Cruzeiros Novos
O
dia 31 de Março é uma data marcante para o país, mas para mim, tem uma carga um
tanto além. Foi o dia em que perdi meu pai. Há tanto tempo. Contados 45 anos.
Na segunda-feira, durante o jantar, juntei meus meninos, engasguei a voz um pouquinho,
as mãos tremelicaram de leve, os olhos ensaiaram marejar: anunciei a dor que
sentia pelo aniversário de morte de meu papaizinho. A reação dos pequenos foi
natural, perfeitamente coerente. Desconversaram e desfizeram o clima
mostrando-se surpresos pela minha sensibilidade fora do tempo. Pelos anos
passados, disseram eles, já era pra eu ter desopilado desse sofrimento.
A
verdade, é que dou, realmente uma valorizada, fantasio. Crio um pesar, até
sincero mas, convenhamos, descabido. No entanto, de jeito e de termo, ainda
sinto um vazio dentro de mim, confesso.
O
aperreio me sacoleja lá por dentro, acho que mais porque nada, absolutamente
nada tenho que lembre meu pai. Pra não dizer que nada há, tenho comigo um
quadro, uma daquelas reproduções de fotografia, muito mal retocada, em fundo
azul desbotado, que retrata meu pai e minha mãe no dia do casamento. Esta
ausência de uma relíquia mais aquela de substância ou afeto me leva à invenção,
me induz a forjar temas e circunstâncias. Muito do que falo sobre meu pai é
prosa criada, ficção. Uma produção alentadora elaborada para me preencher o
coração, para me acudir dos tormentos atávicos.
Um
socorro, se não de provisões, me vem das impressões. E que bom, porque essas,
sim, ficam tatuadas na memória. Minimamente, mas muito confortavelmente, tenho
lá no fundo do meu cocuruto o registro, embora sombreado, da voz de meu pai. E
em recortes muito particulares.
Penso
que se realizaram na minha mente, não nas lonjuras do Acre, porque de lá, além
da friagem, não guardo nada. Mas sim, em uma das vindas do meu pai a Belém,
para visitar a família, por aqui, já estabelecida.
O
que me está envolto nesta espessa bruma de recordações que tenho é um notável
enlevo no jeito de falar. Devia ocorrer assim, quando ele chegava dos ermos da
floresta, dos comboios, das grandes jornadas. Alguém perguntava das andanças.
Ele impostava a voz e desandava em trinados altivos, solenes. Da mesma forma, o
mosaico da memória se reconstrói na sonoridade de suas vindas a Belém. Com
certeza, minha avó, minhas tias, mamãe lhe buscavam detalhes da viagem. E o eco
do tempo se faz em entonações elegantes, perfeitamente modeladas, na expressão
“Cruzeiro do Sul”. Era aquela soberba dicção, confirmando a companhia aérea em que
viajara. Redesenho a opulência de meu pai na hora em que declamava os termos “Cruzeiro
do Sul” e conjecturo, naquela hora, um seringueiro das brenhas falando como um
homem rico, engalanado, referindo-se a empresa aérea como se fosse a própria
constelação.
Outra
locução idealizada é aquela que se refere aos negócios, aos embates nas
transações com a borracha. Diria, o meu seringueiro, ainda aos seus ouvintes
curiosos, demonstrando entusiasmo com o conhecimento que tinha da dinâmica
monetária do país, que agora as operações pecuniárias eram todas realizadas em
“Cruzeiros Novos”. Uma pirotecnia multicor invade meus espaços mais
silenciosos, quando recrio, hoje, a cena de meu pai sentenciando: “vendemos as pélas
de borracha em Cruzeiros Novos”. E a tal bruma nem se faz tão densa. O céu se
mostra azul, a transparência do tempo reduz distâncias e a cadência condoreira,
o ritmo sedutor no falar daquele seringueiro que mal sabia as quatro operações,
nos põe frente a frente, eu e meu papaizinho. E nem parece que 45 anos se
passaram de cá à época dos Cruzeiros Novos.