalheiro mesmo e, se quiser se deslumbrar um tantão assim, uma passadinha no museu de mineralogia de Ouro Preto. São artes de entontecer.

Minha admiração por pedras se dá em estado bruto. Faço parte da turma que admira as pedras no original. E que acho ser a maioria dos geólogos que conheço. Quando mostro estranheza à peça que é apresentada na vinheta da novela, não se trata de preconceito com o quartzo ou uma redução no valor desse mineral. É que mesmo aquele de estrutura mais simples tem uma amostra bem melhor que este zinho da novela. Faltou alinhar um sentimento com a história do quartzo rosa (ou diamante cor de rosa, como queiram). Ainda mais que, pesquisando aqui e ali, descobri que a pedra é tida e havida, em meios alheios ao mercado de jóias e marcas, e aos nichos acadêmicos, como a pedra do amor.

A Geologia é ciência de várias faces. Penetra nas entranhas da Terra e desvenda mistérios da criação, e até do futuro da criação. Explica uma série de eventos naturais, prospecta, mede e explora bens que no nosso dia-a-dia são imprescindíveis (e a exemplo dos metais, de uso que marcaram a História da humanidade). Trago a Geologia dentro do meu coração. E agora, desde que meu filho pôs a mão no canudo da graduação, partilhamos no sangue o amor por esta área do conhecimento.

As fronteiras da Geologia são estendidas, a sedução por notas e aplicações é vasta (até no cinema. Se a gente reparar, dos 10 filmes de catástrofes exibidos na tela, pelo menos 8 têm um geólogo na ação). Assim como na ficção e, meu deus! na realidade deste Brasil atual que despreza a ciência, o geólogo é um obstinado por apreender, entender e defender as verdades do planeta.

Ante os fascínios da profissão, um deles é presente dentro da casa. Todo geólogo tem um império, uma coleção de minerais, ou de pedras bonitinhas, como se diz no popular.

Eu, com meus 50% da graduação, tenho no meu império, uma amostra de quartzo rosa (ou diamante cor de rosa, como queiram), sentimental e estruturalmente habilitada a estrelar uma vinheta de novela. Amanhã, vou comemorar o dia do geólogo, trocando olhares de caríssimos carinhos com minha pedra do amor.

 

sábado, 22 de maio de 2021

crônica da semana- outra da cobrinha

 Outra da Cobrinha

Eu ainda chamo de cobrinha para fila

É um termo antigo que identifica a forma vexada que nos submetemos para alcançar todo e qualquer fim, e de lá a cá, elabora, também, um momento na vida da gente em que nossos íntimos estiolados afloram, o instinto selvagem que se abriga nas margens da alma se anima, nossas vagas morais e éticas se adensam. A cobrinha é terra de repentes, de ações e reações jamais pensadas. É a queda do discurso e da razão. É um grau para a barbárie... ou, em raríssimas ocasiões, não.

E é neste contexto da análise do comportamento que ela a cobrinha nos visita hoje, quando interpreta nossos jeitos e modos, direitinho neste momento atual, que se destaca por decisões diárias de cancelamentos, bloqueios, mal-a-morte-e-se-tiver-vegonha-na-cara-não-fala-mais-comigo...

Eu ainda chamo de cobrinha para as filas. É um costume da antiga, mas é bem empregado. Expressa bem o caráter rasteiro desta prática de alinhar-se na pesarosa arte de esperar. Mas ao mesmo tempo em que elas, as cobrinhas são monótonas, chatas, podem ser turbulentas, convulsivas. Deixa aparecer um furão, pra ver como a coisa ferve.

Ou não.

A maior fila que eu já encarei na minha vida foi a de inscrição para um evento da SBPC, em 2007. Era o último dia e a cobrinha tava assim, ó, dando voltas e voltas em torno do prédio da reitoria. Cheguei pelas dez da manhã, e como já tinha feito uma prévia da inscrição pela internet, achei que fosse ficar ali uns instantes só. Que nada. O sistema deve ter falhado, naquele dia. Quem fez a inscrição prévia, quem não fez, acabou ficando no mesmo bolo. E terminei saindo, com uma das últimas vagas ofertadas para mini-cursos, lá pelas três da tarde.

A verdade é que eu fiquei ali por horas, porque eu quis. Quis ficar, não. Sei lá, quis provar alguma coisa.

Como a inscrição era no campus da UFPA e dirigida à comunidade acadêmica, a presença ali era, na totalidade de estudantes, e a maioria, da própria Federal. Todo mundo se conhecia, ou, por outra, se enxergava. Resultado: a pessoa chegava no rabo da bicha, dava uma esticada no pescoço lá pra frente, reconhecia um fulano, uma sicrana e dali partia para uma posição mais adiante (do jeito que acontece na fila do RU). E eis que assim ocorreu com muita gente. Todo mundo furou na maior. Houve momentos que, do canto em que eu estava, fiquei quase uma hora sem arredar um tiquinho para frente, tantos que foram os espertinhos a adiantar-se sobre mim. Naquela fila, exatamente, não rolou nenhum barraco. Tinha aquela coisa dos ‘conhecidos’, da camaradagem e o fura aconteceu no maior fair play.

Eu não me abalei, fiquei por ali, contando passo e acabei aderindo a um grupinho bacana, auto-intitulado dos puritanos, aqueles que ‘mesmo em face do maior encanto’ iriam resistir renitentes sem dar um salto oportunista para frente sob os favores de um amigo (alguns, a contragosto, dizque, fraquejavam, sucumbiam a um aceno persuasivo e nos largavam para trás. Depois, já inscritos, com um ar de falsa solidariedade, passavam por nós, pouquistas, exibindo a bolsa que estava sendo distribuída para o evento). E por causa desta lerdeza, pastamos, eu e meu grupinho de incautos, por longuíssimas cinco horas.

Não lembro muito bem, mas, em defesa de uma ética falida, como previne a piada sobre os convictos otários, é provável admitir que, além de conscientemente estacionados entre os fonas, estivéssemos ‘discostas’ a apreciar o movimento da beira.

 

sábado, 15 de maio de 2021

crônica da semana - o mundo horizontal

 O mundo horizontal

A imagem desenhada, explicada e encantada da História da humanidade ainda me atrai. Visualizei, senti o poder do traçado em alguma narrativa literária que chegou a minhas mãos nos últimos anos. Texto com contornos científicos, balanceado por pitadas românticas. Marcelo Gleiser, Carl Sagan, uma ou outra biografia de gênios famosos. Foi numa dessas publicações que tive a revelação.

A intenção do autor era traduzir as maravilhas que se multiplicaram na cabeça do Homem primitivo, quando deixou de andar sobre quatro patas, ergueu-se e contemplou o céu estrelado. Trata-se de uma elaboração estilística fascinante para um evento da Evolução. E de uma poética, de uma leveza... tem também permeios de racionalidade. Ligar o nascimento do Homem moderno com a imensidão do Cosmo é arte que me emociona.

A interpretação desta alegoria se baseia no fato de que uma postura sobre quatro patas, aquela que impõe a horizontalidade da coluna vertebral (e do mundo), restringe o campo de visão do ser que vive sobre a Terra. Há um limite para a percepção, para o entendimento. A altura máxima dos sonhos e pretensões é rés-o-chão.

Na imagem construída do Homem moderno, este limite se esvai. Some no infinito. Quando o Homem fica de pé, fica mais perto do céu, de Deus, das estrelas, do inesgotável universo. Aproxima-se de todas as possibilidades, de todas as tecnologias e construções. Torna-se íntimo dos segredos da criação, dos caminhos que levam ao amor. E ao ódio.

Alvoreceres além, cá estou, com uma dor miseravida mulestadeinsuportávelnojentaordinária na coluna, refletindo sobre a validação de estar de pé.

Entre um analgésico e outro, choro lágrimas profusas neste maio de tantas e fortes emoções. Nem todas pela dor física, boa parte, por este mundo de dores que brotam das profundezas do coração.

O mês de maio, de conflituosos sentimentos, ajuda no banzo.

Um ano e pouco além do início do flagelo que é esta pandemia provocada pelo Coronavirus, e potencializada pelo desastre que se queixa ser um governo brasileiro, o sofrimento é o mesmo de quando recebi a notícia da passagem do meu companheiro Cláudio Cardoso. Um exemplar grandioso do Homem moderno, pensante, criador amável e que amava a Terra, as pessoas, a vida. Dominou o quanto pôde os reveses, a ousadia de estar de pé. Até que o vírus o pegou à traição. Só assim, por uma manobra sorrateira, desleal deste sistema perverso é que Cláudio abandonaria o front. De outra forma, ainda estaria aqui cerrando fileiras contra essas desditas com as quais nos batemos todo santo dia. Armado de poemas.

As contendas do mês se revigoram e as lágrimas vêm em enxurrada, quando localizo o dia 15 de maio de 23 anos atrás. A data marca o dia de intraduzível sofrimento, em que minha mãe nos deixou. Um momento de esmigalhar o coração: um dia após o meu aniversário e às margens dos festejos do Dia das Mães. Aquele 15 de maio foi um ataque cruel e malicioso do destino. Não nos ofereceu defesa. Mesmo de pé, vislumbrando o infinito, ante àquela situação devastadora, me senti limitado. Com a fé e o entendimento sobre a vida, rentes ao horizonte. Sem éter, sem imensidão. Sem futuro.

De pé, cá estou eu, com 58 anos completados ontem. No futuro. Neste dito futuro bagunçado de sentido, de teres e fazeres. Vendo meu Brasil se enterrar dentro de um buraco profundo e escuro. Estou eu, cá, Homem moderno, chorando meus mortos, e percebendo o cultivo do ódio nos levar de volta às quatro patas.

 

sexta-feira, 7 de maio de 2021

crônica da semana - rico da graça

 Rico da graça de Deus (e de livros)

O maior patrimônio que acumulei na vida é composto de livros. Não é nada, não é nada, somei alguns milhares de dinheiros movimentados nas mais variadas moedas que circularam no Brasil desde que ganhei meu primeiro tostão em troca da minha força de trabalho.

Antes, minha mãe, no aperreio das cobranças e sem muita paciência para nos explicar o estado e as coisas, reconhecia o fato justo e certo de sermos pobres de teres e haveres, mas como conforto dizia que éramos ricos da graça de Deus.

Mais além eu acrescentaria: e de livros.

Com o primeiro emprego, deu-se sutil alívio nos perrengues e a chance de conquistar os mundos literários se concretizou. O primeiro salário que a vida de Técnico em Mineração me deu, ensejou minha associação ao Clube do Livro. Só desse jeito, com esse modelo editorial é que os livros chegavam a Rondônia.

Explico: hoje, com esta onda de negação preocupante, ler voltou a ser uma lida subversiva. Há quase quarenta anos, no olho do furacão de um regime de força ainda bafejando pressões e perseguições, não era fácil também. Poucas livrarias havia, com destaque negativo aqui para este lado do Brasil. Rondônia padecia de ofertas. Quando cheguei à sede da mineração, alguns amigos já tinham as manhas para a compra através do Circulo do Livro. Para entrar, tinha que ser indicado. Ajeitei as formalidades e assim que me tornei sócio e recebi o primeiro catálogo, iniciei a minha fortuna.

Entre escolher o livro no catálogo, fazer o pedido, postar no correio, e depois receber a encomenda mediante pagamento no balcão da agência, era um custo de aproximadamente 40 dias. Valia a pena, é certo. O Círculo do Livro tinha a característica da qualidade. As edições eram bem impressas, capa dura e de arte admirável, textos com tipos de bom tamanho e espaçamento confortável. Exibem-se aqui na prateleira da minha estante alguns exemplares memoráveis dessa lavra. “Estrela da manhã e outros poemas” de Manuel bandeira, com uma apresentação singela se impõe pela grandeza. A capa de “Mephisto” do alemão Klaus Mann sempre me causa impacto. Boas encadernações e o acabamento do Círculo me fizeram chegar em bom estado, até os dias de hoje, um encarreirado de títulos do meu ídolo Luís Fernando Veríssimo. O Círculo foi a fonte de suprimento para as minhas leituras por um bom tempo. Até que a Livraria da Rose chegou em Porto Velho e trouxe na bagagem o Asterix.

A Rose tomou o lugar do Círculo do Livro com méritos. Títulos diversos não faltavam na livraria dela. O livro que me destrambelhou o tino, esmigalhou meus preconceitos literários e abriu o meu ser para o ato libertário de criar histórias, comprei na da Rose. O inebriante “Zero”, naquela edição que desafiava os verdugos da arte, é minha preciosa, e reincidente, leitura de cabeceira.

Todo mês, fazia o investimento. Arrematava ativos que contavam também, depois da Rose, com o quadrinho dos cartunistas paulistanos. Revista Circo, Chiclete com Banana, Geraldão, Níquel Náusea, tudo junto às edições atrevidas d’O Planeta Diário e os últimos suspiros da revista Mad.

Os tempos são outros e tão iguais. A umidade, o cupim, a traça, lógicas argumentativas da rinite, da sinusite, me sugerem agora uma dolorosa atitude. É com o coração partido que revelo: meu patrimônio formado por livros vai continuar comigo. Mas da minha fortuna de revistas em quadrinhos, infelizmente, vou ter que me desfazer. Tomara que encontre donos zelosos.