sexta-feira, 28 de outubro de 2011

crônica da semana- quem desconfia

Quem desconfia fica sábio
Eu me pelo de medo de ser injusto com as pessoas e com as coisas. E de ser metidão, ser arrogante. Não aprovo qualquer tipo de ataque gratuito (os descabidos, ressalte-se. Posto que, reconheço ataques justificáveis, dos quais, uma horinha ou outra, temos que lançar mão para nos defender. Porque abilesados, também não podemos ser, né’mesmo?).
Tenho o maior ‘coidado’ nas críticas. Procuro ser embasado, elegante e sutil, para alertar, ou até mesmo atacar, e não machucar (ou não machucar tanto, porque sei o estrago que o veneno das palavras faz).
Já andei detonando com coisas e gentes por aí e a vida me ensinou o caminho da cautela. De vez em vez, ainda reino em fazer uma arenga, uma desgovernada verborragia em homenagem a um desafeto, mas antes de dar o bote, olho pra mim. Meço minhas travas, calculo meus valores. Há o risco de, desgraçadamente, eu e meu desafeto, sermos ali, pertinho que só de iguais em teres e haveres.
E se estão pensando que isto é um testemunho de pureza, digo que nem tanto, mas é uma franca confissão: desconfio dos meus repentes, das minhas crenças, e das minhas vontades. Assim, perscrutando, assuntando, desconfiando, procuro ser sábio. É a minha luta diária, entender o ensinamento do Riobaldo, personagem embrutecido-cândido criado por Guimarães Rosa para nos mostrar que há sabedoria na simplicidade. A frase aí do título é dele.
Um alerta: consigo identificar estas fragilidades na contenção do fluxo verbal, nos outros. E com isso, aprendo também. Dia desses, li de um certo alguém, uma passagem nestes termos: “eu odeio pessoas que falam ‘a gente fomos’; ‘pra mim fazer’; ‘vamos se aprontar’; ‘o pessoal chegaram’...essas pessoas não se tocam, deveriam procurar conhecer mais a língua...”.
E essa pessoa aí que não tem noção do que diz, continuou a desfolhar a sua indignação com o acréscimo, no meio da prosa, desta frase perolada: “não é fácio mesmo essa situação”.
A gente percebe que o nervosismo e a intolerância, na crítica ao modo de falar de nossas camadas populares expõem a natureza desleixada do autor desta declaração. A gente intui que por não saber a fronteira entre a oralidade (“odeio pessoas que falam”) e a linguagem escrita, esta pessoa não tá nem aí para a argumentação científica sobre os fenômenos da comunicação. Nunca leu Ferdinand de Saussure e nem mesmo o nosso amado/odiado Marcos Bagno. Quando sugere que “essas... pessoas precisam conhecer mais a língua”, o autor da devassa piora tudo. Junta alho com bugalho, pois que, segundo o próprio Saussure, Língua e fala compõem sistemas distintos. Por fim, a gente interpreta que uma pessoa que faz uma cobrança, cara por sinal, do o uso da norma culta na língua falada e grafa o adjetivo ‘fácil’ com ‘o’, não se conhece a si mesma. Não percebe (mostra-se intolerante, preconceituosa, metidona) mas é igual a tantos quantos (e talvez isso lhe arda).
O que dá pra desconfiar (e desconfiando a gente vai se ajeitando a ser sábio) é que uma pessoa que demonstra seus descontentamentos com a fala popular, desta maneira, jamais se permitirá o prazer de ler um clássico como “Grande Sertão:Veredas” (de onde tirei o título para esta crônica). Na certa, fechará o livro, e para nunca mais reabri-lo, na primeira ‘parna’, porque vai desentender que lá, do hio ao chio, tá tudo mais que conforme com o siso. Esta pessoa não vai sacar as variações semânticas que tecem de ouro o texto de Guimarães Rosa (que peninha, que peninha!).
Resumindo a ópera, é um serzinho gito de tino e de jeito que pensa que tem, mas não tem um isso que periquito roa; um ente que só quer ser o que a folhinha do ano não marca.
Eu ‘disconcordo’ com alguns dizeres populares, o que não quer dizer que não os ache simpáticos (vez sim, vez também, vou catá-los no meio da multidão para temperar meus escritos). Como escrevo em jornal e sei que tenho uns quantos leitores, tomo todo o ‘coidado’ para definir as fronteiras (até já fiz curso gabaritado, com embainhamento acadêmico e tudo, sob a direção ilustrada da professora Alessandra Mattos Vasconcelos, tratando do delicado nicho das Letras e das Gramáticas). Mas, mesmo quando sisqueço e não cuido, deixo ao calibramento dos leitores. Eles sabem...
Reconhecendo minhas travas...desconfiando, vou clareando minh’alma e me achegando  a sábio, a simples e, ora, ora, às coisas e às gentes...

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Artigo enchentes 2

ENCHENTES: AJARDINEM SUAS CALÇADAS (2)

Com o artigo anterior, ENCHENTES: NÃO TIREM A SERAPILHEIRA, iniciamos uma série de textos dedicados à demonstração da importância das medidas ditas não estruturais no combate às enchentes urbanas. Esses textos estão concebidos para, o mais didaticamente quanto o espaço permite, orientar ações técnicas que podem perfeitamente ser adotadas pela sociedade e pelas administrações públicas desde já, por sua simples deliberação, sem nenhuma necessidade burocrática que os desestimule a tanto.
Hoje falaremos das calçadas drenantes e das sarjetas drenantes. Mas antes vamos recuperar o que, no primeiro artigo, já foi esclarecido sobre as principais causas das enchentes urbanas. E vamos todos também saber que as medidas não estruturais são aquelas que, inteligentemente, atacam diretamente as causas das enchentes e não somente suas conseqüências.
Sobre as principais causas de nossas enchentes urbanas não há hoje mais a menor dúvida sobre quais sejam: a impermeabilização generalizada da cidade, o excesso de canalização de cursos d’água e a redução da capacidade de vazão de nossas drenagens pelo volumoso assoreamento provocado pelos milhões de metros cúbicos de sedimentos que anualmente provém dos intensos processos erosivos que ocorrem nas frentes periféricas de expansão urbana.
Esse quadro determina o que podemos chamar a equação das enchentes urbanas: “Volumes crescentemente maiores de água, em tempos sucessivamente menores, sendo escoados para drenagens naturais e construídas progressivamente incapazes de lhes dar vazão”.
Para se ter uma idéia da dimensão desse problema da impermeabilização considere-se que o Coeficiente de Escoamento - índice que mostra a relação entre o volume da chuva que escoa superficialmente e o volume que infiltra no terreno - na cidade de São Paulo está em torno de 80%, ou seja, 80% do volume de uma chuva escoa superficialmente e segue rapidamente para o sistema de drenagem. Em uma floresta, ou um bosque florestado urbano, acontece exatamente o contrário durante um temporal, o Coeficiente de Escoamento fica em torno de 20%, ou seja, cerca de 80% do volume das chuvas é retido.
Diante de um cenário assim colocado, qual seria a providência mais inteligente e imediata para combater as enchentes (e que estranhamente as administrações públicas, todas muito simpáticas às grandes obras e aos seus impactos político-eleitorais, não adotam)? Claro, sem dúvida, concentrar todos os esforços em reverter a impermeabilização das cidades fazendo com que a região urbanizada recupere sua capacidade original de reter as águas de chuva, seja por infiltração, seja por acumulação. Concomitantemente, promover um intenso combate técnico à erosão provocada por obras pontuais ou generalizadas de terraplenagem. Ou seja, fazer a lição de casa, parar de errar. Parece fácil, mas não é. Essa mudança de atitude exigirá uma verdadeira revolução cultural na forma como todos, especialmente nossa engenharia e nosso urbanismo, até hoje têm visto suas relações com a cidade.
Tomada a decisão dessa mudança cultural, haverá à mão, inteiramente já desenvolvido, um verdadeiro arsenal de expedientes e dispositivos técnicos para que esse esforço de redução do escoamento superficial das águas de chuva seja coroado de sucesso: calçadas e sarjetas drenantes, pátios e estacionamentos drenantes, valetas, trincheiras e poços drenantes, reservatórios para acumulação e infiltração de águas de chuva em prédios, empreendimentos comerciais, industriais, esportivos, de lazer, multiplicação dos bosques florestados, ocupando com eles todos os espaços públicos e privados livres da cidade.
E então chegamos ao ponto. Considerada essa enorme importância em reter águas de chuva faz sentido que nossas calçadas sejam em sua quase totalidade totalmente impermeáveis? Somente a cidade de São Paulo tem cerca de 17 mil quilômetros de ruas. Obviamente, há nesse conjunto ruas e calçadas de todos os tipos, mas vamos considerar que em ao menos metade dessa extensão total haja condição de se implantar faixas permeáveis nessas calçadas, com largura média de 1 metro (sempre com o cuidado de se manter uma faixa cimentada lisa mínima de ao menos 0,80m para o trânsito de uma cadeira de rodas). Teríamos então algo como 17.000.000 m2 (consideradas as duas calçadas de cada via) de áreas francamente apropriadas para absorver e reter águas de chuva.
Para o estímulo á adoção dessa simples e agradável providência, uma boa idéia seria haver um incentivo tributário para o proprietário frontal implantá-las e mantê-las. Medida isoladamente suficiente para evitar enchentes? Claro que não, mas que, se consideradas como parte de um enorme conjunto de outras medidas não estruturais de mesma natureza, seguramente vão mudar a história desses fenômenos urbanos.
Vamos a um outro ótimo expediente, as sarjetas drenantes. As águas de chuva que caem sobre a cidade em algum momento correm sobre sarjetas, hoje paradoxalmente totalmente impermeáveis. Sarjetas orientadamente projetadas para permitir a infiltração e até a acumulação de águas de chuva funcionariam como verdadeiras armadilhas para a redução do escoamento superficial (...) Em um programa de implantação progressiva dessas sarjetas drenantes, e ainda usando o exemplo da cidade de São Paulo, teríamos ao final a colossal extensão de 34 mil quilômetros de um ótimo expediente de retenção de águas de chuva.
No próximo artigo trataremos de outras medidas não estruturais de combate às enchentes, os reservatórios domésticos e empresariais.
Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

crônica da semana- hbv


Eu acredito no HBV
Os mais novos não sabem o que significa esta sigla nem indo nem vindo, e os mais velhos não lembram mais o que ela quer dizer. A razão para o abandono e para a dispersão do sentido que a sigla encerra é o desuso. Não se usa mais dizer as horas na versão HBV.
Mas antes era assim: a gente marcava um encontro e tinha que tinha que discriminar a referência. Era tal hora assim, assim, no horário novo! Isso porque, houve um tempo em que a aplicação do Horário Brasileiro de Verão também vinha nos pegar aqui no norte do país.
Adotar um horário especial para o verão, no Brasil, é coisa antiga, data do primeiro Governo Vargas, na década de 1930, e foi inspirada numa proposição do energizado Benjamin Franklin, que pregava, já no século 18, o melhor aproveitamento da luz diurna.
A idéia de usufruir o máximo da luz do dia é bem acesa e é defendida, com muito entusiasmo, hoje, pelos bambambans em recursos energéticos. Eles juram de pés juntos que o país faz uma economia em torno de 5% de energia elétrica no período em que vinga o horário de verão.
Mas os militares pós-64 não deram muita trela pra isso e, talvez querendo traduzir a natureza obscura da época, na fase mais dura da Ditadura Militar revogaram as leis de Kepler, empurraram a sedução astronômica para a clandestinidade e não mexeram nos ponteiros do relógio por longos 18 anos.
Do jeito como o conhecemos, o Horário Brasileiro de Verão acontece desde 1985. Quer dizer, nem tanto. Deu-se antes, um rebu...
Este tipo de procedimento é muito eficaz para as regiões mais distantes do Equador (e eu estou de prova. Nas minhas caminhadas matinais, desde setembro venho acompanhando o movimento do sol. O astro-rei passou por cima do Equador, vindo lá do golfo do México, pairou sobre a gente aqui em Belore e agora ruma firme para o sul. Em dezembro vai estar bem longe, inundando de luz los hermanos, e vai proporcionar o dia mais longo do ano, ou seja, o maior tempo de luz diurna no hemisfério sul. A região de Ushuaia na Argentina, por exemplo, vai receber mais de 17h de insolação no dia 21 de dezembro. Então é verdade. Acredito nisso. Se o verão é marcado por períodos de luz maiores que os períodos de escuridão, o Horário de Verão tem uma razão de ser).
Ocorre que, para quem mora mais próximo do Equador, como nós paraoaras, estes efeitos de luz e sombra são muito discretos. Não são sentidos. A intensidade de luz recebida é, praticamente, a mesma seja qual for o paradeiro do sol. A diferença aqui pra região metropolitana de Belém, é um issozinho aqui, ó. Um tantinho de nada, só pra não dizer que não tem.  Daí as mancadas na reedição do HBV a partir de 1985. Nas primeiras tentativas de adiantar os ponteiros, nosotros sofremos pacas. O relógio biológico reclamou, a gente fazia confusão entre horário novo e horário velho, a claridade do dia não se espichava, às 5 da matina, ao contrário de Ushuaia, aqui nas cidades do norte ainda era o puro breu e lá pra janeiro o toró diuturno escurecia era tudo. Até que de uns tempos pra cá, acabaram com esta marmota para as partes aqui de riba. O negócio é bom mesmo, lá pro sul do país.
Entretanto, como diria minha mãe, tirando um pelo outro, acredito no HBV.
Mesmo porque entendo que o contexto não é somente o da alteração no horário. Para mim, o HBV vai além disso. É um apelo ao carpe diem. Mesmo que não nos valha concretamente, pode servir como mensagem. É um chamado à luz.
(E por falar em luz, este caminhar do sol sobre nossas cabeças, não é bem assim, né. É só uma impressão. Como provou Foucault, com o famoso pêndulo, quem se move, na verdade, é a Terra). Aproveitemos, portanto, o dia.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Artigo enchentes 1


ENCHENTES: CRIEM BOSQUES FLORESTADOS, NÃO TIREM A SERAPILHEIRA

Vamos já de início explicar o que é a serapilheira, e porque ela pode ser considerada o símbolo das medidas ditas não estruturais de combate às enchentes. Bem, de quebra vamos todos também saber que as medidas não estruturais são aquelas que, inteligentemente, atacam diretamente as causas das enchentes e não somente suas conseqüências.
Serapilheira é aquele espesso colchão de folhas caídas e restos vegetais que vai se acumulando no chão das florestas naturais. É a serapilheira que proporciona a proteção do solo contra a erosão, dá vida biológica ao solo e o enriquece agronomicamente, torna o solo mais fofo e permeável. Outra característica formidável da serapilheira é absorver ela própria de imediato uma grande quantidade de água das chuvas, reduzindo em muito o volume de água que escorre sobre a superfície do solo e que acabaria chegando aos cursos d’água.
Sobre as principais causas de nossas enchentes urbanas não há hoje mais a menor dúvida sobre quais sejam: a impermeabilização generalizada da cidade, o excesso de canalização de cursos d’água e a redução da capacidade de vazão de nossas drenagens pelo volumoso assoreamento provocado pelos milhões de metros cúbicos de sedimentos que anualmente provém dos intensos processos erosivos que ocorrem nas frentes periféricas de expansão urbana.
Esse quadro determina o que podemos chamar a equação das enchentes urbanas: “Volumes crescentemente maiores de água, em tempos sucessivamente menores, sendo escoados para drenagens naturais e construídas progressivamente incapazes de lhes dar vazão”.
Para se ter uma idéia da dimensão desse problema da impermeabilização considere-se que o Coeficiente de Escoamento - índice que mostra a relação entre o volume da chuva que escoa superficialmente e o volume que infiltra no terreno - na cidade de São Paulo está em torno de 80%, ou seja, 80% do volume de uma chuva escoa superficialmente e segue rapidamente para o sistema de drenagem. Em uma floresta, ou um bosque florestado urbano, acontece exatamente o contrário durante um temporal, o Coeficiente de Escoamento fica em torno de 20%, ou seja, cerca de 80% do volume das chuvas é retido.
Diante de um cenário assim colocado, qual seria a providência mais inteligente e imediata para combater as enchentes (e que estranhamente as administrações públicas, todas muito simpáticas às grandes obras e aos seus impactos político-eleitorais, não adotam)? Claro, sem dúvida, concentrar todos os esforços em reverter a impermeabilização das cidades fazendo com que toda a região urbanizada recupere sua capacidade original de reter as águas de chuva, seja por infiltração, seja por acumulação. Concomitantemente, promover um intenso combate técnico à erosão provocada por obras pontuais ou generalizadas de terraplenagem. Ou seja, fazer a lição de casa, parar de errar.
Para tanto, há que haver a necessária disposição de se promover uma radical mudança na cultura técnica que vem até hoje comandando o crescimento de nossas cidades, e que confunde a noção de limpeza com a noção da impermeabilização, e que acha que os processos erosivos, frutos do uso intensivo da terraplenagem, são inevitáveis e até aceitáveis. Tomada a decisão dessa mudança cultural, haverá à mão, inteiramente já desenvolvido, um verdadeiro arsenal de expedientes e dispositivos técnicos para que esse esforço de redução do escoamento superficial das águas de chuva seja coroado de sucesso: calçadas e sarjetas drenantes, pátios e estacionamentos drenantes, valetas, trincheiras e poços drenantes, reservatórios para acumulação e infiltração de águas de chuva em prédios, empreendimentos comerciais, industriais, esportivos, de lazer, multiplicação dos bosques florestados, ocupando com eles todos os espaços públicos e privados livres da cidade. E, para esse último caso, como marca de nossa inteligência, e símbolo da necessária mudança da cultura técnica urbana, esses bosques não mais teriam sua serapilheira absurdamente raspada, varrida e removida pelos serviços públicos e privados de limpeza pública, como hoje acontece, mas sim protegida, conservada e, porque não, reverenciada pelo bem que irá nos fazer.
Diga-se de passagem que a decisão de manutenção da serapilheira não exige nenhum dispositivo legal para acontecer, é uma iniciativa que pode desde já didaticamente ser adotada por nossos paisagistas, arquitetos, urbanistas, líderes comunitários, ou quaisquer cidadãos que possam ter algum poder de influência sobre um espaço urbano privado ou público. Ah..., aproveitem para também plantar mais algumas árvores, de forma a conformar um bosque florestado mais compacto quanto possível.
Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Morte em La Paz- Final


Capítulo VIII

O ar da Bolívia é seco. É ausente. O coração bate forte, acelerado. Mais forte. Rápido, rápido, uma médica! Elisângela, a médica das gentes e dos monstros. Sangue dele, pelo nariz. A boca seca. Água mineral. Arrasta-se pelo chão do quarto. Não consegue chegar a nenhuma mina de cobre, nem a Guajará-Mirim, sequer ao telefone sobre a mesinha. O médico da Terra, de 17 anos, estudante de Geologia, apaixonado por Elis, agoniza alucinado e desaparece para sempre. O técnico esmerado, o monstro, amante secreto de Elis, fecha os olhos para os Andes e pede perdão.

Final

Marta foi a primeira a chegar em Cumbica para receber o corpo, assinar toda aquela papelada, aqueles inquéritos, aqueles registros, aquelas declarações.

sábado, 15 de outubro de 2011

crônica da semana- nos conformes

Nos conformes
Só falta mesmo me lambuzar com o mel da maçã do amor, me atracar a um pacote de algodão doce e levar os pequenos para uma rudada no carusser. O resto, tudo eu já fiz neste Círio. Por enquanto, tá tudo nos conformes (as pendências; já, já a gente resolve).  
Este ano não vacilei. Já tenho meu roc-roc (dois, aliás. Um comprado na Feira do Miriti e outro ganhado da galera do Pavulagem, no dia do arrastão), a minha fitinha, o meu leque, o tec-tec batendo palminha, o meu encarte de O Liberal com a imagem da Santa. Já fiz um esforço sobre-humano pra chegar perto da Berlinda, me perdi de propósito no seio fervoroso da multidão, entendi a minha fé e me acabei na maniçoba, depois da procissão.
Vivi, de vários jeitos e maneiras, cada um dos momentos do Círio. Todos muito marcantes. Mas o meu instante de entrega, a minha fatia mais intensa de deslumbre e encantamento, é a chegada da Romaria Fluvial. Fico num pé e noutro para o desembarque da Santa.
No ano passado, quase perdi a chegada da Fluvial. Daquele jeito, né. A menina escovando o cabelo, a mulher experimentando a roupa, o menino pegado no café com pão. E o tempo correndo. De tal forma, que, quando bati o pé na Praça da República, a Santa passou. Éraste, fiquei piriricas da vida! Perdi toda aquela emoção na subida da Presidente Vargas. Gosto de ficar no meio do povo. Sentir a ansiedade. O calor da espera. A agitação na chegada dos barcos. O foguetório...E até a barulhada das motos. Ano passado, fiquei sem. 
Mas este ano, não contei conversa. Não esperei ninguém. Tomei um café rapidola e nove e poucas zarpei. Fiz a coisa mais certa (mulher e meninos ficaram em casa, se arrumando. Quando eles chegaram, eu já estava, ó, pleno de fé e contentamento). Não corri risco, este ano. Tô vacinado.
Depois de ver a Santa, fui viver a minha máxima: “o importante é a companhia” (falo isso pros meus meninos. Às vezes, eles querem debandar com a pariceirada, dar uma fugida, logo nos meus dias de folga, junto a eles. Nananinha. Não deixo. Justifico com a necessidade do aconchego, do chamego e desando em entrelaços analíticos, principalmente pro Argel, que é o mais velho e o mais saidinho. Recito: “teu pai tá aqui, tua mãe tá aqui, tua irmã tá aqui. Pra que tu queres sair, rapá? Bora ficar perto”. Infalível este meu trançado de argumentos. O menino é logo que aquieta o facho).
O sábado que antecede o Círio traz muito desta máxima. A família (que chega atrasada, mas chega), os amigos. Tem o solão? Tem. Tem a caminhada até a praça do Carmo? Tem. É um estirão? É. Mas tem a graça da cultura popular, o banho de cheiro no Veropa e a comunhão com pessoas queridas...
Para mim, é a bênção da convivência. Não há sofisticação nem não-me-toques emplumados, no sábado. Não há frescurite nem ásperos chiliquitos de neo-riquinhos. Há o doce suor. Há a companhia. E isso é o que vale. Na véspera do Círio, o que dá causa, é poder contar com o humor da minha comadre Valéria Nascimento; com a doçura e com a serenidade da querida Vânia Torres; com o espírito de liberdade e com a alegria inesgotável da Lorena; com a arte de Laila e larissa. O que dá vez, no sábado do Arrastão é poder passar a tarde trocando figurinhas com o Edson Coelho, poeta-parceiro-perfeito e interagir com a turma da geologia. O que rende é tirar fotos com os filhos naquela floresta de miriti (“o importante é a companhia”).
Meu Círio tá tudo nos conformes. As pendências, já, já, resolvo: de tardezinha, vou orar pra Santinha, na Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré, dar uma volta no largo e me lambuzar com o mel da maçã do amor.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O dia mais feliz


O DIA MAIS FELIZ DA MINHA VIDA

Ele ajuda, comenta a mãe, orgulhosa, com a mulher que distribui O Legionário. E é verdade. Um garoto esmirradinho todo guenzo, meio penso. Entanguido mesmo, mas danadinho! Sai junto com a mãe todo santo dia, cedinho. O dinheiro no cós do short. A geladeira colada ao corpo, num abraço cúmplice. (Precisa comprar uma maior , que agüente uns cinqüenta picolés e que tenha uma alça resistente. Com esta pequena a renda é pouca e só garante as despesas do dia- a- dia, e olhe lá, ali, ali, rente).
É o meu homem, diz a mãe, deixando escapar um olhar cheio de carinho. É mesmo. Espertinho, abastece a geladeira com vários sabores, não sem antes choramingar um desconto e ainda levar uns de ganho. Paga no dinheiro vivo. E vai, arrastando a sandália japonesa num estirão de terra batida suburbano, até dar na calçada do Alzira Pernambuco.
Só tem um problema, diz a mãe para a vizinha curiosa, ele é muito envergonhado. Realmente. No caminho até a escola, não levanta a cabeça, não olha pro’s lados e Deus o livre de quem o chame  lá de longe: “ei picolé”! De si para si, dispara palavrões, muito pê. E não adianta chamar que ele não vai não, menino. Na frente do colégio sim, ladeado pelo pipoqueiro, pelo unheiro, pelo bombonzeiro, sente-se à vontade. Ali, na frente do Alzira, sente-se protegido pelos colegas de venda. Ali sim ele é picolezeiro. E olha o extra picolé! E tem de groselha, uvita, morango e dois sabores. E tá acabando.
Ele é muito responsável, confessa a mãe à tia preocupada. Com toda certeza . Para o dia seguinte já estavam garantidos os cinco contos das despesas: o picadinho para o almoço, o ônibus da mãe e das meninas e a reposição dos picolés.
O garoto não precisava de nada. Comia aquele tantinho com um punhado de farinha e se mandava para a escola. Pedia carona, passava por baixo da roleta, brigava com o cobrador. Sempre vivia uma aventura diferente. Tinha porque tinha de ir para a escola de ônibus, embora a escola fosse bem ali. Chegava, entrava (na fila era o pri, do menor para o maior) e estudava direitinho. Nada de se meter na bandalheira com a molecada. Acabava a aula e a bola no Areal ficava sempre combinada. Depois da escola, lerdava pela rua ou reunia com os outros embaixo da mangueira da vizinha madrinha.  À noitinha, descia lá para a esquina pra esperar a mãe. Ela não tinha hora pra chegar da padaria. “Enquanto houvesse movimento...”
A mãe chegava e  ele lhe repassava a renda do dia. Comentava os episódios curiosos enquanto ela esquentava o jantar e depois, prestimoso, a companhava até a rede para um sono reparador. Conversavam ainda uns instantes ou ligavam o rádio no programa de serestas, até que um ou outro adormecia. Dormiam assim, lado a lado. Mãe e filho, como é de ser. Lado a lado. O rádio a endeusar: “tu és divina e graciosa estátua majestosa do amor...”
O garoto fazia e acontecia. Andava pelo mundo, batalhava pelos cinco contos. Pastoreava as irmãs e a mãe. Fazia como gente grande, mas em verdade, era uma criança. Fora o futebol clandestino no Areal, ele mesmo não reconhecia momentos que lhe sinalizassem sobre sua condição infantil. Ele não estava nem “seu Souza”. Ninguém tava nem aí. Mas a mãe, é claro, sentia esse envolvimento precose do filho. Essa responsabilidade exagerada com o mundo verdadeiro, tão cedo.
Naquele dia não haveria aula. Os alunos estavam em festa. Era o dia de Nossa Senhora Aparecida e do Descobrimento da América, mas o feriado, para ele, era mesmo pelo Dia das Crianças. Ele nem sabia. Mas a mãe sabia e queria prestar uma homenagem ao filho. Ao seu pequeno grande homem.
À noite, na parada do Pedreira Nazaré, ele percebeu a mãe descer com uns pacotes na mão. Em casa, os desembrulhos. Para o  meu menino, um presente pelo dia das crianças.
Um barco e um trenzinho de plástico verde e branco, desses que são vendidos pelo chão do arraial. No dia seguinte o menino esqueceu até da venda. Desceu ali pro garapé da Visconde, todo faceiro. Uma lágrima de emoção rolava cada vez que o barquinho embicava rumo ao Sul (muito menos que agora, enquanto escrevo esta história). O barquinho a deslizar. Brincadeira de criança (como é bom. Ah, como é!). Naquele que foi o dia mais feliz da sua vida.   

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Morte em La Paz - cap VI e VII


Capítulo VI

Olhou ao longe, os picos nevados deslumbrantes. Coloridos de luz indefinível, misteriosa. Luz fronteira do mar. Tão longe, tão longe está aquele horizonte que sonhou um dia: ser o médico da Terra. Cuidar das feridas da Terra. Elis. Amar Elis livremente.
Tomou dos bolsos do embornal, as ajudazinhas  ofertadas pelos índios. Preparou mais uma dose do citrino uísque, agora sem gelo. Foi até o banheiro e retirou o espelho do armarinho. Sentou-se calmamente ao lado da janela que dava  para as montanhas, e ajeitou o espelho sobre os joelhos. Deixou o saquinho recheado de sementinhas a esperar, no chão, no canto da parede. Lançou mão do papelote e dispôs ordenadamente sobre a superfície lisa do espelho, quantas carreiras foram possíveis. Fez um canudinho com uma nota surrada de dez pesos bolivianos. Vergou o corpo sobre o espelho e reconheceu ali, cordilheiras brancas, misteriosas, brilhantes, em primeiro plano. Ao fundo a figura singela, sincera, de um garoto apaixonado, estudante de Geologia da USP. Repetiu várias vezes o nome de Elisângela, como numa ladainha desesperada e mergulhou no mar de pó branco.

Capítulo VII

Nariz arde, garganta arde. Um brilho confuso desvia o olhar para todos os lados. Tragou do quente uísque, recostou-se na poltrona, e fitou a luz fronteira do mar, lá ao longe, de um colorido fascinante. Elis, Elis, meu amor.
Guardou com zelo, o espelho neblinado de pó. Tomou o telefone e pediu mais água mineral. Luzes ao longe, Andes deslizando, fenda colossal, mercado de cobre. A medicina da Terra. Um grande amor.
Pacientemente e com esmero que lhe é peculiar, enrolou um após outro, os cigarrinhos. Pôs outra dose de uísque e zanzou pelo quarto à cata daquela caixa de fósforo que ganhara de brinde no hotel. Cessada a busca, acendeu o primeiro que, como os outros seguintes, teimava em descolar-se num ponto ou noutro da seda. Puxou forte a fumaça , prendeu a respiração e voltou à janela. Abriu o quadrado envidraçado e viu-se cortado em mil pedaços pelo vento gélido do altiplano. Naquela hora, embrenhou-se nos caminhos sem fim que o levaram ao mar. Ah, Elis. O mar redentor, Elis, meu amor. Soltou a fumaça devagar, respirou fundo e tomou a última dose de uísque. Tragou debilmente de todas as sementinhas. As montanhas a observá-lo pelo quadrado da janela.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Banzeiro de Bênçãos


Aos amigos que prestigiam o blog. Aos recém-chegados trazidos pelas palavras generosas do Roger ou do Álvaro. Alguns que me chegam bem de longe, ou a Alê que me veio das Águas Lindas pra ser a fã número 1.
Aos amigos blogueiros Valentim das terras do Sul ou a Franssinete, aqui de pertim. Aos blogueiros que lutam pelos nossos rios num SOS bravio. Loló, minha primeira leitora e Laila, a minha poeta preferida. A todos que me dão a honra da companhia, eu que sou caboquinho da beira, desejo um banzeiro de bênçãos da Virgem de Nazaré , a padroeira dos paraenses.  

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

crônica da semana - sinal fechado

Sinal fechado (Olá, como vai)
Quando nos encontramos no shopping, a pressa comandava o fim de tarde e as palavras saíram atropeladas, imbricadas. Os dizeres brotavam sobrepostos, pressionando o ar, comprimindo a compreensão, numa confusão cheia de graça e risos generosos. Havia, porém, um quê de felicidade recíproca naquele discurso sem fio condutor. Olhos brilhando de alegria. Recordando, atualizando, revivendo...
Nossos olhares surpresos uniram-se num feixe luminoso que se dissipou em milhares de cores, pelos caminhos da Pedreira em tardes inocentes, à margem da Marquês de Herval...
Vivíamos sombreados por cajueiros nos quintais e pela mangueira do seu Paulo, lá do outro lado da avenida, que abrigava a orgia, os marmanjos que não tinham o que fazer e a intelectualidade da rua, em horários distintos e bem acertados. A rua era de piçarra vermelha, lisa e liguenta, com enormes rasgos erodidos pelas águas de março. Apenas caminhos estreitos nos serviam (num serpenteio o tanto certo pra passar o carro da Assistência), margeados por mata rala e inumeráveis pés de camapu. Uma ilha de terra bem batidinha aqui e outra acolá, servia de campinho para o futebol, ou para o cemitério, ou para a bandeirinha, ou para a pira-mãe (divertimentos de quem não tinha televisão).
Seu Muniz era um nobre. Dona Lina, uma dama. O casal se destacava naquele perímetro da Marquês em que valores como  solidariedade, amizade, cuidado e atenção faziam parte da relação entre vizinhos. Formavam no círculo de amizade de minha avó e logo estenderam seu apreço, também, àquela leva de acreaninhos vindos das brenhas dos seringais. Tinham piscina e abriam o coração e a porta da casa para a garotada da rua se divertir. Dona Lina e Seu Muniz formavam um casal tradicional, de muitos filhos e eles participavam também dos mergulhos e das brincadeiras.  Na hora da algazarra, eram os pri.
O tempo se encarregou de dar sentido às coisas. Todos eram batalhadores (mamãe, Seu Muniz, Dona Lina). Trabalhadores humildes que suavam para garantir o de comer e um algo mais para os filhos. Nada era, de jeito e maneira, fácil ou farto.
Mudamos de casa umas quantas vezes. Viramos a Pedreira do io ao chio, mas sempre perto, sempre nos encontrando. Minha mãe, na lida diária, juntava as marretagens que tinha, calçava a chinelinha baixa e ganhava o mundo. No roteiro, sempre a Marquês de Herval.
A casa de Dona Rosalina Muniz era parada obrigatória. Ela, numa rotina de anos e anos, sempre comprava uma coisinha da mamãe, pra ajudar. Mas era, além de freguesa, uma amiga. A prosa rolava, vinha o café, uma ou outra combinação de visita. A piscina havia desaparecido e a fantasia de criança se desfeito, mas os filhos acabavam se encontrando, pelas escolas da Pedreira, na feira, nos campinhos da rua. Na parada do ônibus...
O mundo vai se mostrando cada vez mais real e exigente. As lutas diárias erguem-se, cada dia, mais ferozes. E os meninos procuram rumo. Almejam crescer. Esforçam-se para vencer obstáculos.
Houve uma época em que eu pegava o ônibus junto com a Helena. Ela ia pra Federal e eu pra Escola Técnica. Ela encarava uma barra na Universidade, naquele tempo. Não havia ônibus direto. Tinha que bancar dois. Um sacrifício de grana (não tinha meia-passagem), de tempo, de conforto...Não havia o RU...Fazia Direito.
Quando eu vejo a Doutora Helena Muniz em evidência (por força do cargo que ocupa, já que de outra forma jamais o faria, posto que vaidade não é a sua arte) fazendo uma declaração na grande imprensa, lembro dessas coisas. E sinto um orgulho danado dela. Minha amiga de infância. Uma vencedora.
Era isso que eu queria dizer pra ela no shopping, naquela tarde comandada pela pressa, mas me perdi em dizeres, com todo direito, confusos.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Morte em La Paz - cap IV e V


Capítulo IV
Tem de ser assim? Tem de ser? Não tem mais 17 anos. Poderosas facções plutônicas cisalharam seus sonhos. A realidade dele é outra. Nem sabe ao certo se é o espírito do médico da Terra ou do aventureiro José Arcádio que o está levando ao desafio de atravessar os Andes. Não sabe dizer. Já viveu outras emoções fortíssimas em outros lugares exóticos. No centro da floresta, no alto de grandes serras. Já realizou trabalhos de pesquisa sob olhares desconfiados dos Yanomami. Já desceu em minas de até mil metros de profundidade. É movido a adrenalina. A profissão afugentou-lhe o medo e destruiu encantos antigos. E que médico que nada. A profissão naufragou-lhe as ilusões em águas de um mar que se esconde atrás dos Andes e que ele procura reencontrar. É o amante secreto de Elis. Que médico que nada. A terra sofre em suas mãos. Casou-se com Marta, há dois anos.
Logo que se formou, entrou para uma multinacional especializada em pesquisar frentes de lavras e viabilizar projetos de mineração. Cresceu na empresa pelo apuro e a sagacidade com que desenvolvia planos de cubagem perfeitamente (propositadamente?) ajustadas às ambições econômicas da corporação. Notabilizou-se por utilizar recursos próprios da Engenharia na elaboração de projetos para barragens, canais e diques. É um profissional esmerado, multifacetado. Tecnicamente irrepreensível. Respeitadíssimo.
O médico, o monstro. Ele agride a Terra. Ataca os seres de Gaia. Com este contrato, na Bolívia, ele pretende abrir uma fenda feérica do Chile ao Peru, que, depois de pouco mais de dez anos de exploração, poderá ser vista da lua, segundo previsão entusiasmada dele. É um grande geólogo. Domina como poucos a geologia andina. Para os amigos, reconhece que um movimento de terra desta envergadura, numa estrutura útil à grande cordilheira, pode sim, comprometer o substrato rochoso e também deteriorar o ambiente lacustre do altiplano. Mas justifica-se: “ É um puta projeto que vai nos dar o domínio total do mercado mundial de cobre”. É uma pena que os Andes venham  abaixo. É uma pena. Tem de ser assim?

Capítulo V

Tem de ser? Elis, meu amor. Pra que desvirginar os Andes? Vir abaixo antes deles? Para que a prosa de encontrar com a floresta à montante do Guaporé? Fazer trilhas ásperas montado em mulas, usar o sombrio poncho boliviano felpudo e coceirento. Tomar chá de cócoras sob a bruma melancólica da encosta boliviana, rodeado de índios curiosos ao entardecer. Para que tantos perdões? Basta um purgatório de ar rarefeito a este monstro, usurpador do sonho do primeiro Buendia. Traidor da fantástica Macondo soterrada sob seus escrúpulos. A ele mil anos de penitência de braços com a miséria e a lama florida, pelos arrabaldes de La Paz. Nunca o mar. A ele, o labirinto intransponível. O repouso agoniado sob as cachoeiras do Madeira. Ao monstro, o fogo impiedoso do centro da terra. Para sempre. Nunca o mar. Nunca o mar.


sábado, 1 de outubro de 2011

crônica da semana - los hermanos

Los hermanos

O álbum duplo “A arte de Mercedes Sosa”, o tenho comigo desde 1985. Ele data da minha passagem por Rondônia e tocou na minha vitrola umas quantas vezes, no correr desses 26 anos. É um disco emblemático que traz os grandes sucessos da cantora argentina. Traz para o coração uma coletânea de cantos emocionados que exprimem o sonho de uma unidade latina e expressam a ânsia por liberdade e paz. Professa o desejo de sermos todos hermanos. É um manjar sonoro que alimentou, durante muitos anos, o fogo revolucionário dentro de muita gente (um fogo que ardeu dentro de mim também).

O vinil já rodou, inclusive, em reuniões da confraria que criamos, eu e um grupo de amigos aqui em Barcarena. E eis que no nosso último encontro, não deu outra: o disco rodou de novo. Um dos convidados selecionou os dois LP’s e os colocou no prato.

Há algum tempo, fazemos um encontro, para tomar um vinho ‘palatável’, ali na faixa mínima dos 5 Reais, tocar uma viola, recitar uns poemas, falar bobagem, cortar um queijinho e ouvir um vinil. Claro, gente, que não é necessariamente nesta ordem. Os participantes são cabanos. Vizinhos, professores, acadêmicos, operários... Até políticos iniciantes e gente do alto clero da administração pública já marcaram presença (aqui não rola o preconceito). Todos além dos trinta, com exceção do David, um jovem economista que tem cadeira cativa, muito porque é um garoto inteligente e boa praça, mas também porque é o único que tem a vista boa para ler os rótulos, identificar e comentar as safras que pintam na casa.

Colocamos um nome pomposo na reunião: Confraria do Vinho. A desculpa para o encontro é, realmente, adestrar o paladar, adaptar os gostos e conhecer os variados tipos desta bebida mítica. Na mesa já rolaram safras ilustradas e até água, porque acreditamos que esta,  foi-não-foi, pode ensejar uma transubstanciação.

A idéia surgiu a partir da necessidade de programações culturais alternativas para quem vara a sexta aqui na Vila dos Cabanos. E também para fugir das mesmices barulhentas que assombram a cidade. Houveram uns pilotos legais com a participação do poeta Rui do Carmo e com as prescrições melódicas do doutor Antônio Carlos, ao violão. Aí a gente se animou.

O ambiente é free. Quem chegar tá chegado. Basta trazer o bom humor, um poema escrito num papelzinho, uma garrafa de vinho debaixo do braço e a amizade. A convivência e a interação contam, na reunião, mas quem faz sucesso mesmo como gerador de bons ares, é o som que rola (baixinho para não incomodar a vizinhança e para permitir o papo) lá no meu três-em-um. Tenho uma ruma de vinis e a galera, principalmente os mais jovens, se encanta. Fuçam, fuçam, tiram da capa, passam a flanelinha, comentam, descobrem coisas (destaque para o disco da Xuxa, um long play  do Led Zeppelin e uma cult do Charlie Parker, que eu, por falta de tempo ou por insensibilidade mesmo, nem sabia que existiam no meu acervo).

A idéia é que nosso encontro traduza fielmente os contentamentos que transitam num simpósio (que é uma palavra de origem grega e que significa ‘beber junto’). Importa, na confraria, que a gente se sinta bem e feliz.

No nosso último encontro um dos jovens convidados selecionou o álbum da Mercedes Sosa. Logo naquele dia em que eu vivia um sobressalto temporão pelos nossos sonhos perdidos, nossos desencantos políticos; sobre a queda de nossas muralhas ideológicas, sobre os nossos deslizes morais. Ah, esses moços, que me volvem, ‘curtido de solidão’, para um mundo de tantos hermanos e para “una hermana muy hermosa que se llama libertad”.