sábado, 27 de maio de 2017

crônica da semana- limousine

A limousine do ricaço
Tenho uma irmã que sempre que me visita, deixa uma prosa pra lá de especial. Domingo próximo passado, revelou que se considera uma pessoa pra lá de chique, porque, na vida, já andou de limousine.
Na reuniãozinha de família, todo mundo desdenhou desta pavulagem. Mas quando, já? Ora, limousine! A gente se ampara na sorte para pegar uma vaga sentado, no Sacrabala, agora avalie um rolé de limousine. Nem nunca!
Para mim, é um carro de ricaços, coisa de cinema. Não acreditava existir uma limousine em Belém. Até que um dia, aconteceu, num casamento.
Era junho, os meninos estudavam no colégio do Carmo e a noite era dedicada ao tradicional folguedo. Tem aquela hora que a festa ganha aquele ar intimista, os alunos procuram seus grupinhos, arrastam pé pelo salão e os pais são largados ao largo, só no mingauzinho de milho. Fiz um trato com os meninos. Podiam se divertir a valer que a gente ia bem ali, na praça tomar uma cervejinha porque ninguém é de ferro (pleno sábado!). Quando saímos, uma movimentação de gente bem vestida, só no salto e paletó, chamava a atenção. Encerrava-se uma cerimônia de casamento na igreja do Carmo. De repente, uma surpresa. Pelo canto da praça, vislumbramos uma reluzente aparição, um carro esticadão e maravilhoso Era sim, uma limousine exibindo-se em pomposa aproximação.
Foi lá em baixo, no beco, fez a manobra, o motorista encostou rés o portão da igreja, e desceu.Tão engalanado que mais parecia um major da RAF . Os convidados cercaram o carrão e lá de dentro, sob uma chuva de arroz, emergiram os noivos. Receberam homenagens, beijinhos e abraços rápidos. A marcha nupcial lá longe, tocada delicadamente por músicos refinados. Uma débil tentativa de organizar as mais animadas e a noiva lançou o buquê. Tão logo os providenciais conselhos da mãe foram guardados na memória da noiva, os dois entraram no carrão. Foi então que rolou o momento mais garboso do evento. Não é que a limousine tinha aquela abertura no teto! O motorista ligou o motor, mas não pôs o carro em movimento. Deu-se o suspense. Eis então que os noivos aparecem no topo da limousine, com sorrisos largos e metade dos corpos para fora, ostentando taças adocicadas de champanhe e amor. Aplausos, encantamentos, invejinhas discretas e sinceros rogos diluídos na turba e o carro desaparece na dobra da Dr. Assis.
Eu, que tomar uma cervejinha iria, fiquei bebinho da silva com aquela solenidade. E com a exuberância daquele carro esticadão com teto solar super útil em plena noite de São João.
A humanidade seguia assim, de limousine, no meu cocuruto, num mundo irreal, até que o vendedor de mingau que a tudo assistia ao meu lado, cortou meu barato revelando que não era de verdade, aquela limousine. Era uma imitação mal arranjada. Minha convicção foi destruída por aquela opinião. Voltei ao normal, desacreditando na existência de limousines, motoritas da RAF e chanpanhes.
Hoje, a única limousine que acredito é aquela que carregava minha irmã, quando ela trabalhava na casa de uns ricaços no Rio de Janeiro e nas férias, ia toda chique, no carrão com eles para Angra.



sábado, 20 de maio de 2017

crônica da semana - cai cai da estrela

Cai-cai da estrela
Não tinha aqueles sonhos que parecia que a gente estava caindo? Mamãe dizia que era porque a gente estava crescendo. Com metro e pouquinho de altura, conclui-se que... sonhei muito pouco.
Se não caí tanto nos sonhos, na vida real eu sou o próprio cai-cai da estrela. (nota para os mais novos: Brinquedos Estrela. Era uma indústria poderosíssima de brinquedos que dominava o ramo, no Brasil. A petizada se encantava com os lançamentos da Estrela a cada temporada. Uma outra galerinha tirava onda. Como o marketing sempre agregava o nome da empresa ao produto, em conjugações do tipo ‘o pula-pula da estrela’ ou o ‘bate-bate da estrela’, a molecada logo taxava aquele moleque meio azuruote que do nada, vivia caindo, fosse na bola,fosse nas brincadeiras de pira, fosse no simples caminhar pelos canteiros da Pedreira, de ‘cai-cai da estrela’. O meu caso).
Éraste, eu era campeão. Os meus estatelamentos mais comuns são aqueles de perda de chão. Acho que é porque sou pequenininho. Foi não foi, há aquela distância cruel entre a intenção e o gesto da pisada e tibei-te, lá vou eu ao chão.
(A mais extraordinária das quedas e aquela da qual emergi ileso e não bati o pacau por força de um milagre, ocorreu na Vila dos Cabanos por causa, ora, por causa de dóceis patinhos. Acontece que minha vizinha tinha uma criação que era um mimo. Uma noite de sobras em casa, raspei a panela e fui ao quintal fazer uma pré para os amarelinhos. Deixa estar que o quintal estava escuro e na ânsia de alcançar a cerca que dividia nossos quintais, nem dei que o alpendre era bem alto. Um passo em falso e desabei eu e a panela de petiscos. Até hoje penso que ouvi risinhos patéticos do outro lado da cerca, deixa eles. A queda foi feia, de alto risco. Um anjo me amparou e eu levantei sofrendo apenas de susto).
Ao pegado das quedas por perda de chão, vem o desaprumo por tropeção (ou tropicão, como dizem os mineiros bãos). Este é mais paid’égua. Não comporta tanto risco, e se destaca como um deslizamento algo cômico, algo trágico.
(Na minha passagem por Altamira, trabalhando com Geologia, experimentei longas caminhadas em mata fechada. Era o meu calvário. Eu me enganchava nas raízes, nos cipós, em troncos atravessados no meio do caminho e era tibei-te que não acabava mais. No início, os pequenos da minha equipe preocupavam-se, me acudiam, levavam a minha boroca pra reduzir os enganchos. Mas eu era pateta por demais. Não estava acostumado. Um piado ao largo, um ronronar longe, eu pensava que era uma fera da floresta prestes a nos devorar, desviava a atenção no caminho e enchinava chega fazia um rastro na floresta. Por fim a equipe me largou de mão e esperou que eu por mim, reagisse, que eu tomasse tento. Sei que riam risinhos a cada pouso forçado, mas sabiam que era uma queda doce. A floresta não machuca).

Pelo que se torna e pelo que se deixa, essa marmotagem de cai-cai da estrela me certifica como um homem normal, que se submete a uma lei formulada por Newton. Não sofro por isso. O que me enfeza é saber que tem gente que não se submete à lei nenhuma e só cai pra cima. Só cai pra cima.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

crônica remix- vestida de azul e branco

Vestida de azul e branco
Levando um sorriso franco pelos caminhos que iam dar no Instituto de Educação, Luzia encantava com os seus passos educados, o insubordinado seringueiro.
Pra frente que era, o homem do mato, mais velho e mais experiente, mas indiscretamente apaixonado, não resistia e acompanhava, com evidente interesse, o inocente caminhar da normalista de 16 anos rumo à Escola Normal.
No início da noite, enquanto as moças passeavam faceiras pela praça à beira do rio, ele juntava uns amigos, arrumava um violão e se declarava para Luzia cantando os versos de Nelson Gonçalves que tinham uma normalista como musa inspiradora.
Não conhecia limites, o coletor de látex, fazia e acontecia para chamar a atenção da jovem estudante. Aproximou-se da casa, conquistou os pais, os irmãos, superava-se em gentilezas para a família.
‘Mas a linda normalista não pode casar ainda, só depois que se formar’, alertava a poderosa voz de Nelson Gonçalves na canção. E ele esperou.
Nessa época, Luzia ainda não era a mamãe. Era uma estudante do curso normal querendo ser professora lá nas terras distantes do Xapuri e Manoel Sodré, atentado que só ele, ainda não era meu papai que tão pouco conheci, era um coração entregue, dominado, submetido aos caprichos da paixão.
O seringueiro, que de passagem se diga, era realmente um homem carismático, boa praça, fez porque fez que acabou ganhando a simpatia e o amor da doce normalista.
Casaram-se. E foi tudo direitinho, como manda o figurino. Com véu, grinalda, e lua de mel na capital do então território do Acre. Depois vieram os filhos...
Outro dia, coloquei o disco na vitrola, chamei os meus meninos e disse, olha aí, foi assim que a nossa história começou, com o Nelson Gonçalves fazendo a trilha sonora.

Luzia enviuvou aos 28 anos. Desde então, viveu apenas para as crias. Deu as costas para o mundo e dedicou a vida única e exclusivamente ao papel de mãe.
Neste ano de 2008, faz dez anos que Nelson Gonçalves nos deixou. Naquele dia, quando ouvi pelo rádio a notícia da morte do cantor, senti que os rastros deixados pela felicidade que um dia existiu, estavam por fim, se apagando.  Pressenti que a linha frágil, mas benéfica, útil que ligava a história da cândida normalista lá do interior do Acre com a mãe dedicada prostrada, agora, num leito de hospital em Belém, estava, a partir daquele momento, se rompendo.
Naquele instante, peguei a mão de minha mãe (as mãos mais lindas do mundo), e pedi que ela cantasse aquela canção do Nelson. Por quê? - perguntou ela surpresa com aquela idéia absurda. Porque, mamãe, respondi pausadamente, porque quero guardar a tua voz aqui dentro do meu coração cantando a canção que um dia te fez feliz.
A minha mãe não cantou. O ar lhe faltava para articular as palavras (e tanto que ela gostava de cantar!). E eu também não lhe falei que o Nelson Gonçalves havia morrido.
Por aqueles dias (como hoje, véspera do Dia das Mães), eu quis fugir, me perder no mar sem fim e chorar escondido. Mas no14 de maio, dia do meu aniversário, tive que ser forte. Não escapei ao último encontro com a bela normalista que, certa vez, se apaixonou por um seringueiro bruto. Comemos o bolo de caixinha que a minha irmã fez e cantamos um parabéns austero, como num ritual de despedida, até que ao final da tarde a luz que vestia de azul e branco o olhar da minha amada mãe foi se apagando...

No dia seguinte, o sorriso franco era apenas uma lembrança de uma canção ausente, e minha mãe, para o meu total desespero, descansava serena, para sempre em paz, em meus braços. 

sábado, 13 de maio de 2017

crônica da semana-fosfosol

Choque de realidade
Há muito tempo, lá nos meus primeiros dias de trabalho em Rondônia, ouvi de Rogério, bateador da minha equipe, que se eu não tivesse estudado um pouquinho, eu estaria ferrado.
É que lidávamos com um equipamento muito bruto, quase medieval. Uma parafernália de sondagem constituída de uma plataforma donde quatro homens percutiam uma peça de madeira super pesada sobre uma composição de tubos de ferro temperado, procurando introduzi-la terra a dentro. Era coisa pra macho. E não é que eu fui lá fazer uma forcinha pra ver como é que era a parada. Mas foi pá te aquieta. Como diz a galera da novela: empombaleci na hora. A vista escureceu, os esfíncteres relaxaram, a perna bambeou. Larguei do cepo e desci com mais de mil da plataforma. E haja abano e chuviscadinho de água na cara, pro homi tornar. Quando desanuviei, Rogério, com aquele jeito matreiro de caboclo de Humaitá, irônico, sapeca, chegou e sentenciou.
Aquilo ficou comigo, olha, não exatamente me angustiando, mas confirmando a mais pura moleza do meu ser e da minha mente para essas missões mais aquelas de exigentes. De certo mesmo, é que eu ficava logo verde e o passamento me consumia, ao menor esforço. A minha valência é que não era arte de morrer, porque se fosse, eu já tinha ido desde que tempo.
Não foi só essa vez na sonda medieval, não. Tem uma clássica que aconteceu logo que comecei a namorar Edninha. Quis me amostrar pra ela, dar uma de obreiro, cuidador dos teres e haveres domésticos. Inventei de capinar a frente de casa, pois que o capim já estava subindo o alpendre. Mas quando! O custo foi dar duas enxadadas. O suor desceu frio e farto. E olha que o sol estava devagarzinho quase parando. Sei lá, acho que foi o mormaço. Me joguei na calçada agonizando. “Ai, amor, ai amorzinho, me abana” (me ocorreu que foi assim que minha equipe me salvou, naquele dia em Rondônia com abanos e salpicos de água na cara). Coitada da minha pequena, deve ter perguntado ao pai eterno, muito preocupada, naquela hora, donde, ai ai ai, estava atando a mula dela.
Por causa dessas marmotas, pensei ter um mal gravíssimo, um troço degenerativo qualquer que fosse moer meus dons abstratos e concretos. Reza a lenda, porém, que esse negócio de andar dando pilora por aí tava mais pra dengo, uma artimanha para chamar a atenção, receber mimos e paparicos, dizque, porque eu era amamãezado. É...Poder ser, pode ser.
Outra versão conta que por ter estudado um pouquinho, me achava isento de missões mais brutas. Me achava um doutorzinho besta por causa de um segundo grau técnico conquistado a cinquinhos no boletim. Uma razão bem provável.

A prova é que a cura para as minhas panemices veio com o implacável choque de realidade. Foi só sair debaixo da barra da saia da mamãe, experimentar um período desempregado, ter que me aviar com a lista de material escolar de menino todo ano, que o cabo da enxada ou da pá, assentou como a mais encastoada lapiseira, na minha mão. Pelo sim, pelo não, andei tomando, também, umas doses de Fosfosol para prover Fósforo ao cérebro, Cálcio para os ossos e Ferro para os músculos.

sábado, 6 de maio de 2017

crônica da semana - eiras beiras e fulôs

Eiras, beiras e fulôs de laranjeiras
Vai longe o dia que arrumei minhas coisinhas e caí no trecho para viver de vera, o mundo do trabalho. Este um de carteira assinada, férias, décimo, que arrisca agora, ir pro beleléu.
A poesia, a escrita do coração, a febre lírica, sutilezas e devaneios, ombrearam-se às eiras, beiras e fulôs de laranjeiras; O certo é que nem termos, nem lei, vingam quando é chegada a hora de partir. Eis que as minhas roupas se encaixavam sem resistência dentro da mala na tarde molhada de uma segunda-feira do mês de fevereiro de 1983.
Lá do passado, retiro a mais clara dedução. O momento de arrumar a bagagem, olha, não é fácil não. É de inspirar versos dos mais certeiros, dos mais imbricados.
E trago de lá esta passagem. O cheiro canforinado das roupas que hoje, não me cabem mais. E, por outro lado, pelo lado indomável dos bens afetivos, é roupa que cabe arrumadinha na minha memória.
Naquela terça, fiz uma última caminhada pela Pedreira e Sacramenta. Como era um dia de semana, pouca gente estava em casa. Quem eu encontrava, era agraciado com palavras doces de despedida. Meu melhor amigo me acompanhou no estirão. Demos uma volta enorme, a pé, fazendo um traçado absolutamente emocional.
Quando chegamos em casa, o cansaço era grande, a fome maior ainda, e a comida pouca. Já havia passado a hora de comer. Mamãe ajeitou o que tinha e demos de pau numa farofa de ovo e um caldo de feijão. Foi a engalanada refeição da partida.
Esperamos um pedacinho, após o almoço, para fazer a digestão, e a seguir, eu me entreguei ao rito.
Minhas coisinhas estavam todas na estante que mamãe tinha comprado, mas só havia pago uma prestação além da entrada (dali a alguns dias o caminhão da loja apareceria na frente da vila para levar o móvel de volta por falta de pagamento).
Além das roupas, fui organizando na mala meus livros, a cópia do trabalho de conclusão do curso, que descrevia uma viagem de campo ao ramal das Canas em Ourém e que eu tinha como uma parte forte do meu raquítico currículo; alguns cartões com motivos católicos que meus amigos do movimento jovem haviam me presenteado na missa de domingo e meu troféu.
Na época eu era um campeão. Ostentava um troféu pelo primeiro lugar no concurso de poesia do colégio Souza Franco. Quando saquei do ponto mais nobre da estante o troféu e intentei lançá-lo num cantinho da mala, o coração disparou. Eu estava saindo da minha querida Belém, para uma terra distante; deixando meus amigos, minha mãe, minha poesia, o meu título de campeão. Não deu outra. Nessa hora, me danei a chorar. Foi um choro farto, pleno, um extravasamento que denotava toda a minha tristeza com a necessidade premente da partida. Com a necessidade urgente de trabalho (este um que agora arrisca desaparecer). Chorei que solucei.

Poderia ter estudado mais, tentando outros rumos, aprimorado minha escrita, elaborado minha poesia. Mas não! Tô aqui tomando fôlego, no passado, para garantir a continuidade do trabalho de vera (este um que conquistei, com carteira assinada, férias, décimo, farofa de ovo, eiras, beiras e fulôs de laranjeiras).