sábado, 5 de março de 2022

crõnica da semana - a carne mais barata do mercado

 A carne mais barata do mercado

Tudo começou com uma pequena e contornável arenga que, ao calor da hora, desandou para um conflito de honra, besta e inegociável. (Não, nada a ver com a Ucrânia).

Eu estava bem na fila do açougue, era o segundo, quando exatamente na direção oposta, uma senhora formou outra fila, onde ela, logicamente era a pri. Chiei. Não sem esboçar um ar provocativo ela justificou a outra fila dizendo que aquela que eu estava era a da prioridade e a dela, não. O atendimento estava sendo feito ora aqui, ora ali. Senilmente aquiesci.

Quando da minha vez, coincidiu de nos encostarmos juntos no balcão e fazermos, ao mesmo tempo, o pedido. Eu, meio quilo de picadinho. Ela, dois quilos de alcatra cortada em bifes milimetricamente e adelgaçados. O rapaz do atendimento deu preferência pra ela e aí o inferno da convivência, a partilha indecorosa do espaço, o deboche e o estranhamento social grassaram. Bem dizer, fui humilhado, afinal comprar (e pagar os olhos da cara) carne em boa quantidade e ainda em bifinhos graciosos é arte para seres socialmente superiores. E ela fez questão de demonstrar isso ao fazer o pedido, ser atendida de prima, e naquele instante me lançar um olhar elevado, repressor, compressor. Éraste, me senti humilhado ali com minha demanda de meio quilinho de carne de segunda picada, ante aquela ostentação. Imediatamente reagi, mantive a quantidade, mas alterei a qualidade, queria agora o picadinho de carne de primeira, uns tostões a mais, e uma reação que não acabaria ali.

Daquele instante em diante libertei o que de mais leviano, irracional e destrambelhado existe dentro de mim. Fiz juras de vingança, revide à altura. Por agora não, mas deixa eu ver... espera chegar o décimo que vou fazer uma extravagância. Também vou comprar dois quilos de alcatra. E vai ser logo na primeira parcela. Na minha jura, consta marcar a fisionomia, contar direitinho o dia que a mulher vai ao açougue, mirar o atendente, gravar lugar bem de confronte a ela... Quero programar um momento de glória, aquele em que vou dar a volta. Vamos emparelhar de novo no balcão e quando ela pedir a parte dela, peço também a minha. “Também quero dois quilos de alcatra cortados em bifinhos jeitosinhos”, anunciarei soberbo, altaneiro. Cruzaremos os olhares e do meu olhar vingativo sairá fogo, calor, cianeto, vapores cáusticos, pestes, sezões e o mais refinado veneno. Mesmo que isso me custe um tutu daqueles.

Como diria o Belchior, “isso é somente uma canção”. Na real a vida é bem mais dramática e nos dá pouca chance de reação.

O que é certo é que a cada ida ao supermercado, hoje, uma depressão sem par me abate. Escacavio modos e jeitos para entender como estamos varando. Aquela mulher que arrematou quase 90 Reais em bifinhos é uma exclusividade. Uma indecente exceção. O que vemos mesmo, ante nossos olhos lacrimejantes é um meio quilinho disso, um meio daquilo. Isso sem falar na agressão que são os pés de galinha e as bandejas de osso vendidas sem pudor.

Não fiz jura para a mulher que, é verdade, me olhou com um desdém sem fim, quando comprou aquela carne aquilatada. Saí do açougue com meu embrulhinho e a cabeça martelando.

Saí pensando no meu país, na fome que nos espreita. Refleti sobre os esforços que fazemos para pôr a mesa todos os dias em casa, no entanto, me ocorreu que até este esforço está esmigalhado. As oportunidades de trabalho são mínimas. Décimo terceiro para um revide irracional é para poucos.

A carne mais barata do mercado não está no açougue.

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