sábado, 27 de novembro de 2021

crônica da semana- Margarida

 Margarida

Não sei do sucedido que causou aquele alagamento no canal aberto para receber os tubos. Virou piscina da molecada. Era a época de instalação da rede de esgoto naquele circulado que envolvia Marco e Pedreira. A Mauriti tinha rasgos imensos salteados a cada quarteirão e bem na frente da vila em que eu morava tinha o buraco com água jorrando aos emboléu. O custo era a turma chegar do intermediário, ajeitar uma merenda e logo, logo, mergulhar no buraco. Lá pelas tres’orinhas, quando os operários chegavam, a animação era grande. Moleque pulando de cabeça, o mais péssimo brincando de afogar o mais quietinho, outros só nas braçadas de um lado a outro. O carão vinha sem regra: “saiam daí, seus filhos de deus, seus filhos duma...”. Era o capataz da obra que engatava uma carreira na nossa direção com uma varinha pra lambar na costa dos renitentes.

Mais tarde, embaixo do pé de acácia, a gente com as pernas gris de tuíra, tentava entender o extremismo do capataz que dava um ralho envolvendo o pai eterno, e ao mesmo tempo nossa mãe, no caso, com a mesma ocupação de Maria Madalena. Eu, heim, homem destrambelhado aquele.

Em todo o estirão da 25 de setembro, havia o grande rasgo. Eu, que era da onda, da traquinagem, e que estudava pra’quelas bandas, quando me invocava, mergulhava naquele subterrâneo à altura da Lomas e só saia na frente da escola. Era uma aventura. Dava arrepio, uma desconfiança, mas era bom que só aquele sumiço terra à dentro.

Na maioria das vezes íamos em dois, eu e Tato. Ele, pariceiro de rua e de caminhadas pra escola.

Não me agradava muito da companhia.Tínhamos algumas diferenças. Era da bandalha, do ramo da malinação. Conservava costumes bizarros. Já beirando os 15 anos, ainda saía de dentro da casa dele, do puro dentro de casa, pra mijar na rua, na beira da sarjeta.

Tato tinha um comportamento que exigia da nossa patota, um pé mais atrás. Arrumava confusão, inventava molecagem pesada no escurinho da noite, como riscar carros dos vizinhos, assustar mulheres desacompanhadas arremedando uma cobra com réstia de cebola debulhada, ou simplesmente jogar pedra a esmo, atingindo telhados próximos. Inúmeras vezes fui dormir com o couro quente por paga das aprontações de Tato.

À noite, quando a gente se aprontava e formava um grupinho para uma prosa leve na frente do Paraíso, ele procurava destaque. Atentava tanto a mulher da bilheteria, que ela não agüentava, andava até o portãozinho e o deixava entrar. As conquistas o faziam sentir-se poderoso, irresistível. Era do calibre dele. Mesmo fazendo o bem, parecia que ele fazia o mal. Alguém precisava ir pro Ponto Socorro, com um golpe no pé, era o primeiro a se apresentar com uma bicicleta para levar o acidentado. Se tinha uma subscrição era ele que levava o papel de casa em casa. No entanto, o vi partir o beiço de um menino com um soco lá no Areal e depois esfregar a cara do pequeno numa poça de água imunda por causa de uma rixa à toa na pelada do sábado, e ainda outra vez, o presenciei quebrar um garrafão de cinco litros de vinho e espalhar os cacos em todo o gramado da Duque só porque a grade dele perdeu a vez.

E era com ele que eu me embrenhava pelos corredores subterrâneos da rede em obras. Era a década de 70, os anos de chumbo. Quando chegávamos à escola e formávamos para o hino, ele era um menino patriota, com todo entusiasmo, com todo o garbo, com toda a pose. Era o primeiro da fila. Sentido, mão no peito a entoar “do que a terra, margarida”.

sábado, 20 de novembro de 2021

crônica da semana- a cidade é assim

 A cidade é assim

Quando as torres do mercado do Ver-o-Peso se mostraram em estilo  art noveau  no horizonte, eu, molequinho das brenhas do Acre senti um pressentimento, uma coisa, uma aproximação de almas.

Foi bater o pé no galpão Mosqueiro-Soure e me senti em casa. A cidade entrou em mim com todos os seus temores e prazeres e eu entrei na cidade querendo ser semente, querendo germinar.

Belém para mim é liberdade e amor. Céu outro, brisa outra, de través, flanco oriental da Amazônia, vento nordeste, clima que subverte. Sopro de revolução que converte à fé mundana e à desconfiança sagrada. Um rio de verdade e intenções. Guajará, Guamá, rio-mar de desafios diários. De conquistas valentes, covardes frustrações. E calor. Muito calor.

Ando de prosa com esta cidade desde que tempo. Desde que desembarquei nas docas do Ver-o-Peso, nos damos a boas conversas. Sem faltas ou transbordamentos. Sem reservas nem afetações. Tudo na mais pura sinceridade. Não nos permitimos enganos.

Por essas intimidades e pelo desvelo que nos oferecemos, entendo. Entendo que os tempos são outros.

Já dei de tirar cismas e curiosidades sobre esta cidade. Virei e mexi cada cantinho e a qualquer hora. Ocorreu d’eu me perder pelas ruas oblíquas da Cidade Velha, e de me achar no emaranhado de canais na baixa da Radional. Sumi, certa vez pelas vielas do Jurunas e só me foram achar dias depois com um sorriso deste tamanho no rosto. Entre Telégrafo e Sacramenta, dei aula de Desenho. Tracei fiações semirretas de canções e triângulos retângulos de dança e ritmo. Pras bandas do Curió, assobiei melodias de encantamento. Em Terra Firme mergulhei Iara-Guamá no Tucunduba e boiei boto-Tucunduba no Guamá. Meu cantinho, indo de samba e vindo de amor é a Pedreira.

A cidade nunca fez zanga comigo. Vez alguma me machucou ou me maldisse. Caí em alguns buracos traiçoeiros, reinei com gangues e tribos, entojei antros de perdição. Amei antros de perdição. Reinei ódio e admirei de paixão. Reconheço reveses. Porém, penso que nos equilibramos eu e minha Belém. Na tristeza, na alegria, na pobreza, na riqueza, na dor... em companhias compulsórias e também em sagrada solidão.

Nunca tive medo de Belém.

O recolhimento e os novos costumes que nos são impostos pelo medo invencível do vírus Corona, desandaram a conversa boa que tenho com a cidade. E agora sinto um tiquinho de medo, um receio prudente dos repentes que esta cidade inspira.

Um medo novo. Uma atenção especial, Um detector de comportamento sempre ligado.

Voltei a ser rueiro após a segunda dose da vacina. Não aquele batedor de antes. Um rueiro bem mais comedido, limitado a caminhadas terapêuticas no bairro. Montado na equipagem esportiva, máscara, vidrinho de álcool e roteiro pré-definido.

Eis que na última caminhada, cruzei com um cidadão sem máscara e a poucos metros de mim, ele espirrou e assoou o nariz. Sequer cometeu aquele sacrilégio de limpar a mão no short. Passou por mim com a mão breada. Mais à frente, entrou num café e com aquele filme de assoado nos dedos, andou entre as mesas sem cerimônia, estendeu a mão, cumprimentou algumas pessoas (que depois levaram a mão aos seus lanchinhos). Acomodou-se no balcão, manuseou objetos. Fez o pedido. Eu, incrédulo da razão daquilo tudo, do outro lado da rua, só acompanhando aquela presepada e perdendo a vontade de completar o meu circuito.

E antes que me vejam acometido de uma crise de nojinho, avivo os alertas e as lembranças. A pandemia ainda não acabou. E Belém nunca me fez zanga.

 

 

sábado, 13 de novembro de 2021

crônica da semana - viva o sus

 Sonho americano (viva o SUS!)

Tem coisas que só vendo de perto, apenas espiando de palmo em cima ou conhecendo por depoimento e experiências de pessoas da mais estrita confiança, é que a gente entende e bota fé. A vida como ela é de verdade nos Estados Unidos é uma delas.

Esta semana troquei umas idéias com uma amiga que mora lá. E que passou uns dias em Belém, de férias. Procurei saber das maravilhas, das belezas, comodidades, do sonho americano. E, também, um pouquinho da ralação diária. O alvo foi a saúde. A amiga confirmou. Nada lá é de graça. UPA aqui e ali, não tem. Resgate, 192, nem pensar. Curativo nos postinhos, quite. Todos estes serviços existem, óbvio, e com a excelência americana. Ninguém deixa de ser recebido nos hospitais. Mas é só tornar do atendimento que a conta vem. E não é nada barato. É tudo na casa dos milhares de dólares. A amiga deu exemplo na família. Até hoje tem boleto pra dar definição ao final do mês por causa de um atendimento do companheiro dela. Imagino agora, nesta época de pandemia, quanto boleto não foi gerado, heim! Por lá, o que rola mesmo é o sistema privado. Planos particulares são os articuladores da saúde da população. Ocorre, segundo minha amiga, que mesmo boa parte da população sendo abrigada nestas carteiras de atenções, ainda assim, são comuns os casos, como o que ela experimentou, de o usuário ter o plano, mas ainda ter que arcar com um percentual no custo dos serviços. Penso cá com meus botões: um país tão liberal no trato da saúde pública tem que, necessariamente gerar muito emprego. De outra forma, sem estar vinculado a um plano empresarial ou sem bancar um modelo individual, como se cuidar? Como se manter ativo no mercado? De que jeito e maneira continuar vivo e respirando em caso de um revés?

Então, viva o SUS!

Desde a Constituição de 1988 é direito do povo brasileiro ter acesso aos meios que lhes garantam a saúde. E sem custos. Dali em diante, surgiram hospitais, unidades de bairro, centros especializados, atendimentos de emergência, tudo como obrigação de ser ofertado gratuitamente pelo Governo.

Antes, no meu tempo de menino, o sistema no Brasil arremedava o sonho americano. Acesso aos atendimentos de saúde, só aqueles que tinham carteira assinada e os seus dependentes. O Sistema era uma atribuição do INPS. Quem não tinha trabalho formal se atava como dava. Era cada um por si na terra do Saci. Em Belém, as consultas com o dentista eram naquele prédio à esquina da Presidente Vargas com a Osvaldo Cruz, que tinha elevador com ascensorista e porta pantográfica. O atendimento infantil, na Avenida Nazaré perto da Dr, Moraes, de onde saí certa vez de ambulância, com papeira, para a internação na Santa Casa. Na função de operadora de caixa contratada, mamãe tinha direito e nós, os acreaninhos, fomos no vácuo como dependentes. Depois que mamãe saiu do emprego, nos valemos de chazinhos, sebo de holanda pros inflamados e, nas horas de  precisão mesmo, do PSM da 14  e do Centro de Saúde. Eu, por mim, tomei muita Benzetacil e tirei abreugrafia, todo ano, no centro 3, da Pedreira para apresentar na matrícula da Escola Técnica. Nestes locais, administrados pelo município, não era necessário o vínculo formal empregatício. Nossa valência.

Muitas pessoas que conheço e que admiro estão vivas hoje, depois de passar pelos horrores da Covid-19, por causa do SUS. Estou certo: há o sonho americano. O rés-o-chão por aqui, porém, é mais embaixo.

Então, viva o SUS!

 

 

terça-feira, 9 de novembro de 2021

domingo, 7 de novembro de 2021

crônica da semana - Mingau de miriti

 Mingau de miriti

A gente se socava naquele vão dominado pelas artes práticas da turma de Edificações. Nem era nossa barra, mas houve uma época que programaram umas aulas naquele pavilhão. Ao largo e ao fundo, umas palmeiras altas, com cachos minados duns coquinhos corados de um castanho acetinado. Para nós eram pés de buriti. Embaixo das palmeiras, nos aninhávamos ao final das aulas, nos encantávamos com as criações do Hera da Terra e  caetaneávamos os versos doces de Cajuína.

Deu-se em outro tempo, que na beira de Abaetetuba, em manhã de feira pra lá de movimentada, fui levado a provar o mingau de miriti. Panelão quente, gente na fila, soprinhos sobre o fumegado fluindo da cuia. Quando dei fé, no canto da barraca, o cacho da fruta que era usada para fazer o mingau. Não me era o mesmo coquinho de colorido acetinado lá do corredor de Edificações! Pirei na parada. Buriti ou miriti?

Fui aos universitários da beira e fiquei com a notação que a experiência abona; “Só sei que toda a minha vida só ouvi falar em mingau de miriti. Fruta miriti, árvore, brinquedo, cesto, miriti. Ponte sobre o rio, tala, poema e poesia, conto da Neusa Rodrigues, miriti. Canto, vivência e dias ribeirinhos sob a bênção da palmeira santa”.

De lá pra cá, prosa que me dá ânimo é explorar a multifusão estética, as versões sensitivas do miriti. Se me der na telha, disserto, viajo nos traços (nas razões e também nas dúvidas de identidade-buriti) que esta palmeira enraíza na história das gentes, da beira e do centro.

Pelo Círio, cuidei de dar atenção aos brinquedos. Em casa dei o alerta para que se juntasse grana suficiente que desse para arrematar os espécimes possíveis. Há uma razão para este cuidado. A época é a oportunidade de conhecer tudo em quanto de miriti. Passada a quadra nazarena, o artesanato rareia na cidade. É a hora e a vez. Depois a gente não acha mais. Em visitas às feiras, virei menino pidão. Endoidei de tantos mimos. A família ressabiada, contava os tostões e pedia para eu parar com as manhas que, nem bem começava o passeio pela exposição, já se atiçavam. Por mim, enquanto não enchi as sacolas (apesar de reiteradas admoestações com um “tu não vem mais!”) com as mais tradicionais peças da produção artesanal, não me aquietei.

Agora em casa, todo dia aprecio uma obra. Presto reparo, admiro detalhes, contextualizo formas e expressões. Analiso a criação, os estilos, as combinações.

E deixa estar que no risco e no jeito das artes em miriti o que não se dispensa é a harmonização. Eu me passo! Antes de tudo, vem a escala. Adaptada, mimoseada. Nada é tão grande e o que pequeno é, agiganta-se na lembrança do cotidiano. Tornam-se miniaturas grandes em expressão e cor. E as cores, então, digue lá, suprimo. Tudo muito certinho e justo. Finos matizes que, ao mesmo tempo causam alarde e intimidade. Ofuscam e revelam-se. Esnobam e contraem-se. As cores pulsam. Estimulam os comandos da alegria adormecidos em nosso ser e a gente vira menino pidão.

A temática do artesanato em miriti fala a língua do povo. Peças e personagens do cotidiano ribeirinho são retratadas com uma pontinha de fantasia, no entanto, de faces verdadeiras e almas fecundas. A fauna, as casinhas de madeira, a roda gigante, os mitos amazônicos, o remo e o barco, a passarada. Os coraçõezinhos pendentes no móbile repassam um pedacinho do coração do artista para cada um de nós.

Na beira, vinga o verso doce. O mingau é de miriti e a palmeira é santa.