sábado, 27 de dezembro de 2014

crônica da semana - antologia e Cláudio Cardoso

Crônicas para Belém
Tenho ouvido coisas...
Tinha o Cláudio Cardoso como romancista e poeta dos bons. Com um quê a mais: não é só do riscado, não. Tem uma pegada para a poesia falada. Um pendor ímpar para declamar poemas. Fico impressionado com a memória e o discernimento ao declamar poemas longos, principalmente aqueles pautados em cordéis ou rimas encarreiradas. Quando vem aqui no Sarau do Quintal, dá um show. Diga-se até, que Cláudio é sócio-fundador do Sarau que fazemos em casa há quase dois anos. Empresta seu talento, notabiliza-se pelo suprimento de vinho, e arrisca machucar o couro do tambor, nas nossas rodadas mensais de samba e poesia.
Desde 2013, estamos ombreados na produção literária, também. Meus dois últimos lançamentos, fiz com a editora do Cláudio. Para mim, foi um salto e tanto. A parceria me rendeu bons resultados.  Saí de umas tentativas amadoras, um tanto românticas, de produção, para um patamar mais aquele de elaborado. Montei times de responsa, busquei patrocínio; fiz divulgação, cacarejei sobre minhas obras, bati perna na imprensa, cisquei pacas nas mídias sociais. Sob a batuta do Cláudio, migrei de 10,  20 livros vendidos, para parentes e amigos, nos lançamentos que fazia antes, na Feira do Livro; para mais de 200, nas duas recentes edições. Alcancei um número bem maior de leitores, neste novo jeito de publicar. Não sou mais um traço na estatística literária doméstica, me acheguei aos bambambans, fiquei ali, bafejando o cangote dos mais lidos, dos mais queridos, graças aos talentos empreendedores de Cláudio Cardoso. E confesso sem nenhum remorso, que para este retirante do condado do Xapuri, ser mais conhecido, é muito bom. Ah, como é.
Tenho ouvido coisas que me deixam pávulo, pávulo...
Nas prosas que entabulamos pelos saraus da vida, descobri o Cláudio Cardoso, também como moleque pedreirense. Nos reencontramos explorando os corredores do Mercado Municipal e fazendo carretos de entregas pelas baixadas da Pedro Miranda. Reconhecemos nossas pegadas, nos caminhos sedutores que levavam às águas friinhas do igarapé do Zé, do Três Tubos. Nos descobrimos simpáticos às mesmas desobediências juvenis, como as sessões proibidas do Paraíso, ou uma errada noturna pelas esquinas boêmias da Angustura, da Lomas. Tudo escondido da mãe. Mas nossa conjugação, o nosso acerto de memória mais aprazível é aquele que nos coloca frequentando a piscina do Satélite, nas tardes distantes de uma Belém, ainda apegada à primeira légua. Cláudio é o testemunho fiel e inquestionável de que aquele ambiente molhado sacudido pelo Carimbó não é uma criação do meu cocuruto. A piscina do Satélite existiu mesmo.
Cláudio está totalmente empenhado agora, no lançamento de um livro em homenagem ao quarto centenário de Belém. A “I Antologia de Crônicas – Belém 400 anos” está no jeito. Conta com uma plêiade de escritores talentosos e que traduzem o amor pela cidade em textos encantadores e verdadeiros.
Tenho ouvido coisas que me deixam pávulo mesmo. No sarau que a gente fez no início de dezembro, Cláudio tomou a palavra, apresentou o projeto da antologia, e discorreu sobre os motivos que o levaram a pensar a crônica como forma literária de homenagear Belém. Quando acabou de falar, meus olhos estavam marejados. Muita emoção.
A crônica de final de ano é uma homenagem a este cara batalhador, competente, poeta refinado. Que me deu a honra de participar de um livro que homenageia Belém, a cidade que amo. Ao Cláudio Cardoso, desejo que o ano novo traga muita luz para a “I Antologia de Crônicas – Belém 400 anos”. Para todos nós, toda arte, saúde e paz.



sábado, 20 de dezembro de 2014

crônica da semana - corrente de natal

Corrente
Ana da dona Jucélia era dona do meu coração. Nos beijávamos beijos infantis, ao pegado das cercas de estacas ferpadas que separavam nossos quintais. Seu Paulo tinha um caderninho onde anotava os “por conta” e os “em a ver”, com letras e números garrafais. Enedina era morena de cabelo escorrido e Roseana, miss. Piroró era neguinho oxítona e danado. O mais novo de 8 irmãos. O pai, Seu Três por Nove, vendia picolé e criou os meninos, sozinho, assim, vendendo o extra e o cremoso. Chita, toda vez que caía nas garrras da policia, tinha as unhas arrancadas. Depois, posto na rua, chorava. Um homem daquele tamanho, chorava na esquina da Lomas, de dor e humilhação. Era um ladrão doce.
Maria de Jesus me ensinou o beabá. Minha fascinação. Usava shorts prafrentex e me chamava de Pequenino. “Pequenino, já fez o dever?”. Um encanto de fessora. Tomava bença dela. “Pequenino, pra que lado é a perninha do a?”. Manoel Josafá era saliente. Ficava lá atrás, fazendo coisas, pensando indecências. Todo mundo sabia. Na hora da merenda, custava a se levantar. Ivo. Ivo via a uva. E...
Dona jarina via a princesa dentro da garrafa de água benta. Nas tardes quentes de agosto, se arrumava, pintava os lábios espessos, se enfiava em colares de contas. Sobrepunha um turbante de azul bem clarinho sobre os cabelos ralos. Chamava a gente da janela, dispunha a garrafa contra a luz e descrevia uma floresta encantada, com cachoeiras, pássaros, lajedos inclinados e, lá no fundo azul, a sereia. A rainha do mar. Eu vi.
Otávio já era grande e não sabia ler. Não tinha, porém, substituto na ponta direita do Internacional da Mauriti pra ele. Não fosse ter que bater marreta na construção da Casa do Bife, pra sobreviver, seria um grande jogador de futebol. O irmão variava da cabeça e à noite perturbava a esquina boêmia da Pedro Miranda com a Angustura. Assustava as meninas que batalhavam ali pelo Shangrilá, pelo Rosa Vermelha. Tinha uma voz agressiva. Quando se esquecia de tomar o Gardenal era recomendável guardar distância dele. Roubava toca-fitas de carro e não bebia. Nunca foi preso por roubo. Por desordem sim. Era um desordeiro empedernido. Irrecuperável. Já, Demerval, não. Este, de vez em quando caía. Não de graça. Resistia. Liderava refregas. Tinha um bando. Roubava carros. O corpo era todo marcado de bala. Umas cicatrizes arredondadas enegrecidas. Era imortal. O pai, caminhoneiro.
Tarcila cresceu rápido depois que teve papeira. Aos treze anos endoidava a molecada com um corpo de entontecer, uma faceirice, um odor primitivo, uma sensualidade abrasadora. Mas não queria os meninos da rua. Um dia um carro estacionou na frente da casa dela e perdemos Tarcila para um boy da Bailique. A mãe de Tarcila era mais bonita que ela. Enviuvou três vezes, continuou bonita e virou sogra de menininho rico.

Vitório pichava muro com frases contra a ditadura. Era franzino, usava óculos fundo de garrafa. Ninguém dava nada por ele. Era um guerreiro, porém. Tinha carisma. Atraía as pessoas. Conquistava seguidores com aquele jeitinho, aquele caminhar ensimesmado, aquele ar ausente. O que todo mundo desconfiava, era que ele vivia maquinando. Queria porque queria derrubar o governo. Certo dia, apareceu para uma reunião importantíssima, acompanhado de uma loura pra lá de bonita. Mãos dadas, troca de olhares (e ele que era tão disperso, atento a ela estava a cada instante). Era Natal. Era Ana da dona Jucélia. Entrariam para a clandestinidade depois da ceia e da reunião. Quando deu meia-noite, sumiram por um buraco na cerca que separava nossos quintais e meu coração explodiu. Bummm!

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Cronica remix- Bubuia

De Bubuia

A foto de capa d’ O Liberal, capturada de um cordial dia 25 de dezembro, mostrava uma garota flutuando nas águas do furo do Nazário, a rebocar uma boneca.
O furo do Nazário é um braço de rio que corta boa parte da Ilha das Onças, naquele dia, palco da campanha de Natal idealizada por um grupo de cidadãos bem intencionados.
A empreitada procurava levar a alegria do Natal às crianças ribeirinhas. Nobre atitude, mas com um tropeço grave no enredo: o direito aos presentes era, por vezes, condicionado aos mergulhos dos pequenos.
Quando o barco em que eu viajava cruzou com o do pessoal da boa ação, dei que os presentes estavam sendo jogados sem o exigido compromisso com a pontaria e, por isso, quase sempre, amerissavam. Isto fazia com que a garotada se abalasse a nado, ao encontro dos brinquedos cruzando o  banzeiro provocado pelas embarcações.
Uma cena que se repetiu de fora a fora pelos furos do Nazário, Piramanha e em outras tantas entradas de água daquelas paragens.
Naquele dia, topei com dois barcos da trupe filantrópica, eu, indo de Belém para Barcarena, eles, no sentido de Belém. E o que presenciei buliu com a validade da intenção.
O ato de deixar os brindes à deriva, tenho pra mim, não fazia parte das vontades dos organizadores, mas foi  determinante para evidenciar o caráter fluido, literalmente líquido, das relações possíveis entre os embarcados urbanos, e os outros, os ribeirinhos e, ainda, para revelar a duvidosa produtividade da tarefa (dava pena avistar, pelo caminho, de quando em quando, um pacotinho, de bubuia, sem criança para alcançá-lo).
Faço rotineiramente essa viagem que, forjada pela beleza da Ilha das Onças, deixa de ser uma viagem e vira, sempre, um agradável passeio.
Por estes dias, cruzei a ilha de novo, pelo furo, e a mim, me veio a imagem da garota emergindo com sua boneca pescada das águas, parecendo uma Iara vencida, um mito inocente, indefeso, abatido por plásticos encantamentos, dissolvido nos ácidos equívocos da benemerência.
Procurei, agora, longe dos humores natalinos, sonhos infantis pelos escaninhos da ilha, mas encontrei o arranjo utilitário dos açaizais, a funcionalidade dos matapis estrategicamente localizados, as criativas (mas impotentes) engenharias montadas contra a agressiva erosão que, implacavelmente, redesenha as margens. 

Dei que ali, são necessários mergulhos diários, não em busca de preciosidades impermeáveis, sem pontaria, largadas ao sacolejo da maré, mas em busca da sobrevivência e de um modo digno de encarar a realidade. Uma realidade diferente, especial, poucas vezes entendida, outras tantas, distorcida. Um modo de prover a vida, que longe dos sonhos estratosféricos inspirados pelo desvario consumista (aqueles sonhos relegados às veredas do aningal), está prudentemente subordinado às limitações impostas pelas margens dos rios, que, antes de serem uma provação (como, equivocadamente pensamos), são, por certo, uma bênção. 

sábado, 13 de dezembro de 2014

crônica da semana- lata de carne

Lata de carne de lata
Estávamos verdinhos em Belém. Recém chegados do Acre, trazíamos casaquinhos de lã, costumes, dizeres e perceberes praticamente incompreensíveis. Certo dia, fomos eu e minha irmã Ana Valéria, mais velha e já se desenrolando na comunicação belemense, providenciar o jantar, na taberna do ‘seu Manel’. Quando o português se aproximou do balcão e nos perguntou o que queríamos, minha irmã disparou: “uma lata de carne de lata”. Pasmo lusitano de esquina. Incompreensão e chacota. Manelis não entendeu aquela presepada. Um pleonasmo comum no Acre, desabando sobre o balcão do portuga sem muita cerimônia. “De cortar”, completou Valéria. Uma lata de carne de lata de cortar. Aí ele, tirando a intenção por um lado e dedução por outro, foi até a prateleira, pegou uma lata de carne em conserva, passou um papel de embrulho, cobrou os cabrales da conta, passou o troco, virou-se para a mulher e comentou algo como “esses indiozinhos do Acre são mesmo diferentes, ora pois, pois”. E nós demos para trás, pelas calçadas pouco iluminadas da Pedro Miranda porque mamãe já estava num pé e noutro para ajeitar o nosso de cumê.
Uma herança dos ermos da floresta, que aos poucos fomos deixando para trás, essa de comer enlatados. Perfeitamente explicada pela pesquisadora Cleusa Maria Damo Ranzi no livro “Raízes do Acre...”, que estou relendo e me assustando, me indignando com a peleja dos meus ancestrais por aquelas seringais.
“Entendia-se que o tempo consumido em caça e pesca era prejudicial à produção, prevalecendo, em conseqüência, a importação geral de alimentos...o extrator da selva, independente da fauna rica e saudável que o envolvia, era forçado a consumir conservas como ‘carne de bife, salmão, sardinhas portuguesas, queijos da Holanda, manteiga francesa’, o que era lamentável, pois a maioria dos produtos eram...prejudiciais à saúde, além de comprometer a sua qualidade nutritiva.”
O fragmento, que integra a dissertação de mestrado da pesquisadora Cleusa Ranzi (e que olha só, é gaúcha), sintetiza o perverso modelo de produção dominante no Acre, na extração da seringa, que se sustentou na exploração implacável do trabalho do seringueiro.
Esta relação de dependência gerou um fenômeno que, eu que nem sou especialista nem nada, identifico assim, de prima, como um desequilíbrio na balança comercial contra o seringueiro. Vendia um produto barato para o patrão, comprava um bem mais caro e o resultado disso era um “em a ver” sem fim. Uma dívida eterna.
Conta-se nessa fieira de domínio, que o homem da floresta não tinha gostos próprios, sensações próprias, desejos só seus. Corpo e alma estavam a serviço do látex. Um negócio, que além de malinar economicamente, trazia também a submissão ao supérfluo; o vício ao descartável. E às vezes, muita peia. Uma lembrança rala me traz meu irmão de criação subtraindo uma lata de leite condensado, dessas importadas, da prateleira, fazendo dois buraquinhos simétricos e tornando tudo de gute-gute, escondido do meu pai. Uma senhora surra levou, mesmo se reclamando de desarranjo e cólicas por conta do exagero. Papai não contou conversa. Baixou o cinto. Mas quem disse que o pequeno se emendou. Daqui pra’li era outra lata. Outra surra. Leite importado, ora.
Quando desembarcamos no galpão Mosqueiro/Soure, naquele ano que nem me lembro mais de tão distante que está na minha memória, éramos a extensão do seringueiro que não conhecia o tão indicado, hoje em dia, prato colorido. Éramos conhecidos distantes das hortaliças, dos tubérculos, dos frutos e das saladas. Nossa onda era mesmo a lata de carne de lata.


sábado, 6 de dezembro de 2014

Crônica da semana- Café Bolonha

O Porto é logo ali no Veropa
Agora tá bem mais fácil da gente ir pra Portugal. É só pegar o Jardim Europa ali na Jibóia Branca que chegamos lá rapidola....
Eita que piadinha sem graça essa, né, mas vá lá que seja, tinha que começar esta crônica de algum jeito. Fiz essa piada aqui em casa no meio da semana, peguei uma sonora vaia, de tão desenxavida que é, mas me valeu, e tanto, que a trouxe comigo para abrilhantar o sábado. E já que nem é tão descartável, a minha piada, vou usá-la como gancho para adiantar as semelhanças ou como dizemos tão graciosamente por cá, as parecências da beira da Guajará nossa de Belém com as margens requintadas do Rio Douro, na cidade do Porto em Portugal.
Em 2012, aproveitando um repente que a classe operária tava rés o paraíso, juntei meu charme, uns trocados e fui bater na Espanha. Em tudo por tudo, ficou bem mais perto e mais barato, descer na cidade do Porto e depois ir de carro para o litoral oeste da Espanha, região onde passaria minhas férias. De prima, logo na descida do avião, pautei minha passagem por aquelas plagas dando um rolé pela beira do Douro. Foi então que reparei nos traços que nos unem. A foz do rio Douro lembra, pela forma e pelo encanto, a foz do Piry, espaço que nós belemenses nos acostumamos a chamar de Ver-o-Peso. Guardadas as proporções pertinentes, o visual no encarreiramento de bares, e as ofertas de repastos estrelados por peixes e mariscos, são tentações comuns tanto na beira daqui quanto na beira de lá. Destoa da composição, porém, o calorão de Belém e nos distancia, de vera, do estuário lusitano, a ausência do bom vinho. Porto é uma cidade friinha em Julho e regada... do tinto ao branco, muito bem regada.
As semelhanças se dão, ainda, no franco congraçamento, no farto folguedo, no ir e vir dos turistas. No desce-desce dos barris do genuíno vinho do Porto, na mesma cadência que ocorrem as atracações e os desembarques das rasas de açaí da ilha das Onças.
Prestei muito reparo na arquitetura da cidade. Se eu fosse um paraense metidão e não desse trela para o desvelo do tempo, diria que o Porto tem o desenho de Belém, ali naquela orla. Mas não sou, e o tempo não me perdoaria pela indelicadeza. Ao que se torna e ao que deixa, Belém, sim, com seu casario colorido na outra  margem, com os azulejos de fachada; com casas de pé direito alto,  paredes geminadas e platibandas assinadas, Belém sim, é escritinha o traço e o jeito portuense de ser e de aparecer.
Uma parecência de destaque são os caminhos que levam à beira-rio. Ruas estreitas, de calçamento em lioz, margeadas por pequenos comércios. Movimentadas, mas nem tanto. Pelo comum, não exibem a claridade nem o alarido da beira. Há um silêncio relativo, uma sombra indefinível e surpresas boas no caminho perpendicular que leva ao rio...
Estive no Porto em Julho de 2012. Naquele final de ano, os amigos que me abrigaram por lá, vieram passar as festas aqui em Belém. Na véspera de Natal, eu os levei para bater pernas por todo o centro histórico. Viramos e mexemos por lá. Em dado momento, varamos na Ocidental do Mercado. Ao pegado do Mercado de Ferro, demos no Café Bolonha, lugarzinho diferente dos vizinhos varejista, com traços coloniais, decorado com azulejos e simpática disposição de balcão e móveis. Entramos para provar uns acepipes. Meus convidados apreciaram os sabores, mapearam o espaço, estabeleceram as relações, perceberam parecências e cravaram: “estar aqui é como estar em um restaurante do Porto”.
Não disse: Agora tá mais fácil da gente ir pra Portugal. É só pegar o Jardim Europa ali na Jibóia Branca e é rapidola que chegamos....


quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

crônica remix - Michey Rouke

Salvo pelo gongo
Nos últimos anos venho me acostumando, perigosamente, com os confortos da tecnologia. Foi-não-foi me estiro na rede e fico pra lá e pra cá, de controle na mão, selecionando, voltando tudo ao começo, adiantando para um final feliz, dando uma câmera lenta (era assim que a gente chamava antes o tal de slow motion) naquela cena empolgante ou naquela seqüência mais eletrizante. Perigoso esse lance de ficar refém das comodidades que o DVD proporciona. Sinto muito, por esta minha pouca resistência, porque o que eu dou valor mesmo é no escurinho do cinema.
Gosto do clima, do ambiente climatizado, do som dolby stereo,   do gigantismo das imagens e, é certo, desta indisfarçável nostalgia que emana dos quatro cantos da sala escura.
Esta minha inclinação para a sétima arte vem lá dos idos de oitenta e poucos quando eu fazia de um tudo para entrar nas programações do Paraíso (ou numa alusão mais historicamente justa ao espaço, do “Cine Paraíso”, aquele que ostentava ao pé da telona a frase: “faça deste cinema o seu paraíso” e ao final dos dizeres exibia uma pintura pré-renascentista de Eva fazendo malabaris com a maçã e espezinhando a serpente). Desde lá, fico prestando reparo nos grandes atores, nos diretores mais geniosos, nas atrizes mais versáteis.
Dessas nuances da interpretação, acho  o caráter camaleônico dos atores, um valor dos mais impressionantes. Aquela interpretação do Robert de Niro em Touro Indomável é coisa para se perpetuar na história do cinema (também com a direção draconiana do Scorcese, interpretar um lutador que começa o filme como peso pena e termina como um obeso mal educado e desregrado era a missão única de de Niro. Perfeito. Perfeito). Para estes casos, o cinema tem reservado alguns insuperáveis talentos. Para outros...
Acho que o drama sobra para aqueles atores que têm que se superar. Para aqueles atores que ficam marcados por um personagem e que dele, não conseguem se livrar ou, se conseguem, demoram um tempão para apagar qualquer traço daquela interpretação. É clássico o caso de Sean Connery, o eterno 007 e o mais charmoso, aquele que mundeava qualquer vilã com aquele arrasador soerguimento de sobrancelha. Connery superou o estigma de Bond e reapareceu pleno, íntegro como o frei Guilherme de Baskerville em O Nome da Rosa, referendando uma brilhante carreira.
Um caso que merece destaque é o do ator Mickey Rourke. Ele arrasou nos anos 80. Mas sempre em papéis extravagantes. Restaurou a rebeldia em “O selvagem da motocicleta”, reinventou as funções do morango e do cubo de gelo em  “9 e ½ semanas de amor” nas tórridas cenas com a louríssima Kim Basinger e  fez o atormentado detetive Angel em “Coração satânico”  (com brilhante direção de Alan Parker).
Acontece que depois dessas estripulias todas, o pobre do Mickey Rourke se abalou pra fazer o papel de São Francisco, em “Francesco”. Aí rolou aquela coisa do estigma. Com aquele olhar pidão, com aquele cinismo e com aquele semblante animal, como o ator iria resistir a um papel límpido, puro de santo. E o diretor, muito amigo ainda inventou uma cena em que o pobre, tentado pela carne, se purga com uma aplicação impiedosa de um chumaço de gelo sobre as partes. Pronto, um pé pra reviver a história do gelinho com a Kim. Resultado. O homi abandonou a profissão e se meteu no boxe.

Passou um tempo sumido das telas. Soube que voltou agora com o filme "The Wrestler"  e com a cara toda remendada de boxer, arrancou aplausos no Festival de cinema  de Veneza. Dizem até que é sério candidato ao Oscar. É, podemos pensar que o Mickey Rourke foi salvo pelo gongo.