Prece
Há
muitos anos, fiz um curso com o Flávio. Àquela época o conhecíamos como Flávio,
o italiano bonachão, carismático, bem humorado, que desejava ser padre e vinha
de vez em quando para Belém atuar nas obras salesianas. Ordenou-se, exerceu o
sacerdócio e foi além. Que eu conte, foi Bispo de Abaetetuba, Santarém e, agora
por esses tempos comuns, é o representante de Cristo no Acre. Inspira uma
reflexão muito atual porque toda vez que lembro dele, me vem o curso que
ministrou sobre as ‘virtudes teologais’, que as traduzo como sendo as
expressões do verdadeiro apostolado cristão.
Muita
coisa mudou desde aqueles anos 80, quando eu me envolvia na fé e na vivência,
em causas salesianas. De lá, a cá, posso dizer que minha certeza dilui-se em
sucessivas frustrações e críticas profundas. Dúvidas submersas passaram a regar a minha
vida. No entanto, o que fica de bom, a gente não descarta.
As
virtudes se expressam em “fé, esperança e caridade”. São conceitos muito
complexos (vemos hoje como essas expressões são desvirtuadas, aviltadas,
imoladas). Naqueles dias, a generosidade de Flávio subiu a régua e nos ofereceu
a interação com a sabedoria abrigada na Igreja. As virtudes não eram temas do
vulgo, e nas suas complexidades, eram tratadas como propriedades do alto clero.
Ao menos a mim, que nunca ouvira falar delas, assim me pareciam.
Torno
aos nossos tempos. Desses valores tão necessários, urge nutrirmos a
esperança. Meu Deus, me perdoe a minha
descrença e, por ora, a minha leviandade, o meu pragmatismo mundano, mas
humildemente te peço que me dê uma luz. Mostra para mim, meu pai, um caminho
para ter esperança. E vou ser mais claro nesta minha reza. Pode rotular, não
tem problema, de interesseira, dirigida, encomendada na inspiração de um
descrente: Poupa, Senhor, os nossos jovens. As nossas crianças.
A
eles, é dado o futuro. Não precisa ser só de acertos. Deixa que se realizem nas
tentativas. Engalanem-se nos sucessos, reflitam nos fracassos. Deixa que
tentem. Que vivam para experimentar as leis da natureza, para forjar milagres
humanos, para remendarem e prolongarem o tempo. Venho, meu bom Pai, diante de
vós, na minha loucura, na minha insensatez, na minha hipocrisia agnóstica,
desavergonhadamente, sem pudor nenhum. Quedo-me desvestido das vestes
engalanadas de cultos, como o Santo Chiquinho, a renunciar à minha soberbia,
aos meus pendores sociais, e em trégua com minha desconfiança e distância dos
designos celestes, te peço. Cuida dos nossos jovens, das nossas próximas
gerações. Não podemos mais pensar num futuro descontaminado da dor, quando
vemos enfileirados, caixões de crianças em Gaza. Bebês refugiados nos ermos,
balas perdidas nas favelas, destruindo sonhos. Garotos e garotas perdidos no
auge da vida, do despertar das mais desafiadoras experiências. Às crianças e
aos jovens, está destinado o futuro do nosso planeta azul. Não os deixe
sucumbir à negação ou ao aprisionamento do pensamento raso. E que tua vontade, Senhor de tudo e das
coisas, nos dê acreditar na esperança e não no pranto sem medidas ou na dor
infinita e inapelável, como esta que de maneira tão cruel, nos abate, assim em
um repente do dezembro. Esperança não importa qual. Se aquela advogada pelos
cânones eclesiásticos ou esta nossa, de esquina, de vida vivida, de conquista
do pão de cada dia, de carinhos às pessoas tão amadas.
Esta
semana, minha razão foi abalada. A serenidade deste sexagenário foi questionada,
a extensão da vida; dolorosamente o ciclo lógico da espécie sofreu um duro
golpe. Acudi-me aos ensinamentos de Dom Flávio, que continham uma justa
substância real, concreta, ponderável. De
religiosidade e racionalidade. E neles, busco o amparo.
Que
o ano novo nos redima. E que a gente busque, na vera, na real, e de coração,
viver na esperança... na fé e na caridade.