sábado, 26 de março de 2022

crônica da semana - Jubiabá

 Jubiabá

Não sei no certo, a quantas eu andava em 2006 quando meu compadre, à época editor do caderno de arte do jornal, me saiu com essa: “vou te colocar pra dar o ‘Bom Dia’ para o povo daqui”.  

‘Bom Dia’ era a coluna de crônicas do Cartaz, cantinho de céu literário minado de estrelas da escrita paraense. Encarei.  Publiquei minha primeira crônica aqui, no dia 27 de março. Mas quando que eu iria imaginar que viraria a marca dos 16 anos escrevendo toda semana para a coluna. Varei, olha! Só estou eu, que naqueles idos de 2006 ainda balancei pra aceitar o convite do meu compadre, achando que era uma senhora responsa escrever assim, de palmo em cima com os melhores.

Sou assim, ligado em datas, em marcações. Atento a mexidas e remexidas no tempo. Aí me calha nas intenções, explicar na lógica curta e certa, esta inclinação para contar causos. De onde vem esta batida. Como surgiu o meu fazer literário. Por quais cargas d’água vim parar aqui.

Avalio que, no início, esta tendência apareceu dentro de um caudal de elaborações nas mais variadas artes, e que se manifestaram na molecada da rua. A minha busca vai longe. Desembarca na Mauriti, finalzinho dos anos setenta. Minha patota estava crescendo, estávamos abrindo os olhos para o mundo que ia além do Centro três, do Cine Paraíso, das peladas no canteiro da Duque e naquele campo de sonhos que era o Areal. Foi o tempo em que cada um impinimou fazer uma arte. Este tocava um instrumento, aquele cantava, uma vizinha pintava quadros de céus e rios, outra fazia mímicas e arremedos. Uns outros andavam pra cima e pra baixo com a Olivetti e uma papelada debaixo do braço. Eu me peguei com o violão. Ao mesmo tempo, aparecia para mim o mundo fascinante da Escola Técnica. Minha escola santa e pecadora que, em plena ditadura militar, abrigava o ensino formal, as regras, as caretices, o civismo auriverde, mas por outra, nos oferecia enriquecedoras experiências construídas pela pedagogia teatral de Cláudio Barradas, no Tecnartes;  pelo zelo melódico de Adelermo Matos; pelos ritmos jazz band de Nery Filho, pela poética amazônida de Paes Loureiro e ainda as alegorias urbanas de João Mercês. E mais e muito decisivamente, pelo espírito refinado de Alfredinho. As artes e as almas se encontravam na Escola Técnica.

Aqueles últimos anos da década de 70, plúmbeos, no entanto borbulhantes, cheios de energias de escape, de evaporações e inspirações para a liberdade. Aqueles anos fervilhantes abriam-se para mim em inúmeras possibilidades. Eu entrei na Escola Técnica com um violão pirentinho debaixo do braço, de onde como todo mundo da minha patincha tirava a melodia de “A Festa do Santo Reis” e “A Casa do Sol Nascente”, só no dedilhado; até que um dia eu conheci a biblioteca, até o instante em que fui apresentado à literatura fantástica de Murilo Rubião, pelo Alfredinho e tudo mudou.

(Quanta meiguice emanava da oratória de Alfredo quando ele dissecava o Modernismo expresso em Jubiabá. Destaque para a indelével sofisticação na pronúncia orvalhada da oxítona! “Jubiabá”. Depois levava a mão ao bolso, retirava o lenço, enxugava o rosto, o cantinho da boca, por fim, voltava o lenço pro bolso da calça verde clarinha, com singular hombridade).

No dia que corrigiu e tascou um dez na resenha que fiz do conto “Os Dragões”, de Rubião, meu tão estimado professor da ímpia e redentora Escola Técnica cravou: “tens jeito pra coisa, rapaz!”

Por estas, tantas e outras, é que estou aqui, nesses 16 anos, rente como pão quente, mandando aquele Bom Dia ao povo daqui.

 

segunda-feira, 21 de março de 2022

crõnica da semana - chagão

 Pode entrar pelo chagão

Vagávamos ansiosos pelas ruas margeadas com pedras de lioz, ali pelos adiantes do centro de Belém, eu e meu compadre José Miguel Alves. Contávamos os dias para o lançamento de um livro que publicaríamos em parceria. Distribuímos material de divulgação nos jornais que ainda mantinham suas redações no âmago do comércio e trançávamos, depois da missão cumprida, um papo cabeça sobre os conflitos da linguagem. Nessa época não sei em que eu me enfiava, mas era bestão que só vendo. Metido a saber da estética, da genética e das artes. Não tinha um isso que periquito roesse, mas me enchia de enxerimentos e me dava como um crítico do fraseado. Gabava-me de ser gramatiqueiro. Expressava sem pena, meu descontentamento ante construções do tipo “a gente fomos pro jogo” ou “traz água pra mim beber”. Taxava essas elaborações como um erro. Um desrespeito ao Paschoal Cegalla.

Meu compadre Miguel, à época concluindo a graduação no curso de Letras, com aquela paciência professoral, e já se anunciando nesse jeitinho persuasivo de mestre, que ele tão bem pratica hoje; em tempo, me libertou daqueles pensamentos malignos e me apresentou às maravilhosas traquinagens linguísticas. Fez-me perceber os fenômenos, as mais variadas arquiteturas que o enunciado assume e que, longe do juízo de estar certo ou errado, é pelo uso instaurado nos nossos dias, a revelação da língua viva. “Inculta e bela”.

E eis que semana passada escrevi aqui sobre uma farinha que estrala no dente. Poderia ser um enunciado estralado. Entretanto, o zelo residual, insensível, casmurro e imponderável, ou mesmo o medo de ser incompreendido, me fez marcar o termo. Que coisa. Que fraquejada. Preciso bancar a naturalidade dos dizeres sem os sinalizadores, sem tirar a bronca, sem as aspas para disfarçar.

Resolvi então me penitenciar hoje explorando esta entidade, este marco do cenário urbano que é o chagão. Traçado tão real e verdadeiro, quanto dissimulado, quando queremos dar um nome a ele.Temos vergonha de chamar o chagão de chagão.

É estrutura ainda bem presente no ordenamento de casas e vilinhas da cidade. Trata-se de um espaço, que pelo comum, separa casas e terrenos de proprietários diferentes, disposto lateralmente às habitações e que serve como acesso alternativo ao imóvel (e afetivo: quando a gente entra pelo chagão, já vara na cozinha da vizinha).

Há uns bons anos, meus colegas de rua, por antipatia ao termo, e não encontrando outra forma de apelidarem este segmento do terreno, por aproximação, resolveram chamá-lo de saguão. Penso que não cabe.

Eu aprecio é a versão libertária. Chagão mesmo. É quase imagem, feição. Arte explicável pela correlação. Se a gente entender este eixo longitudinal (que nos faz, da calçada, já chegar à cozinha para um cafezinho), ser uma grande fissura na pele ordenada da rua, podemos considerá-la como sendo um rasgo, uma chaga de dimensões mapeáveis. Um chagão. Protegido por um portãozinho de trançado débil, ladeado de estacas farpadas, com um cachorrinho que late em agudíssimo alarde quando a gente bate palmas lá da frente, pedindo a atenção d’o de casa.

Ainda me acossa o cartesianismo da gramática. O que torna é que se a gente critica um deslize aqui, acolá, é certo: escorregamos também adiante. É humano. Não temos de que nos envergonhar dos enunciados abonados pelo uso.

Se zanzar pela Pedreira, passa aqui e entra pelo chagão. Se não tiver um cafezinho, já que hoje, tudo está pela hora da morte, a gente entorna um capim santo.

 

 

sábado, 12 de março de 2022

crônica da semana - meu pé esquerdo

 Meu pé esquerdo

Esta Pedreira querida me tem de um tudo. É um bairro completo do hio ao chio. Sai da Pedreira para cuidar das precisões, quem quer. Aqui, de tudo há. Nesse sábado próximo passado, fugi do isolamento e fui atrás de uma farinha da boa, daquela que ‘estrala’ no dente, lá na feira. No caminho, aqui e ali, dei uma guinada para conferir as ofertas dos mais variados produtos disponíveis no comércio, que se espalha pelo estirão de pista tripla da Pedro Miranda. Entrei numa loja de roupas. Peças boas, de acabamento no jeito, preços em conta. Reinei comprar umas coisinhas. Na mesma pisada desisti. Não vou pras partes faz tempo. Não tenho precisão de roupas novas. Taí, bem que dura que só comigo é roupa. Dia desses me surpreendi com uma foto que achei nas redes sociais, de um encontro com escritores, na praça da República, em que estou com uma bermuda que até hoje me serve. A foto é de 2012. Dez anos passados e a bermuda tá ali, na canforina, boinha da silva. Sem um isso de desbotado. E praticamente no desuso, nesses anos de pandemia. Agora que tá amainando o contágio e o medo passando, calha d’eu me sentir destreinado dos passeios... Quer dizer que tem mais tempo de serventia, a bichinha, pela frente.

Além das esquivas no vírus, uma razão, diria, ideológica, me faz abicorar-me na trincheira: nossa guerra doméstica e diária. Sempre fui de esquerda. Daqueles de usar embornal, roupa por passar e barba desgrenhada. Em grupos de igreja, movimento estudantil, práticas sindicais, sempre privilegiei, ante a mais rica sedução, a causa dos fracos e oprimidos. E achava que todas as pessoas com quem me relacionava pensavam igual. Mas quando! Como diria uma pensadora que conheci tempos outros e que deixou saudade: ledo engano.

Hoje, atento ao front, enquanto exercito estratégias de convivência pautadas em vultosas doses de democracia (para não me deixar escorregar à hipocrisia), cuido. Porque vem da parte dos dizeres de mamãe e também das prosas populares: boa romaria faz...

Tá é remoso o troço. A tal polarização não tem mais eira nem beira. A ciência foi tragada pelo vendaval de opiniões ‘colteanas’, e os mais bestiais instintos antes socialmente represados, nos limbos e inconscientes, afloraram e, conscientemente, com justificativas estúpidas estão avançando selvagens sobre a razão, corpos indefesos e pressionando nossa paciência.

Não fosse trágico, o cenário seria risível. Pra espairecer, tem aquela história do papo de bar em que um parça meu, doutor das artes matemáticas, na descontração da tarde e mirando o pôr do sol, afirmou que a partir do raio da Terra e da aplicação do teorema de Pitágoras, seria possível calcular a distância da mesa em que estava com a turma, tomando umas no happy hour, até a linha do horizonte. Adiantou que tudo se resolvia achando o valor de um dos catetos. Logo tomou foi um susto ao ser confrontado por um dos presentes, tido e havido como ser do bem, que o alfinetou dizendo que aquele resultado se dava por causa de uma opinião dele, do meu parça que tem doutorado, diga-se, e que nada garante que a Terra tenha um cateto ou um raio. Ora, raio! Nem o Pitágoras!

Éraste! Chega dá um arrepio.

Entrincheirado, o que me resta é explorar esta Pedreira que me entontece, protegido pelas mangueiras que dominam os canteiros das três pistas. Esta caminhada, quebrando aqui, acolá, para dar atenção a um representante do comércio varejista, talvez diga algo sobre a destreza do meu pé esquerdo.

sábado, 5 de março de 2022

crõnica da semana - a carne mais barata do mercado

 A carne mais barata do mercado

Tudo começou com uma pequena e contornável arenga que, ao calor da hora, desandou para um conflito de honra, besta e inegociável. (Não, nada a ver com a Ucrânia).

Eu estava bem na fila do açougue, era o segundo, quando exatamente na direção oposta, uma senhora formou outra fila, onde ela, logicamente era a pri. Chiei. Não sem esboçar um ar provocativo ela justificou a outra fila dizendo que aquela que eu estava era a da prioridade e a dela, não. O atendimento estava sendo feito ora aqui, ora ali. Senilmente aquiesci.

Quando da minha vez, coincidiu de nos encostarmos juntos no balcão e fazermos, ao mesmo tempo, o pedido. Eu, meio quilo de picadinho. Ela, dois quilos de alcatra cortada em bifes milimetricamente e adelgaçados. O rapaz do atendimento deu preferência pra ela e aí o inferno da convivência, a partilha indecorosa do espaço, o deboche e o estranhamento social grassaram. Bem dizer, fui humilhado, afinal comprar (e pagar os olhos da cara) carne em boa quantidade e ainda em bifinhos graciosos é arte para seres socialmente superiores. E ela fez questão de demonstrar isso ao fazer o pedido, ser atendida de prima, e naquele instante me lançar um olhar elevado, repressor, compressor. Éraste, me senti humilhado ali com minha demanda de meio quilinho de carne de segunda picada, ante aquela ostentação. Imediatamente reagi, mantive a quantidade, mas alterei a qualidade, queria agora o picadinho de carne de primeira, uns tostões a mais, e uma reação que não acabaria ali.

Daquele instante em diante libertei o que de mais leviano, irracional e destrambelhado existe dentro de mim. Fiz juras de vingança, revide à altura. Por agora não, mas deixa eu ver... espera chegar o décimo que vou fazer uma extravagância. Também vou comprar dois quilos de alcatra. E vai ser logo na primeira parcela. Na minha jura, consta marcar a fisionomia, contar direitinho o dia que a mulher vai ao açougue, mirar o atendente, gravar lugar bem de confronte a ela... Quero programar um momento de glória, aquele em que vou dar a volta. Vamos emparelhar de novo no balcão e quando ela pedir a parte dela, peço também a minha. “Também quero dois quilos de alcatra cortados em bifinhos jeitosinhos”, anunciarei soberbo, altaneiro. Cruzaremos os olhares e do meu olhar vingativo sairá fogo, calor, cianeto, vapores cáusticos, pestes, sezões e o mais refinado veneno. Mesmo que isso me custe um tutu daqueles.

Como diria o Belchior, “isso é somente uma canção”. Na real a vida é bem mais dramática e nos dá pouca chance de reação.

O que é certo é que a cada ida ao supermercado, hoje, uma depressão sem par me abate. Escacavio modos e jeitos para entender como estamos varando. Aquela mulher que arrematou quase 90 Reais em bifinhos é uma exclusividade. Uma indecente exceção. O que vemos mesmo, ante nossos olhos lacrimejantes é um meio quilinho disso, um meio daquilo. Isso sem falar na agressão que são os pés de galinha e as bandejas de osso vendidas sem pudor.

Não fiz jura para a mulher que, é verdade, me olhou com um desdém sem fim, quando comprou aquela carne aquilatada. Saí do açougue com meu embrulhinho e a cabeça martelando.

Saí pensando no meu país, na fome que nos espreita. Refleti sobre os esforços que fazemos para pôr a mesa todos os dias em casa, no entanto, me ocorreu que até este esforço está esmigalhado. As oportunidades de trabalho são mínimas. Décimo terceiro para um revide irracional é para poucos.

A carne mais barata do mercado não está no açougue.