A
maré estofa e o que a gente perde por lá
Eu
perdi na maré uma mina de coisas, um trancelim, algum fim, títulos e prosas não
escritas. Como alento, aprendi na Universidade a achar artes e peças, a perder
de novo. Aprendi.
Foi
numa disciplina que me deu um trabalhinho. Na primeira tentativa, passei (com
um errezinho, mas passei). Fiquei uns dois semestres passado. Até que fui
informado que não poderia me matricular regularmente, porque o meu professor
havia me despassado daquela mesma disciplina que eu havia passado com R, alegando que eu não
participara de uma viagem de campo. Já pensou o transtorno? Escapei de repetir
a disciplina com um nome consagrado na pesquisa do petróleo. O horário não
combinava. Outra vez, nem conheci o professor. Desisti no caminho da
Universidade. Sei lá, me deu um banzo. Fui me atrasando no curso. Voltei com o
professor Werner Truckenbrodt, uma lenda, no curso de Geologia. Passei com B, sem
precisar fazer viagem alguma. Depois do Werner, me animei. Tratei o curso com
mais zelo. Sabia que não iria concluir, mas decidi que o que eu aprendesse dali
pra frente, levaria comigo para a vida. Aprendi sobre a maré estofa e sobre
este mundo silencioso que nos tira sonhos e coisas.
A
maré é uma corrente. Corrente é algo que corre. Werner explicava a dinâmica das
marés pra gente ali na sala e a minha cabeça fervilhava, pensando na baia do
Guajará. É o que acontece todos os dias aqui na frente de Belém. A água correndo
prum lado, tomando as margens, afogando furos, elevando até lá em cima o
trapiche feito com o tronco do Miritizeiro. Depois correndo pro outro lado,
desbarrancando dobras, trazendo as rasas de açaí, adiantando a viagem do Fé em
Deus IV. A maré estofa é o instante certo entre a maré enchente e a vazante. A
água vai subindo, até cobrir a pedra do peixe, no Veropa. De repente para de
subir e começa a vazar. Entre encher e vazar, há um tempo de corrente
parada.Tudo parado (não sei exatamente este tempo. Acho que faltei a esta aula
do Werner). Mas é um tempo fundamental para acontecerem espetáculos naturais
que impressionam e nos valem.
Se
tudo para, aquela correria de água enchendo, para. Nesse momento, o que quer
que esteja sendo arrastado pela energia da corrente, se aquieta, procura um
canto pra se acomodar. O que é mais pesado vai procurar o fundo do rio, aquele
que é mais levinho vai flutuar até descansar num barranquinho e formar um
lamaçal fértil.
Hoje,
depois de ter perdido o meu diploma universitário e de, ao mesmo tempo, ter achado
sentido em outras artes, fico imaginando uma baía do Guajará silenciosa e
profunda. Um mundo de água sem movimento, apenas animado por uma laminha
flutuando em busca de sossego. Penso que é ali, no seio da maré estofa, que
está um trancelim, algum fim, o título e a idéia de uma crônica que iria
escrever hoje. Eis que quando abro o arquivo, dou com o título: “Três em um” e
o resto da página em branco. Ali, num tempo de letargia, que eu nem sei quanto
dura, e que de repente, desperta para a vazante, está uma história da qual, não
lembro absolutamente nada.