quinta-feira, 31 de março de 2016

Cruzeiros novos- remix

Cruzeiros Novos
O dia 31 de Março é uma data marcante para o país, mas para mim, tem uma carga um tanto além. Foi o dia em que perdi meu pai. Há tanto tempo. Contados 45 anos. Na segunda-feira, durante o jantar, juntei meus meninos, engasguei a voz um pouquinho, as mãos tremelicaram de leve, os olhos ensaiaram marejar: anunciei a dor que sentia pelo aniversário de morte de meu papaizinho. A reação dos pequenos foi natural, perfeitamente coerente. Desconversaram e desfizeram o clima mostrando-se surpresos pela minha sensibilidade fora do tempo. Pelos anos passados, disseram eles, já era pra eu ter desopilado desse sofrimento.
A verdade, é que dou, realmente uma valorizada, fantasio. Crio um pesar, até sincero mas, convenhamos, descabido. No entanto, de jeito e de termo, ainda sinto um vazio dentro de mim, confesso.
O aperreio me sacoleja lá por dentro, acho que mais porque nada, absolutamente nada tenho que lembre meu pai. Pra não dizer que nada há, tenho comigo um quadro, uma daquelas reproduções de fotografia, muito mal retocada, em fundo azul desbotado, que retrata meu pai e minha mãe no dia do casamento. Esta ausência de uma relíquia mais aquela de substância ou afeto me leva à invenção, me induz a forjar temas e circunstâncias. Muito do que falo sobre meu pai é prosa criada, ficção. Uma produção alentadora elaborada para me preencher o coração, para me acudir dos tormentos atávicos.
Um socorro, se não de provisões, me vem das impressões. E que bom, porque essas, sim, ficam tatuadas na memória. Minimamente, mas muito confortavelmente, tenho lá no fundo do meu cocuruto o registro, embora sombreado, da voz de meu pai. E em recortes muito particulares.
Penso que se realizaram na minha mente, não nas lonjuras do Acre, porque de lá, além da friagem, não guardo nada. Mas sim, em uma das vindas do meu pai a Belém, para visitar a família, por aqui, já estabelecida.
O que me está envolto nesta espessa bruma de recordações que tenho é um notável enlevo no jeito de falar. Devia ocorrer assim, quando ele chegava dos ermos da floresta, dos comboios, das grandes jornadas. Alguém perguntava das andanças. Ele impostava a voz e desandava em trinados altivos, solenes. Da mesma forma, o mosaico da memória se reconstrói na sonoridade de suas vindas a Belém. Com certeza, minha avó, minhas tias, mamãe lhe buscavam detalhes da viagem. E o eco do tempo se faz em entonações elegantes, perfeitamente modeladas, na expressão “Cruzeiro do Sul”. Era aquela soberba dicção, confirmando a companhia aérea em que viajara. Redesenho a opulência de meu pai na hora em que declamava os termos “Cruzeiro do Sul” e conjecturo, naquela hora, um seringueiro das brenhas falando como um homem rico, engalanado, referindo-se a empresa aérea como se fosse a própria constelação.

Outra locução idealizada é aquela que se refere aos negócios, aos embates nas transações com a borracha. Diria, o meu seringueiro, ainda aos seus ouvintes curiosos, demonstrando entusiasmo com o conhecimento que tinha da dinâmica monetária do país, que agora as operações pecuniárias eram todas realizadas em “Cruzeiros Novos”. Uma pirotecnia multicor invade meus espaços mais silenciosos, quando recrio, hoje, a cena de meu pai sentenciando: “vendemos as pélas de borracha em Cruzeiros Novos”. E a tal bruma nem se faz tão densa. O céu se mostra azul, a transparência do tempo reduz distâncias e a cadência condoreira, o ritmo sedutor no falar daquele seringueiro que mal sabia as quatro operações, nos põe frente a frente, eu e meu papaizinho. E nem parece que 45 anos se passaram de cá à época dos Cruzeiros Novos. 

domingo, 27 de março de 2016

crônica remix- Cléo


A hora do planeta


Uma campanha organizada pela WWF Brasil nos convida para, logo mais, às 8 e meia da noite, apagarmos as luzes da casa. O movimento propõe, ainda, que a gente fique, assim, no escuro, por uma hora. Esta manifestação faz parte do calendário anual de ações preservacionistas globais e procura chamar a atenção para o, cada vez mais verdadeiro (e assombroso), aquecimento do planeta. Mas olha! Este blecaute sugerido me caiu bem no dia em que comemoro 4 anos assinando a coluna Bom Dia de O Liberal. (E eu todo etiquetado para uma comemoraçãozinha mais tarde: uns amigos próximos, fãs fidelíssimos, declamação de poesias...leitura das minhas ‘dez mais’ publicadas aqui no Magazine, desde aquele eminente 27 de março de 2006; um destilado and rock pra ajudar na inspiração, um vinil chiando baixinho, ao fundo).
Tem nada não, vou dar um tempo no comprometimento etílico-literário, vou prolongar a nossa reuniãozinha e reinventar a prosa, nesta horinha de breu (puro escuro mesmo, já que nem vela vou acender). Vamos ficar ao tempo e às sutilezas, procurando ouvir a voz do coração, algum recado das estrelas... 
Taí, será um bom momento para refletir sobre as discussões atuais que vingam aqui no Pará, e que envolvem a crença absoluta na utilização dos recursos hídricos como a principal fonte geradora de energia elétrica.
Belo Monte está na ordem do dia. Foi-não-foi, a gente vê uma manifestação contra. Daqui, pra’li, uma a favor. O debate está acalorado (olha o aquecimento aí), está nas esquinas, nas escolas. Alguém tem sempre uma opinião sobre o tema. A construção de uma hidrelétrica no Xingu, se não fizer todas as diferenças no desenvolvimento do Pará, por agora, ao menos já produz uma crescente noção de comprometimento e cidadania entre nós, os habitantes da floresta.
Parece não ter nenhuma relação a usina do Xingu, o blecaute logo mais, com os meus 4 anos na coluna. Mas tem sim. Eu trabalhava em Altamira, nas pesquisas pioneiras para a barragem quando escrevi a minha primeira crônica. Por aqueles tempos, gostava mesmo era de poesia. Séria, romântica, social. Tinha conseguido umas premiações modestas, era letrista do grupo Hera da Terra, transitei até por algumas construções concretas. Mas aí, numa carta para o meu irmão Edir Gaya, que estava aqui em Belém, experimentei um texto que chamei de “uma crônica psico-burguesa”, que trazia um certo despojamento na escrita, inspirado na turma do cartun paulistano (o Angeli havia utilizado a expressão ‘psico-burguês’ para definir um personagem dele). Agradou-me o resultado, e daí... 
O interessante, é que esta crônica, desde aqueles tempos, não ganhou nenhuma publicação. Sobrevive ali, no original, manuscrita em garranchos ilegíveis. Teima em manter-se na escuridão (olha o blecaute aí). E eu, só olhando pra ela, admirando, refletindo e querendo entender como a fiz nascer. Não publiquei, não porque ela é fraca ou anacrônica. Ela até que é bacaninha. Não publiquei, por que, não sei.
(Sei apenas que Altamira, mesmo sem barragem, me mostrou a luz da minha primeira crônica e me mostrou também a energia que brotava do fundo dos olhos da minha querida Cléo. 
Cleonice Farias apareceu pra mim, na hora em que eu regava o jardim da casa em que eu morava em Altamira. E virou flor. Entrou na minha vida para nunca mais sair. Doce e dedicada, foi a mão a me guiar pelas margens do Xingu. Foi a minha família, a minha segurança. Meu amparo e minha lucidez. Fui adotado por ela como irmão, lá em Altamira. Depois, nos encontramos em Belém. Enfrentamos momentos difíceis. Chegamos a dividir um ovo frito no jantar. Mas de jeito e maneira, fomos infelizes por causa dos apertos). 
À noite, vou apagar as luzes de casa por uma hora e vou pensar na importância de uma amizade como a da Cléo, na essência de uma crônica não publicada, na necessidade da luz elétrica, nas intenções da WWF. 
E, sobretudo, vou pensar na relevância de todas as coisas que não sei.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Crônica remix - tomara que chova

Tomara que chova
Se bem me lembro, não foi declarado Estado de Sítio na cidade, mas deu-se tudo como se fosse. Era helicóptero dando rasante, carros pretos circulando amedrontadores, policiais despistados filmando todo mundo, ruas interditadas, olhares intimidadores em cada esquina. Era o julgamento dos 13 posseiros do Araguaia.
O caso ficou famoso, no início da década de 80, porque resultou também, na expulsão dos padres franceses Aristides Camiou e Fraçois Gouriou.
Na época eu defendia uns cobres como instrutor da colônia de férias na Escola Salesiana do Trabalho. Por causa deste emprego temporário não participei de todas as mobilizações. Só me liberei a partir do meio-dia e quando cheguei ao teatro de operações, parte dos manifestantes já estavam confinados (sitiados) na igreja da Trindade.
No dia anterior, o Movimento pela Libertação dos Presos do Araguaia (MLPA), reunido na sede do arcebispado (onde hoje está instalada a galeria Fidanza e o Museu de Artes Sacras), havia deliberado uma grande ação popular em apoio aos presos do Araguaia. Eu saí da reunião, já conhecendo todos os pontos de encontro. Mas o primeiro deles, caiu naquela noite mesmo (tínhamos infiltrados na reunião) e ao passar pela praça da República, fui logo preparando o espírito. A praça, do IEP até a sedutora esquina da Riachuelo, estava tomada de polícia.
A Trindade era a segunda alternativa. Chegando lá, encontrei com minha amiga Elza Fátima e nos postamos em frente ao prédio da OAB. A polícia controlava toda a parte anterior da praça, logo à frente da igreja. Era início da tarde, o sol ardendo e eu não tava gostando daquela história. Percebi que um comandante, do outro lado da rua nos olhava com olhos maus. Chamei Elzinha e propus a retirada. Mas foi batata. Um instante depois o comandante ordenou o ataque. Cães policiais excitadíssimos saíram abocanhando quem encontravam pela frente, inclusive o rapaz que estava bem do meu lado e que não quis correr com a gente. Varamos por trás das Lojas Americanas, entramos pelos corredores e disfarçamos por ali, olhando uma coisa ou outra. Na praça, o pau cantou.
Dali, rumamos para o outro ponto combinado. Igreja das Mercês. Boa parte dos remanescentes da ação já estava lá (os outros ou estavam presos na Trindade ou estavam machucados por causa do confronto na OAB). Na Mercês, havia uma infra. Água, comida, panfletos a serem distribuídos à população. Mas o governo não queria agito de jeito e maneira. Tão logo chegamos na escadaria da Mercês, despontou na esquina um ‘tomara-que-chova’ assim de policiais do Choque. Tudo de metralhadora na mão. A galera não arredou o pé. Eles então desceram e usaram as armas como calço para nos empurrar pra dentro da Igreja. Já pensou se um troço daqueles dispara? Aquilo foi demais pra mim. Dei um passamento. Suava frio, tava pálido. Alguém diagnosticou que era fome. Minha amiga Eliza Sena me levou pra sacristia e me atendeu com uma pratada de feijoada. Tomei um caldinho, mas na hora que eu ia atacar de vera, houve o comando para sairmos pra calçada novamente (ô, povinho de coragem!) e volvi à luta com aquela minha coragem glacial e descolorida. E o Choque de novo calçando... e todo mundo se espremendo dentro da igreja. E foi assim, a peleja, até terminar o julgamento.

No 31 de março próximo passado, tive a lembrança daquele dia. Não esqueço da imagem do cachorro mordendo meu companheiro, da nossa carreira desesperada pelo centro de Belém, do tomara-que-chova, das metralhadoras e dos meus passamentos. Não sei por que lembrei. Acho que por causa desses pampeiros que têm castigado a cidade.

sábado, 19 de março de 2016

crônica da semana- Uri geller

O Uri Geller da Pedreira
Eu sempre desconfiei que  tinha em mim algum poder. Desde aquele dia que repassei pra mamãe toda a sequência de números que consegui lembrar de um cochilo que dera à tarde, ela anotou, jogou e cravou o Corujão na cabeça, sinto que tenho superpoderes. Tudo bem que ainda não sonhei com os seis números da Supermega da virada, mas calma lá com o andor que meu santo é o Francisco, humilde e pobre. Regradíssimo. Milita somente ali, pela raia rasa dos movimentos financeiros miúdos.
Os meus dons estavam hibernando nesses últimos anos. Ando numa pindaíba, numa panemice que não fecho uma pule nem pelos cinco. Mas de uma hora pra outra, pôu! Uma explosãozinha de magia aconteceu em mim.
Olha só essa:
Tenho um barbeador elétrico. Num determinado momento do ano passado, quando precisei do danadinho, ele nem seu Souza. Nem um zunido deu. Pus pra carregar por horas, chega passou de um dia pro outro. Nada. Não funcionou. Dei umas pancadinhas, abri o compartimento, rodei, friccionei, excitei os elétrons no lado positivo da pilhinha na barra do meu short. Liguei e nada. Busquei a ajuda dos universitários, meus meninos também não obtiveram sucesso. Lascou-se! Escangalhou. Não tem mais jeito. Meio inconformado, descartei a maquininha. Qual não foi minha surpresa ao perceber que na queda, ao ser lançada à cesta de lixo, ela simplesmente reanimou. O motorzinho vibrou de novo com força e vontade. Peguei do lixo, o barbeador, aproveitei o momento, acoplei os acessórios e me embonequei.
Não parou mais. Isso foi no ano passado. Após aquele dia, a máquina, sempre que solicitada, não negou fogo. Aceitava a recarga, fazia a missão, era desligada; e noutra e qualquer necessidade mais adianta, lá s’stava ela animada, zunindo e cortando meus pelinhos da cara. Até que na semana passada, pluft! Pifou de novo.
E a reação deu-se da mesma forma: recarga varando o dia, pancadinha de um lado, pancadinha d’outro, excitação dos elétrons... Nada. Nem um pio. Nem um triiiimmm.
O Uri Geller era um israelense que na década de 70, intrigou meio mundo entortando talheres com seus poderes paranormais. Fez e aconteceu pelos quatro cantos do mundo dobrando garfos e facas das mais renomadas marcas de inoxidáveis só com a força do pensamento. Lembro dele no programa do Flávio Cavalcanti, naquele dia, iria atuar à distância, pelas ondas da TV. Eu fiquei em frente à nossa Empire preto e branco, e durante todo o programa massageando meu garfo, mas o garfo não entortou. Detalhe, detalhe.
O que importa é que essa semana que passou foi quando meu aparelho de barbear parou de funcionar de novo. Fiz a tentativas usuais para reanimá-lo e necas de pitibiriba. Aí, lembrei dos meus poderes. Busquei plateia. Chamei a família e anunciei: “lembram que da outra vez joguei a máquina na lixeira e ela tornou?”, provoquei a assistência. Pois foi batata. Foi só arremessar para a cesta que motor zuniu. Eu mesmo me surpreendi. Verdade, sou o Uri Geller da Pedreira! Minha pule não banca nem pelos cinco, mas, tendo uma cesta de lixo por perto, faço que é uma beleza, um motor rodar.


domingo, 13 de março de 2016

crônica da semana - dedo duro

Dedo duro
Não. Não vou denunciar ninguém. Não vou entregar unzinho assim da Lava-jato ou da merenda escolar. O que se dá é que passei fevereiro me atando com uma inflamação que deixou o terceiro quirodáctilo da minha mão esquerda (mais conhecido como dedo médio ou maior de todos) durinho da silva, travado na posição em gatilho, e me fazendo ver estrelas de tanta dor quando tentava esticá-lo.
Tratei o caso como uma surpresinha desagradável de carnaval. Mas a surpresa se prolongou e me aperreou. Baixei em emergências de hospital umas duas vezes, me entupi de anti-inflamatórios, recorri a uma bezuntação com arnica. E o bicho nada de subir. Continuou dobrado e doendo.
Da última consulta que fiz, saí com a missão de fazer uma ressonância magnética, um tipo de exame ainda não experimentado por mim.
Boleiro que fui, obreiro da indústria, com três malárias abancadas no fígado, acostumado estou a esforços físicos, a desgastes de uma cartilagenzinha aqui, um ossinho ali e a uns enjoos após uma rodada mais aquela de cerveja e de uma boa bucanhada numa picanha sangrando. Por essas e outras, há anos me apresento em consultas periódicas para acompanhar a saúde nos famosos checapes. Já sou parça, portanto, das chapas de Raio x, das ultrassonografias, das endoscopias. Agora esta tal de ressonância, olha, não conhecia não. É coisa de outro mundo. De outra galáxia.
Trata-se de uma máquina porruda, parece uma cápsula de filme de ficção. Sabe aquelas cenas na Discovery One, onde os personagens do filme “2001-Uma Odisséia no Espaço” aparecem se movendo em cenários curvos, passarelas dobradas, tudo muito branquinho, tudo muito iluminado e asséptico? Pois é. É assim, o ambiente em que o exame de ressonância se realiza.
Eu até estranhei. Duvidei. Achei demais aquele aparato tecnológico todo só pra avaliar meu dedo duro. Pelo tamanho da máquina, pela severidade do ambiente e pela concentração exigida, aquele acervo inteirinho, reinei, deveria ser coisa para examinar de aorta pra lá. É engenharia pra investigar coração.
Mesmo me julgando indigno, entrei naquele túnel, eu e meu dedão, e ficamos lá um tempão respondendo às vibrações e sendo fatiados pelas ondas de radiofrequência.
Dias depois fui pegar o resultado e abalei. Uma lesão no tendão e tal. Fiquei com medo de ficar travadinho para sempre. Mas fiz o tratamento, estou em fase de recuperação. E redimensionamento de valores. Acho que aquela maquinona toda foi realmente necessária. Aqui, ali, gosto de tocar meu violão. Toda semana digito estas linhas e me entrego ao prazer da criação. O movimento pleno das minhas mãos é essencial para realizações que me enchem de felicidade. Preciso do meu terceiro quirodáctilo íntegro para ded’ilhar umas modinhas na minha viola, preciso dele para dac’tilografar minhas crônicas. Aquele equipamento de ponta que realiza o exame de ressonância, ousei pilheriar, é arte da ciência que tem competência e nobreza para perscrutar o coração. Foi bem aplicado, então, pois que em mim o coração bate, também, na ponta dos dedos.


terça-feira, 8 de março de 2016

dia internacional da mulher remix

Las niñas
Luzia foi uma mulher maravilhosa. Lutadora. Saiu do Acre com quatro filhos agarrados à barra da saia, desembarcou do Domingos Assmar, no porto de Belém com nenhuma esperança. Mas não desanimou. Não se abateu. ‘Virou, mexeu, pintou os canecos’ e conseguiu criar todos os pequenos. Era professora formada, mas trabalhou um tempo com carteira assinada (pouco tempo), como caixa, na antiga padaria Aveirense que ficava de confronte ao Museu, depois ganhou a ruas de Belém, vendendo de um tudo. Se batia, também, com uma barraquinha de confecções na feira da Pedreira (em frente ao Bazar Brasil, como dizia a propaganda da rádio cipó). Embora tenha encontrado tantas dificuldades pelo caminho, minha mãe cumpriu a nobre missão de garantir a vida aos filhos. Agora em 2008, faz dez anos que minha mãe nos deixou. Mas para mim, mamãe não morreu, não. Luzia vive, e muito intensamente, no que sou. Está na minha batidinha diária, no meu entendimento sobre a conquista de cada palmo de vida, está na resistência e na luta contra as porqueiras e as tosses que tentam nos roubar o fôlego. Está na minha mania de andar a pé pela cidade e dita, no meu cocuruto, muitos dos dizeres e fraseados que uso nas minhas prosas aqui na coluna . Sinto minha mãe por perto a me guiar e a me aliviar a alma. Por isso, como dizia a Luzia: “tanto faz José como Cazuza, o que importa é que por onde se enxerga, sempre vou indo muito bem”.
Minha mulher Edna tem a virtude de ser amiga, de ser fiel, de ser companheira. É uma mulher inquieta. Não aceita o revés: vai à luta. Mas tem uma serenidade de dar inveja. Tem a capacidade de contemporizar. Sempre que o aperreio se instala, Edninha está ativa, presente, armada de sutileza e calma.
Conhece todas as minhas fraquezas, sabe dos meus defeitos, reconhece as minhas poucas virtudes e me é a companheira que me “suporta e chega a me amar”. Estamos juntos há 19 anos dividindo momentos felizes, refletindo a qualidade do nosso amor, revalidando os nossos compromissos.
Sabemos do desafio de nos tolerarmos, mas somos românticos e quando o coração fraqueja, quando a cabeça roda, quando o corpo cambaleia, busco na vitrola os argumentos dos versos cantados pelo Chico Buarque, e faço deles a minha remissão e a minha expressão de carinho: “Amo una mujer clara/ que a mim me ama/ sin pedir nada/ o casi nada/ que no és lo mismo/ pero és igual...”
E assim renovo a certeza de que “Soy feliz,/ soy un hombre feliz.” Amaranta Maria chegou assim, trazendo o charme estilístico da aliteração no nome. Para mim foi uma luz, uma prova da vida eterna, da reedição da esperança. A chegada de Amaranta representou pra mim a confirmação da “ânsia da vida por si mesma”. Minha filha nasceu com os olhos negros e graúdos dos Sodreres e herdou a boca avermelhada e bem desenhada da avó Luzia. Veio ao mundo para prover a minha alma de mais força feminina.
Ganhou o nome das páginas do romance do Gabriel García Márquez “Cem Anos de Solidão”. E é, verdadeiramente, uma menina ilustrada. Tem a elegância da fidalguia e o destempero descortinado da plebe. A tez escandinava inspira certa distância, mas ao mesmo tempo desperta encanto. Amaranta é amável, severa, sensível, implacável, doce e amara... Maravilhosa e sabiamente paradoxal.

Quando eu vi, na folhinha do ano, que meu dia aqui na coluna cairia exatamente no dia em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, falei, legal! É a chance de homenagear as mulheres da minha vida, atomizações luminosas de todas as mulheres do mundo: minha mãe Luzia, minha mulher Edna e minha filha Amaranta Maria.

sábado, 5 de março de 2016

crônica da semana - bandido doce

Cabrita, o bandido doce
Não foi nem uma, nem duas vezes que o encontrei muito doidão, chorando, largado no leito da calçada do Josino Viana. Era sempre assim quando estava na rua, livre. Entre uma ação e outra, enchia a cara. Ativada pela reação etílica, reinava no íntimo dele a mais dolorida e emocionada reflexão. Ficava jogado, escorado no muro da escola. Os moleques passando, mexendo com ele, tirando onda, avacalhando, fazendo rimas com o ‘ita’ de Cabrita. Ele nem seu souza. Fazia um resmungo vazio, tirava uma distância no olhar, vislumbrava uma lembrança, uma tristeza longe. Chorava. As pontas dos dedos, algumas cicatrizando; outras, ainda em carne viva, resultado dos corretivos, diziam, recebidos na última temporada no pátio da central. Eu era moleque, andava por ali todos os dias no caminho para a Aparecida. Tinha motivos para ter medo do Cabrita. Mas não. Passava por ele devagarzinho, imaginava o que ele estava sentindo. O que me ocorria era uma compaixão infantil, um altruísmo pueril. No meu pensamento, recriava a personalidade dele, reestruturava-lhe a índole. E isso me fazia crer que ele era um bandido doce.
Porque malino mesmo não era. Era um oportunista. Vagava pelos quintais na alta madrugada, espreitava galinheiros populosos, atinava para uma bicicleta largada no chagão, uma roupa esquecida quarando, analisava a porta das casas pra ver se não tinha um ferrolho empenado, uma tramela girada, trancas mal trancadas que deixavam as portas entreabertas; procurava por bandas de janelas pensas e separadas entre si. Aproveitava as chances e subtraía um bem menor, uma quinquilha para vender ali adiante e usar o dinheiro para financiar dias e dias de porre. Nem consumidor de droga ilícita era. Nunca se ouviu dizer que portasse uma arma. Uma faquinha de pão sequer. No máximo recorria a um pé de cabra para forçar uma ou outra proteção que lhe impedisse a ação. Quando descoberto, corria. Rompia as cercas, pulava muros, dispersava a cachorrada com pernadas no qual pega, varava numa rua estreita, cambava para os escurinhos e desaparecia nos becos.
Era chamado de Cabrita, não como cabrito, de vez que assim previne o gênero do meliante. O apelido veio exatamente do som que ele emitia nas sessões de choramingos. Um homenzarrão. Um teba d’um macho de mãos gigantescas, pés gretados e tenazes, gogó saliente, olhos vermelhos e graúdos. Mas quando chorava, entoava um berrinho fino, agudo, numa frequência e numa tonalidade que destoava categoricamente da sua envergadura. Não era gemido de bodão nem de cabritinho. Diziam os populares que mais parecia um lamento de cabrita. Pegou. Virou Cabrita, para mim, o bandido doce.

Certa vez, estava na antecâmara do sono, junto ao muro. Desviei caminho e cheguei pertinho dele. Andava sumido, tirando um tempo na prisão porque foi pego roubando uma bateria de cozinha completinha. Tinha reaparecido por aqueles dias. Nas mãos umas tiras de pano amarravam debilmente os dedos feridos. Era verdade, me certifiquei. Arrancavam as unhas dele na cadeia.