sábado, 27 de junho de 2015

crônica da semana - carapatinho

Carrapatinho
Ao contrário de Argelzinho que, desde que aprendeu a falar, não sei por quais eiras ou beiras, sempre me chamou de Raimundo, ela sempre me chamou de pai.
Esta diferença nas relações, nos vocativos e nas vocações, aponta e traduz ritmo próprio, diz um pouco da marcação, do mapeamento formal e sentimental que nos desenha e nos define como pai e filha.
Ela é a minha neguinha branquinha primeira e única. Nasceu já avisando que seria autêntica, sem comparação. Chegou estabelecendo responsabilidade e respondendo à paz ou ao descontentamento com silêncios e olhares críticos. Imensos e críticos. Desde bebê, nada passa por Amaranta sem um crivo criterioso.
Durante esses dezessete anos de convivência, completados ontem, aprendi a interpretar as vagas de Amaranta Maria. Procuro me adestrar aos reclamos interiores, aos prazeres recônditos de minha filha e alinho dúvidas e inquietações na direção da luz que seus olhos disparam. Feixes luminosos ora comprazidos, ora intolerantes. Sempre sinceros e sempre elucidativos.
Apesar da predileção em dar a letra das emoções com uma linguagem visual radical, em alguns momentos Amaranta se deixa trair e queda-se ao tato, procura aconchego e vira carrapatinho. E nessa hora há mais mistério que descobertas. Um afago pode ser carência, saudade, ciúme, paixão, desilusão, insegurança, medo, posse... Os olhos criptografam mensagens que não entendo. Mas sou pai e dou meu colo.
Certa vez, participei de uma coletânea de poesia e fizemos o lançamento aqui na Aldeia Cabana. Vários autores, familiares. O momento era de integração, de contatos. Os leitores queriam autógrafo, um dedo de prosa, uma foto para registro. Amaranta tinha seus três anos, por aí. Durante o evento, se atracou do meu colo de tal forma que não me deixou falar com ninguém. Tive dificuldades para autografar junto com os outros autores, desisti de declamar no pequeno palco armado, intentei algumas vezes fazer com que ela fosse para o chão, brincar com outras crianças. Em vão. Colou em mim feito carrapatinho, aninhou-se no meu colo e ali ficou defendendo território.

Uma explicação para esta reação de Amaranta talvez resultasse da novidade de um ambiente festivo, com muita gente, recortado por músicas e declamações. Talvez estivesse estranhando. Mas por que não se acudiu à mãe? Nesse tempo, já falava bem, não se aperreava com demandas urgentes. Mas, naquele lançamento, me certifiquei que Amaranta elabora códigos vários para se relacionar e acaba conjugando, completando um com o outro. Nesse dia, quis o colo, o calor. Deu sinais difusos com o olhar e embora não seja de sua preferência revelar-se em palavras, abriu-se à sonoridade de filha, e o mínimo (elucidativo) que ouvi dela naquele dia foi “Papai”. Entre uma e outra zanga. Entre um ou outro risco de desapregar de mim, ouvia, baixinho, doce. “Papai”. Naquele dia, para minha compreensão, ratificou o mapeamento sentimental que nos define como pai e filha: uma marcação na maioria das vezes longe, pautada à distância dos olhares; outras e adoráveis vezes, pertinho carrapatinho.

sábado, 20 de junho de 2015

crônica da semana - volta de ônibus

Volta de ônibus
Tirem as crianças da sala, pois o que conto agora não é prosa de bom alvitre. É passagem lá detrás que bom exemplo não é, mas é prosa sincera e de reflexão pros dias em que pensamos o futuro dessa meninada energizada que está por aí sem os devidos quereres e haveres...
Fiz de quinta a oitava série na Escola Jarbas Passarinho, ali detrás do Bosque, e não nos percamos, por ora, nas considerações sobre o nome da escola, que isso é tema melindroso para outras e subversivas narrativas. Pois bem.
Repeti a sexta série. Era bebê em 1976 e já trabalhava de carteira assinada no antigo Supermercado Carisma. Meu horário era de três da tarde às 11 da noite.
Chegava em casa pra lá de meia-noite, na baba. Mamãe me esperava na entrada da Vila Mauriti, me ajeitava um cumê e a gente ficava se embalando na rede ouvindo o programa do Joel Pereira até o sono chegar, já na madrugada valendo. No outro dia quem disse que eu tinha pique pra ir pra aula. Saía sempre atrasado...e dormindo.
Chegava na Pedro Miranda e, ao invés de pegar o ônibus no rumo do Bosque, atravessava as três pistas da avenida...dormindo e subia no Pedreira Lomas em direção ao centro...dormindo. Era a linha que fazia o maior trajeto. Sentava lá atrás, continuava a soneca. Dava a volta na cidade e quando chegava ao final da linha, que era ao pegado da escola, subia n’outro ônibus na mesma pisada, refazendo o percurso para o centro...dormindo. Nessa segunda volta de ônibus, o dia já se adiantava além das dez horas e eu achava que já podia ir pra casa sem dar muitas explicações pra mamãe: não era tão cedo, nem tão tarde. Em casa, ficava lerdando sonolento, almoçava e me aprontava para mais um dia de batalho no Carisma.
O que torna é que não passei. Não que eu fosse burrão. Uma vez na vida outra na morte que eu me sentia inteiro e ia pra aula, até que captava as mensagens dos mestres, respondia as perguntas, participava. Os professores sabiam da minha jornada até altas horas, sensibilizavam-se, me davam chances. Um deles, Sandim que pela doçura e zelo no trato com os alunos mais parecia um clérigo professor de Religião que um cartesiano professor de Matemática, me recheou o boletim de notas boas, e mesmo sem eu ter feito uma única prova, passei com ele. Passei em um monte de matérias, mas às três que me levaram à recuperação, não dei a mínima. O que conta é que fiquei com vergonha de estudar nas férias e ter que aguentar a encarnação do pessoal da rua. Chamei minha mãe para um canto e comuniquei que preferiria repetir o ano. Foi o que ocorreu.
De certo também foi a decisão d’eu não mais trabalhar como homem grande, com obrigações, cartão de ponto, chefe caxias. Isso, provado estava que me tirava de rota das aulas.

Fiz a repitota, escorreguei aqui, ali, mas passei de ano. Voltei a trabalhar com liberdade, na feira, na marretagem, no prestação e dali, até meu canudo na Escola Técnica, não cheguei mais tão arrebentado em casa e não mais repeti de ano, embora ainda fosse minha grande diversão dar uma volta de ônibus pela cidade.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

crônica remix - dígrafos

Dígrafos, Similares e a Pedagogia Moderna

Este ano foi a colação de grau da minha filha. Da alfa. A menina aprendeu a ler e a escrever e ganhou uma festa robusta com pompas, circunstâncias, look de princesa, entrega de diploma, flashes e chororôs na platéia, tudo sob o aval da pedagogia moderna.
Festa para criança com a suntuosidade dos eventos de gente grande. E eu acho até que a festa é mais para a gente mesmo, os pais (para as tias da escola, para a diretora, para o fotógrafo...) do que para as crianças.
Não sei se este tipo de celebração é parte do legado deixado por Paulo Freire aos oprimidos pelo sistema. Só sei que no meu tempo, não era assim. Nem pelo apego à celebração, nem pelos métodos de aprendizado.
Quanto ao método, minha mulher me atualiza dizendo que hoje em dia é assim, pelas famílias. Tem a do bê. Ba, be, bi, bo, bu e o bão; e assim por diante. Eles juntam as famílias e vão formando as palavras, na escrita, na leitura, e parari, parará, arremata a minha mulher, deixando escapar um ar de discreta simpatia por estes métodos modernos.
E eu, inquieto, me pergunto: e o ene-agá-nhá, minha flor? E o éle-agá-lhá? E a arte de soletrar? E a sonoridade das construções labiodentais do tipo “vovô viu a uva” e “a uva é de Ivo”?
Antes as palavras surgiam sofridas dos dígrafos: bê...ó, bó; éle...i, li; ene-agá-nhá...Bolinha. Cê...á, ca; esse...i, zi; ene-agá-nhá... Casinha (neste caso, também com o conflito fonético implícito no ésse com som de zê). Éfe, ó...fó; éle-agá-lha...fólha (e partia-se, intuitivamente, para o ajuste no som do ó: fôlha.
A cartilha apontava: A bola é de Mauro. E até hoje percebo que, mesmo ante a pedagogia moderna, o martírio continua o mesmo, para este érre intrometido de Mauro. Especialmente para este caso, no início da Alfa, minha filha se estressava horrores e dizia “ ah, eu não sei. Às vezes é rá, (como o rá de caramba) às vezes é rá, (como o rá de rato)...ah, eu não sei”, inquietava-se e chutava o pau da barraca. .
Eu acho que a arte de soletrar, hoje, daria bons resultados e ajudaria a desmistificar uns e outros fantasmas fonéticos. A palavra sexo, tão incompreendida, por exemplo, seria dissecada: Ésse, é...Çé. Kê, i...Ki. Cê, cedilha...ó. Çéquiço. Táxi, outra palavra segregada pela pronúncia, seria restaurada: Tê, á...tá. Kê, i...Ki. Cê, cedilha...i. Táquiçi..
Eu tenho a  plena consciência da insignificância do meu papel de pai nessa história e, enfim, de que adiantam divagações sobre as “pronúncias pausadas na assimilação das primeiras palavras” (definição do Aurélio para o verbo soletrar), quando o mundo exige a rapidez de uma nova linguagem. E taí, reconheço que, o que é verdade, é que a minha menina, antes da festa e dos badulaques na cerimônia de colação de grau, realmente, antes de tudo, já sabia ler e escrever. E eu  aqui, com as minhas preocupações atemporais sem sentido. Admito, forçosamente, estar errado, mas num último fôlego de resistência reitero a teima: antes, caneta Bic, só se utilizava a partir da quarta série. Antes disso, só lápis. Só o lápis indicava o Suave Caminho...


sábado, 13 de junho de 2015

crônica da semana - níver compadre

Na Matinha tem um portal do tempo
Nossa aula na Escola Técnica começava uma da tarde, mas meu compadre saía de casa, uma e dez, uma e quinze, atravessava o portal, que fica em algum ponto misterioso da Matinha, voltava para o passado e quando chegava à Escola, nem tinha batido a campa da primeira aula.
A gente pensa que não, mas existe sim, um portal do tempo. Um lugar onde o passado encontra com o futuro e o presente é a experiência, a sensação, a vivência e o conceito...
Se a gente for caminhando pra’li, pro lado da baía do Guajará, estamos indo no rumo Oeste. Pra dizer, que a gente passa da ilha das Onças e chega no Acre. Combinado que aqui em Belém são 11 horas da manhã de sábado, 13 de junho, aquela hora que a gente senta pra dar uma olhadinha no jornal.
No Acre são 9 horas. Se a gente for mais adiante, saltar a cordilheira dos Andes e descer no oceano Pacífico, em Lima, a cidade que não chove, vamos nos achar às 6 horas da manhã deste dito dia 13. Deu pra perceber que a gente, nessa viagem imaginária, indo pro lado que o sol se põe, está indo para o passado. Agora, vamos pensar...Vai ter um lugar xis no meio do oceano Pacífico que o tempo vai voltar tanto pra trás que se a gente viajar mais um estirãozinho, vai dar no dia 12, ontem, sexta-feira (Eba! Mad Friday outra vez).
Pro outro lado, ocorre o inverso. Fazendo de conta que a gente vai para a ilha de Fernando de Noronha, ali na costa brasileira, estas mesmas 11 horinhas daqui, já contam lá, as 12 badaladas do meio-dia. Mais ainda, se a gente navegar o caminho do Colombo e chegar às praias da Espanha, vai ver que por aquelas plagas já é quase de tardezinha, 16h. Notamos, então, que na nossa viagem para Leste, vamos, resolutos, ao encontro do futuro. Se nos embrenharmos pela Europa, Ásia e despencarmos lá do outro lado do Japão, naquele mesmo ponto xis, no meio do Pacífico, as horas vão subir tanto que vai ter um momento que quando a gente der fé, vai ser o dia 14, domingo (Eba! Ócio, pés pra cima e uma gelada pra relaxar).
Aí, pra gente que está de boa neste sábado, lendo a coluna de crônicas no jornal, o portal do tempo se apresenta assim: Se correr prum lado, é passado, se pro outro se aventurar, é futuro. E o presente é este dia que a gente toma para ser feliz.

Ter um portal do tempo na Matinha, o bairro que ama e zela indica o domínio que meu compare tem sobre as eras. E ele que fez aniversário no presente mês; ele que sempre andou atrasado e por não dar trela para as convenções e pontos no Pacífico, contradiz o senso e sempre se adiantou em carisma, em gentileza, em poesia, em sonoridade, em generosidade, em fidelidade, em respeitar e amar a mãe, em ser amigo, meu melhor amigo; ele que sempre se adiantou em subverter as regras deterministas e escravizantes, ele que sempre se adiantou nos saberes do mundo e das artes... Ele é meu presente. Pra ele, o tempo se dobra (e permite que ele saia de casa para a Escola Técnica 15 minutos depois da campa ter batido e, trinta e seis anos depois a gente ainda se encontre para as nossas, eternas, primeiras aulas de vida).

sábado, 6 de junho de 2015

crônica da semana - belém de antes

Mesmo que demore que só
Nesta edição da Feira Pan-amazônica do Livro, estou relançando “O rio do meu lugar”, coletânea de crônicas publicada em 2013.
São 26 crônicas que só falam de Belém. Contam ‘causos’, reproduzem cenários, remontam personagens, nichos, itinerários, sabores e odores da cidade.
(Anda dá tempo, tá gente. Quem ainda não tem, passe lá na Feira e pegue o seu exemplar. Tá baratinho e jeitosinho, meu livrinho.E quem já tem, chegue lá para uma prosa).
Aí calhou que nessa semana, dei uma relida nas crônicas do livro. Não deu outra. Fiquei de confronte com a mais pura verdade. A Belém dos meus escritos é uma Belém de antes, de tresontonte, do século passado, d’outro milênio. É uma Belém que, se a gente se esforçar, pode até ter de volta, mas vai demorar que só.
De jeito e maneira, no entanto, é uma Belém idealizada. Nananina. A Belém de outros tempos também tinha seus problemas.
Tinha, porém, um doce, uma singeleza. Tinha uma cumplicidade com os filhos da terra. Uma generosidade. A Belém da minha memória nos agraciava com a mais autêntica amizade e não era essa quentura toda que a gente vê hoje. Tinha lá seus mormaços, mas eram bem menos ardosas as tardes, bem menos abafados os amanheceres.
E a gente podia zanzar pela cidade a hora que fosse sem medo algum, a não ser da Matinta ou do Vira-porco.
Se contar hoje ninguém acredita, mas, noite alta, trilhando pontes e saltando alagados cansei de atravessar do cantinho mais extremo da Sacramenta para o coração da Pedreira, e varar inteiraço em casa, sem temer e sem correr. Quantas e tantas vezes fiz uma parada no Shangrilá pra comer um PF de carne assada com ovo frito no óleo Jaçanã. Parava ali só pra isso mesmo, só pra matar a broca. E por mais que maldassem a boate, pra mim era lugar de gente da mais fina estampa e de uma cozinheira inspirada na madrugada.
Aí, o que aconteceu é que fiquei ali refletindo sobre as histórias que conto no livro, dos casos passados e desandei a maquinar sobre os casos presentes.
Tenho me esforçado para manter a mesma relação com a cidade (a relação de toda uma vida).
Meus cantinhos e minhas interações são as mesmas. Assim como nas narrativas distribuídas pelas 26 crônicas do livro, ainda perambulo pelo Ver-o-Peso, visito as igrejas, acampo nas praças, bolo e rebolo por esta Pedreira querida. Arrisco uns passos de carimbó nos arrastões juninos e sou devoto da Santa em outubro.
Percebo que a cidade responde voluntariosa. Sinto a intenção, compreendo a generosidade e imagino um espírito resistente pairar por sobre os túneis de mangueira, velando por nós. Entendo até que uma chuvinha miudinha, no final da tarde, daquelas que vêm só pra molhar o terreiro, seja um sinal que Belém nos dá, alertando que pode amainar o calor que deveras sentimos.

Folheando meu livro, lendo uma crônica aqui, outra ali, no qual pega, admito que a Belém dos meus escritos é uma Belém de antes, de tresontonte, do século passado, d’outro milênio. É uma Belém que, se a gente se esforçar, pode até ter de volta, mesmo que demore que só.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

crônica círio

Encontro marcado
O foguetório anuncia a Romaria Fluvial se adiantando lá na baía. Trânsito engarrafado. O ônibus chega na biqueira da Doca e, sem quê nem pra quê, dá uma guinada rumo não sei donde. Estávamos tão perto! Os fogos espocam alhures. O som agora está mais distante. Varamos na José Malcher. Vou perder a descida da Santa, profetizo esboçando um desespero indisfarçável. Sinal vermelho. Me bato com umas contas rápidas. Recomponho em retalhos assimétricos as fórmulas da Física. Velocidade, o estirão a ser percorrido, tempo. Atrito. Onze e pouquinho. Faço uma simulação da maré. Se estiver na vazante ainda dá tempo. A corveta vai encontrar resistência da corrente lá na desembocadura do Guamá. Éraste, em compensação quando embicar para a escadinha, vem que vem somando vetores, reconsidero. Pensando assim, botando fé na Física, não vai dar tempo. Sinal fechado. Trânsito não anda. Decido. Umbora, gente, chamo a mulher, os meninos. Peço pro motora abrir a porta e saio em desabalada carreira pelas calçadas de lióz da antiga estrada de São Jerônimo. Nem dei que estava com uma sandália de passeio e que ela, de vez em quando fugia do meu pé, indo dar lá longe e me atrasando mais ainda...
Durante muitos anos, passei o Círio longe. Em Porto Velho, Altamira, Manaus, Macapá. Embora na Amazônia a devoção seja tanta e em todos esses lugares a fé também se manifeste de forma tão ardente quanto em Belém, eu me ressentia desse distanciamento, inquietava-me a ausência, reivindicava o termo, o jeito paraense, o aconchego do lar. Requeria o clima generoso e dócil que grassa em Belém.
Eis que a Santinha olhou por mim e, há pelo menos 5 anos, a lida, os afazeres se organizaram na minha vida de tal forma que me permitem estar em casa por ocasião do Círio.
E o meu grande momento, aquele instante em que percebo melhor a devoção é exatamente a chegada da Romaria Fluvial lá na escadinha. Ali somos louvores indizíveis, emoções libertas, sintaxes fervorosas de outubro. A graça se faz em fartos cachos de manga, em sombras acolhedoras e brisas confortantes, em lágrimas doces e vozes agradecendo, em olhares de contemplação e preces. Na subida da escadinha, até o estrondoso rumor das motos é tido como se fosse delicada bênção. Há 5 anos, tenho um encontro marcado com a Santa, ali, na subida da escadinha.
Só que eu ainda estava na subida da José Malcher catando a sandália aqui e acolá, na carreira. Procurava entender a situação. O cortejo adiantou ou nós é que demoramos pra sair de casa? Estava tudo tão combinadinho. Ofegante, não desistia do encontro. Minha mulher e meus meninos, perdidos da vista, lá atrás. Tive um forte pressentimento. Chegou!
Logo adiante do palacete Bolonha, meu joelho começou a doer. Uma herança do glorioso Internacional da Mauriti. A rua se encontrava aos sábados, no quintal do Seu Preá. Era um campinho aterrado com serragem. Piso macio que permitia até um balançar ondulado nas partes mais densas e úmidas. As partidas eram disputadíssimas. Dez minutos ou um gol. Cara ou coroa em caso de empate. Pra lá migravam todos os matizes de atletas da Mauriti. Os grandes, a molecada da base, os senhores casados, os mais aquinhoados, os mais pobres. Sábado à tarde celebrávamos a diversidade no campinho de serragem. Na época, tinha um teste marcado no Paysandu. Um vizinho, que se passava pra minha bola, havia me indicado. Mas quando! Foi muito rápido. A disputa foi leal. Dei um encontrão e caí pra frente, sobre o joelho. Não senti nada. Um choque, eu acho. Uma resposta diferente do corpo. Quando levantei, não consegui mais esticar a perna. A turma fez pouco caso, afinal, era comum ali, a gente esmigalhar a cabeça do dedo, partir supercílio, ganhar uma desmentidura. Naquele sábado, no campinho de serragem do seu Preá, acabou minha carreira de jogador de futebol...E muitos anos depois, correndo ao encontro da Santa, o joelho ainda se magoa e me avisa que temos pendências a resolver.
Apesar da sandália e da dorzinha chata no joelho, cruzei a Praça da República como um bólido (diriam os narradores de futebol, aos microfones das difusoras de rádio, fosse o caso, a minha solitária peleja).
Mas foi eu bater o pé na Presidente Vargas, e a Santa passou.
Estar aqui contando essa história no jornal, para mim, já é uma graça. Havia uma vontade em mim de dizer, alguma vez, com muita alegria e gozo, que o nosso encontro naquele dia, apesar dos reveses, aconteceu. A providência desacelerou o cortejo. A Santinha parou na minha frente, parece para me ralhar: “mas tu, heim, pequeno, quase, quase”. Eu apaguei do mundo. Durante a eternidade daqueles segundos, o universo fez-se em nós dois apenas. Reverente, aceitei o puxão de orelha e fiz o mesmo dos últimos encontros. Ergui as mãos em direção a Santa e agradeci. Poderia pedir. De mil coisas, preciso. Mas não, o que me ocorre toda vez que nos encontramos, é apenas agradecer. Pelos meus meninos, pela minha companheira, pela minha família, pela sintaxe de outubro, pela maniçoba mais co’pouco, pela mãe que tive, pelos amigos que me toleram, pela brisa da baía que sopra lá embaixo no Geral, pelo meu joelho reclamão, mas inteiro. Pela minha saúde e por ser um sujeito produtivo. Agradeço pelos cachos de manga e pela graça de ter sempre o de cumê dentro de casa. Agradeço à doce Virgem Maria pela esperança que ela deposita em minhas mãos a cada Círio.
A Santa passou. Os meus meninos, minha mulher apareceram e me pegaram a chorar um choro de felicidade. Tomamos as mãos uns dos outros e descemos para a escadinha fazendo combinas e amarrando compromissos de, para o ano, não nos atrasarmos de jeito e maneira, para este abençoado encontro.