sábado, 30 de agosto de 2014

crônica da semana - e o vento levou

E o vento levou
A introdução do guarda-sol na paisagem das feiras de Belém foi uma grande idéia. Representou uma forra ao calor inclemente que dá pleno meio-dia e vai refletir no melindro da gente em tempo de derreter nosso ‘célebro’. Por outro lado, a invenção não resistia quando o vento virava o Geral e desembestava com mais de mil dali dos baixios da Pedreira. As sombrinhonas iam pelos ares levando as mais finas peças.
Depois de algum tempo madrugando com o Seu Jorge, seguimos rumo próprio. Minha mãe choramingou com o fiscal e conseguiu um cantinho para os Sodreres, ali, naquela região dos informais. Não tínhamos guarda-sol. Nossa infra se reduzia a uma mesa magrinha de pernas grandes que eu trazia na cabeça, de casa, todo dia. Começamos vendendo cosméticos dos mais variados ‘catálagos’. Inclusive as amostras grátis de batom e perfume, vendíamos (era, aliás, o que mais saía).
Variamos a mercadoria com confecções, perfumes... quando nos mudamos para a calçada que dá para a Pedro Miranda. Um espaço legalizado, comprado com a ajuda de parentes e amigos. Bem localizado, confronte ao mercado de carne. Por essa ocasião, já havia ocorrido uma evolução no formato das barracas. Não havia mais a necessidade de levar pra casa e trazer de volta, todo dia, as mercadorias. Não sei de quem foi a sacada. Ventilou-se amiúde que a idéia tinha sido importada do Ver-o-Peso. Consistia na confecção de caixas de madeira com portinhola, cadeado, empurrador e quetais personalizados, montadas sobre rodinhas de metal para que pudessem ser movimentadas. Era como se fosse uma arca que guardasse nossos bens preciosos. Do tabuleiro, todo mundo na feira migrou para a arca. Era demais perfeitinho, ficava tudo ali na feira. Ao final do expediente, recolhíamos a mercadoria para dentro da caixa, fechávamos no cadeado, arrumávamos em cima o estrado, o guarda-sol, cobríamos tudo com um encerado plástico e deixávamos ali no nosso cantinho. De tardezinha vinha uma galera da administração, deslocava e acomodava as nossas caixas todas num lugar outro mais para o interior da feira. Esta manobra era necessária porque o mesmo espaço que ocupávamos durante o dia, era ocupado pelo pessoal do churrasquinho à noite.
Esta praça de alimentação ali da feira me vem do passado como uma das mais deliciosas lembranças. Não há hoje no mundo fastfood de Belém, algo que chegue aos pés daquele churrasquinho. Só a farinha que era servida ali, valia pelo mais engalanado xis-qualquer-coisa de agora. Vez sim, vez não eu pegava com a mamãe um numerário de adiantamento e estourava tudo nos espetinhos. Ao contrário dos churrascos de domingo, o tempero não primava pelo purismo minimalista do sal grosso. Era a diversidade de condimentos, o segredo do sucesso que faziam os churrasquinhos da Mauriti. Outros elementos compunham o cenário do repasto e o fazia algo transcendente, enlevado: a brasa ardendo, o fogareiro com alças de argolas, o jeito de abanar o fogo, a fumacinha cheirosa...aquela aguinha gelada, quando a gente terminava de comer.
Aí virava o Geral.
Eram contados os dias em que a feira funcionava à tarde. Vésperas do Círio, Natal, Ano Novo...

Os ventos se formam pela diferença de temperatura do ar. Quanto mais o dia avança, a atmosfera mais aquece e a possibilidade de rajadas fortes aumenta. Certa ocasião, estávamos contando com uma boa venda. Era véspera de uma dessas festas, não lembro qual. Três’orinhas da tarde, o vento Geral veio arrasador e levou nosso guarda-sol, as mais finas peças de Fio-de-escócia, as camisas de botão, as bermudas desfiadas na coxa, o Charisma... “para além dos fios de alta tensão”. Só a  arca ficou.

sábado, 23 de agosto de 2014

crônica da semana - tabaco

Os amantes que mascavam tabaco
Seu Jorge era um inovador, um revolucionário, mudou o modo de ser e de estar de boa parte dos feirantes de Belém. Quando o conheci, era padeiro da Aveirense, panificadora que ficava na esquina da antiga Independência com a Alcindo Cacela e que, como o nome denota, homenageava Aveiro, terra lusa distante abrigada à ria do Vouga. Lá, conheceu minha tia Fabiana, uma das maiores doceiras que esta terra das mangueiras conheceu. Virou meu tio. Mas por força do hábito e dos distanciamentos protocolares que as funções na panificadora impunham, o tratamos até hoje por “Seu Jorge”, minha tia Fabi, inclusive, em que pese os mais de 40 anos juntos.
Depois que saiu da Aveirense, Seu Jorge foi trabalhar na feira. Morávamos todos na Mauriti e eu, bem gitinho que era, mas viradinho, fui com ele.
Naqueles tempos a feira era bem diferente, os vendedores expunham seus produtos em tabuleiros montados em cavaletes de madeira crua. Seu Jorge era muito dedicado, determinado. Vendia confecções, não tinha como os verdureiros, os açougueiros, os peixeiros, a urgência das madrugadas, mas armava a barraca todo dia antes do sol nascer. Quatro e meia desescorava o carrinho de mão da cerca, arrumava as caixas com as confecções uma sobre as outras, amarrava bem amarradinha a pilha e saia empurrando o carro. Eu na frente dando o apoio moral e aqui e ali dando a direção porque ele não via o trajeto direito. Conduzia o carrinho olhando pelos lados, guiando-se pela sarjeta, já que a pilha de caixas o impedia de ver o estirão de frente. Um quarteirão nesta batidinha. Chegávamos e num trisca, o estrado estava armado, depois era só arrumar. Blusinhas de meia aqui, calcinhas de florzinhas ali, shortinhos de elástico acolá, cuecas de copinho mais pra trás. Tudo pecinhas baratas, populares. Nessa hora eu ajudava mesmo. Arrumava tudinho, ficava ali ‘entretido’ colocando uma peça num lugar; outra, n’outro... e quando me espantava o sol já estava torrando meu cocuruto. E daí em diante era só quentura. A manhã toda que a gente ficava na feira era esse sofrimento ardido embaixo dum solão de lascar. Aí, o tino apurado, a sagacidade, a visão de negócio do Seu Jorge, emergiu. Mas não deu um mês, Seu Jorge acrescentou à nossa carga no carrinho de mão, dois guarda-sóis. Pronto. Resolvido o problema. Além de nos proteger do sol, o artifício ainda nos possibilitava fincar cruzetas na estrutura. Ganhamos mais espaço para expor nossas peças. Ali a gente pendurava as camisas de botão para os rapazes, as batinhas para senhoras, conjuntinhos femininos ornados em ilhoses doirados...Coisinhas mais aquelas de finas e sofisticadas.
O uso do guarda-sol logo se espalhou pelas outras feiras da cidade, mas asseguro que a idéia pioneira, foi de seu Jorge.
Por aqueles tempos o traçado permitido pela prefeitura para as bancas era da calçada para dentro da feira. As bancas eram posicionadas lado a lado e dominavam todo o perímetro em 90 graus da calçada que compreendia a quina formada pela  Mauriti e Pedro Miranda. À frente das bancas, o prédio do Mercado e, lá dentro, os talhos de carne. Éramos regularizados, pagávamos carnê de locação, gente para guardar os estrados, vigia. Era tudo nos conformes.

Mas havia também uma ocupação informal. Era uma concentração de bancas exatamente atrás da gente, dando frente para a rua. Muita gente foi se chegando, armando a banca no leito da Mauriti e se arrumando na beirinha da calçada, com um banquinho, uma cadeirinha, uma caixa para sentar, fazer as contas, classificar a mercadoria. Não eram clandestinos, o fiscal abonava o negócio mediante uma contribuição pecuniária, segundo ele, insuspeita. Atrás da banca do Seu Jorge, dividindo o meio-fio com a gente, ficava a barraca do casal. Eles mexiam com o de cumê, tomate, cebola, temperos...Faziam os  lotes naquelas embalagens tramadas em fios plásticos vermelhinhos finos. Trabalhavam direitinho, pagavam o fiscal, vendiam produtos novos trazidos cedo da Ceasa, varriam o espacinho deles. Ganhavam o sustento honestamente. Formavam um casal já bem maduro, mas demonstravam cumplicidade, exibiam-se em carinhos e afetos, eram atenciosos com os fregueses, nossos vizinhos de calçada, companheiros na lida e mascavam tabaco.

sábado, 16 de agosto de 2014

crônica da semana - férias

Minhas férias
Nera que dantes, quando a gente voltava às aulas, a primeira tarefa na escola era fazer uma redação falando sobre as férias, nera?
Então, pra dizer, tô numa sala de aula de uns anos atrás e vou tentar traçar umas linhas sobre as minhas férias deste julho próximo passado. E claro fique que escrevo hoje, porque entendo que as férias na vera só terminaram agora, na biqueira de agosto. Teve muita gente que emendou o último fim de semana. Dei a vaga no sábado anterior ao nosso papai herói, e agora retomo esta prosa bucólica que só ela.
Fomos, os Sodreres, para o Maranhão. Naquela base, né, passagens compradas com antecedência numa super promoção, pessoas pra lá de acolhedoras, desejo incontido de matar a saudade, de reviver grandes amizades e o estímulo, a vontade de conhecer outras terras.
E foi providencial esta visita. Uma passagem rápida, mas que nos mostrou o quanto arrumadinha e bem traçada é São Luís. A ilha  nos surpreendeu pelo alívio, pelo ar desafogueado, pelo germezinho de liberdade que a cidade inocula na gente. Esta despressurização talvez tenha a causa na sua localização à beira mar. Como diz meu compadre Quelemém, “São Luís é Belém com uma Salinas dentro”. Além da sensação térmica aprazível, a cidade nos dá de bandeja o centro histórico. Na minha opinião, a grande sacada de São Luís é integrar os valores arquitetônicos do centro com a produção artesanal. As engrenagens se completam. As lembrancinhas, os símbolos do Maranhão, podemos encontrá-los expostos em escaninhos seculares, em prédios azulejados nas mais tradicionais cerâmicas européias. As reentrâncias calçadas em paralelepípedos dispõem-se no centro histórico como o próprio traçado da memória (incluindo, até mesmo a depreciação, o desgaste, o descaso que atravessam os tempos). Quando ouvimos falar que há um zelo pelo centro histórico de São Luís, estamos diante de uma verdade.
Demos um pulinho em São José de Ribamar, que é cidade ao pegado de São Luís e que me revelou a origem do santo. Eu não sabia, mas o José de lá, é o mesmo pai de Jesus. Há uma estátua do santo num pontal bem acima da praia e este local é que dá o sobrenome ao santo carpinteiro. Ribamar vem de “riba”, acima e “mar”, vem de mar mesmo: o José que está acima do mar. Em Ribamar tive um reencontro com a família Farias, almas generosíssimas que vivem me abrigando (a primeira vez que me tomaram no colo foi em Altamira. Eram a minha família à beira do Xingu).
De volta a São Luís, passamos uma noite dançando e nos maravilhando com os mais variados estilos de boi.
Tínhamos porque tínhamos que ir aos Lençóis. E fomos. Destaque para a estrada que leva ao parque natural. Impecável. Sem um risco que a desabone.
A nossa base foi Barreirinhas (que tem uma placa logo na entrada avisando que ali não se tolera a poluição sonora). De lá, nos embrenhamos em aventuras. Em uma tarde, chegamos às dunas por terra, numa espécie de rallye onde a caminhonete enfrenta a resistência da estrada de areia pura e em alguns casos, embica e mergulha de dar medo nos lagos que se multiplicam pelo caminho. O pôr do sol nos lençóis é coisa que entontece.
Mas a melhor lembrança que trago de São Luís, é a lua nascendo no mar. Pesquisei a data da lua cheia, tomei emprestada uma bússola do meu anfitrião, localizei o nascente. Pedi pra minha irmãzinha Cléo Farias sugerir uma praia com vista livre e desimpedida para Leste. Foi Calhau e foi batata. Assim, bem na linha da água, a lua mostra-se em um tamanho absurdo e reflete uma beleza acintosa, extravagante.
Fomos, os Sodreres todos, para o Maranhão e trouxemos a lua no coração.


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

crônica remix -quadradinho é igual

Quadradinho é Igual

Meu compadre costumava me apresentar a outros amigos dizendo, ora veja, que eu era bom pacas de matemática, só porque na época  da  Escola Técnica eu tirei um cinquinho e ele, tirou dois.
Justificável o realce à Matemática na mentira pregada,  aos quatro cantos, pelo meu compadre, afinal a Matemática é o grande tormento de todo estudante e, nas devidas proporções, do cidadão comum. E sempre, desde os tempos da  aula particular da professora Lurdes, entidade pedagógica que, por conta do carinho, ia em respeitosa gradação a fessora, num tratamento mais simpático que o detestável tia de hoje em dia.
Ao contrário de hoje, menos liberal era a fessora que jamais se submeteria a levar um tia todos os dias pela cara, mesmo que do mais mimado dos alunos (nem dos sobrinhos de verdade, ora, ora) e muito menos de flexibilizar os métodos. Menino que entrasse naquela aula particular, tinha que sair de lá sabendo o abecedário e as quatro operações  e isso implicava em saber de cor e salteado a tabuada e a se desenrolar legal para dar mais bolo que receber, no téti-à-téti da sabatina. E ai de quem aliviasse na hora de dar o bolo. Ela vinha que vinha: “Ah, tu não sabes dar, não? Pera lá!” Tomava da palmatória, e aí, quem tinha pena do outro, ficava com as mãos inchadas, no lugar dele.
Nos primeiros  tempos o mundo dos números chegava até a gente assim, pela paciência limitadíssima da professora Lurdes e pela persuasão de sua palmatória que, por bem ou por mal, nos levavam de prima para a Primeira Adiantada, sem passar pelas aquarelinhas dos jardins ou pela sopa de letrinhas da alfa.
Ali, com o argumento da palmatória fora de alcance, nos virávamos nas  contas simples atendendo a comandos de ‘arme e efetue’ ou ‘some as parcelas’ ou ‘ache o quociente deste número por este outro’, preparando o terreno para mais adiante nos atarmos  com os problemas como este, até fácil: “Paulo tinha cinco petecas. Ganhou mais duas de seu padrinho. Com quantas petecas Paulo ficou?” Começávamos a correr atrás do número oculto, representado naquele instante pelo simpático quadradinho, utilizando métodos que no primário admitia para este problema, a seguinte equação: quadradinho é igual às  petecas que Paulo já tinha (5 petecas) mais as que ele ganhou do padrinho (2 petecas). Quadradinho é igual a sete petecas. E a resposta vinha assim: Paulo ficou com sete petecas. (Um outro desafio para este problema era, além de bater certinho na conta, riscar um quadradinho bacaninha, bem feitinho. Alguns, por força da nossa inconsistência motora, viravam trianglinho, retangulinho, losanguinho).
O que é mais exato hoje é que tanto o capricho no traçado do quadradinho quanto uma conta certinha perderam-se no tempo. Apareceram, mais lá na frente o xis, o teta, aquela cobrinha da integral, uma enxurrada de ás e bês algébricos que vão deixando ao largo as inquietações que tínhamos diante dos inofensivos comandos de ‘arme e efetue’, da intimidadora palmatória ou da incerteza sobre as petecas de Paulo.
Não, de tudo, eu só sei que nada sei. Nem da ‘genética, da estética ou das artes’ e muito menos da Matemática. Até que gostaria de dominar ao menos um tiquinho da arte cartesiana ou do arrojo matricial. Bem que me arvoro a resolver um cosseno comportado, uma equação de reta suave, uma radiciação compenetrada. Bem que tento me sair e bater certinho na conta, apelando para a eloqüência do quadradinho é igual, mas quede! Acho enfim, que me falta a aula particular da fessora Lurdes.

sábado, 9 de agosto de 2014

crônica da semana- paizão

Paizão
Todo sábado ele passava na minha rua acompanhado da petizada. Era sempre do mesmo jeitinho. Ele na frente. Um saco poderoso de farinha no ombro amparado pela mão firme. Pendurada no outro braço, uma sacola da pura juta sortida com aviamento da semana.  Saltando da beirada da sacola um frondoso pé de alface. O caminhar dele era sincopado, descontínuo. Aqui, ali, parava dava uma atenção. Esperava. Eram três meninos que lhe desaceleravam os passos. Uma escadinha. Um segurando na barra da bermuda, outro agarrado à mão do que segurava a bermuda do pai, o outro, patetando com a cabeça ali e alhures. Arriava a sacola, firmava o saco de farinha. Tirava uma qualquer coisa que se engatara no colarinho do mais novo. Jurava que já estava chegando. E se adiantava com a turma. E, olha que os meninos nem reclamavam da caminhada, nem pediam pra parar. Ele é que atinava para uma satisfação gratuita porque queria mesmo. Fazia parte daquele jeito dele de ser pai chegar perto, sentir os filhos ali na rua.
A Mauriti sempre se exibia para a passagem daquela turma. Alguma coisa alegre ou de uma cinética exclusiva acontecia quando eles passavam. Um vento batia farfalhando a copa da acácia que ficava bem na beira da calçada, algumas folhas e uns raminhos leves se desprendiam, dançavam no ar, tocando às vezes de um trisca algum dos meninos e depois, meio de combina, caíam no chão e atapetavam o caminho deles de verde. Por outra um bicicletista passava pedalando uma cargueira com uma caixona na frente que mal a gente via a cabeça dele do outro lado, mas ouvia benzinho ele cantando alto uma canção do Evaldo Braga que incentivava o riso. Ele passava, todos nós gostávamos e ríamos aprazidos com o breve e resfolegante show. Ocorria também de a molecada, nessa hora da manhã, estar exibindo os talentos numa rodada de embaixadinhas sem a bola cair no chão, na calçada do doutor Cézar Bentes. Quando passavam por lá, os pequeninhos empastelavam. Intentavam tomar a bola, desfaziam a rodinha e por uns instantes a brincadeira se transformava num peru com os três correndo pra lá e pra cá, na ira de dar um chutezinho na bola. Mas quite. Sobravam. O pai descansava o braço do peso da farinha escorado no muro de meia altura da casa ao lado e quando via que os meninos já haviam se divertido um tanto com aquela algazarra, dava um assobio fino e se lançava na caminhada e era rápido que os seus se desprendiam daquele recreio e voltavam pra’quela filinha comportada, ritmada, enraizada à barra do pai.
E eu, eu apreciava aquele operoso passeio, aquele compromisso orquestrado por um pai desconhecido, que morava pra’li pras bandas da Visconde e que me conduzia, me transladava para um futuro, para um sonho. Esquadrinhava os detalhes daquela caminhada funcional. Percebia candura, cuidado, amor e suor indulgente naquela jornada e me projetava: “quando crescer, quero ser um pai igual a ele”.
Aos sábados, quando não estava num trampo sazonal ou quando não me batia em pelejas pelos campos da Augusto Montenegro dando sangue pelo inquebrantável Internacional da Mauriti, usava as manhãs claras para apreciar o movimento da rua. Sentava no canteiro da acácia, sintonizava meu radinho no Costa Filho Show, me inteirava das ofertas dos secos e molhadas e das estivas em geral, ouvia a sequência das mais mais. Quando dava por mim, lá vinha o paizão com as crianças, o saco de farinha no ombro...
Durante muitos anos a postura daquele cidadão que passava pela Mauriti todo sábado, foi para mim a mais perfeita representação desta missão divina de ser pai. Amanhã vou à feira comprar um pé de alface.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014


Daqui a algumas horas o blog http://raimundosodre.blogspot.com.br/ vai completar 40.000 acessos. Agradeço a atenção de todos com o meu trabalho e confesso que muito honrado me sinto em contar com suas companhias. Grato, muito grato. 
Para comemorar a marca, o quadragésimo milésimo visitante do blog vai ganhar um delicioso perfume Racco. Olhe lá no contador, se for o visitante 40.000,faça contato pra gente providenciar a entrega do mimo. 


sábado, 2 de agosto de 2014

crônica da semana - fôlego

Sem fôlego em Mosqueiro parte II
Eu e meus amigos roqueiros fomos passar uns dias na praia. Eles arrumaram uma barraca e um quintal para nos acomodarmos. Nosso custo ia ser só na parte do de cumê. Eu era MPB e não era assim, assim, de grana, mas dava meus pulos. Trabalhava na feira com a mamãe e como ela via que eu já me ia rapazinho, fazia um esforço e me arrumava um numerário vez sim, vez não, para eu dar minhas voltinhas. Meus amigos do Rock folgavam mais nessa parte do recurso e isso nos adiantava. Quem tinha mais ajudava o outro. Éramos, digamos assim, veranistas comunistas.
Nossa batidinha era tomar um café reforçado no mercado, bem cedo, pegar o bondinho, desembarcar na praia mais distante que ele alcançasse e depois varar em recreio de praia em praia até a vila, sempre na bicora da maré alta.
Numa dessas estiradas, já de tardinha, a freqüência minguando, pouca gente na água, topamos com uma turma de garotas, na conta certa de uma pra cada, brincando de rebate com uma bolona colorida. Ficamos por ali, como quem não quer nada, avaliamos a situação, as possibilidades. Logo percebemos que as meninas foram simpáticas à nossa aproximação. Naquele tempo não se maldava tanto e também, a violência, as más intenções eram ‘menas’. E tirando um pelo outro, éramos apresentados, mas éramos de paz.
Entramos na brincadeira com a água pela cintura e nos entregamos às batidas na bola sem jeito e sem pretensão. Argumentos de aproximação apenas. O sol espalhava seus raios pálidos sobre as águas de Chapéu Virado. Os contatos aos poucos foram acontecendo. Os pares se formando, afastando-se com sutileza e dolo. A bola ficou abandonada ao ir e vir das pequenas ondas.
Outras ondas vibraram dentro de mim, diante daquela garota de uma alegria pródiga, de um sorriso pleno de onde grassavam excitantes insinuações, instintivos sinais, convites corteses. Nos olhávamos guiados pelo desejo juvenil. Havia um orgulho de nossas vergonhas submersas e ativas, urgia a teima sensual, o descompasso febril, a concupiscência perigosa. Parecia um sonho acompanhar o cabelo dela deslizar sobre o Copertone viscoso e desenhar provocantes sinuosidades no relevo de seu colo sedutor. Minhas mãos nervosas tentaram decifrar a mensagem traçada naquela pele macia. Havia boas loucuras em nossas menções. Uma nesga de luz amarelada chegava silente às vagas distantes e denunciava a praia deserta. Não havia medo, vênias, espreitas ou proibições e nos adiantamos no suave declive da praia, até que nossos corpos submergiram em carícias. Voltamos, tomamos ar, volvemos abaixo da lâmina d’água novamente. Nos beijamos. E nessa hora vi universos multicores. Percebi sabores e entorpecimentos. Senti um calafrio correr-me em maravilhas pelos quatro cantos da alma. Afoguei-me em delícias... E também me afoguei de verdade. Naquele rala-e-rola subaquático, quando quis tornar para a superfície dei que a gente tinha deslizado mais além no declive e não dei pé. Me embananei todinho. Não achei a pequena, bati pés, braços, orelhas e o que mais havia de bater e não vi  céu. Perdi o fôlego, bebi água pra caramba, peguei carona numa ondinha e fui parar num montinho de areia grossa, já na beira, tossindo pacas, assoando o nariz, tirando água do ouvido. Acabou a graça por aí.
Já era tarde mesmo, meus amigos roqueiros também já tinham cumprido a desobriga e decidimos seguir viagem. Trocamos juras com as pequenas, marcamos encontro na praça. Na vila, tomei um banho pai d´égua, me entalquei, pinguei umas gotas de Toque de Amor e fiquei horas ao lado do coreto esperando a pequena. Mas quando, já que ela apareceu.