Vieses
Às vezes acompanho os movimentos dele, a fala, os olhos cor de mel, uma zanga, um contentamento. Coisas só dele. Do eu dele, do mais íntimo e recôndito dos pensamentos dele, e me perco em resignadas exclamações: “meu filho, meu próprio filho, quem diria”.
Segunda-feira, vai fazer 16 anos. E sempre me surpreendendo. Encanta-me profundamente essa história de um outro ser, de uma vida derivada da gente. Mas não a mesma. Animus, verve, opiniões e intenções diferentes. O valor da (pro) criação se realiza nas assimetrias, se eleva na diversidade, na sinuosidade das gerações.
A característica física mais observável que temos em comum é a negritude (e para por aí, já que o menino é um teba d’um preto linheiro e eu sou um baixola barrigudinho). Além do fenótipo, entendo que a reedição de um ferino senso de humor é um traço da alma que nos aproxima. À parte estas interseções, nos enviesamos declaradamente. Tirando estes detalhes, somos meio extremados. Diferentes. Ainda bem.
Confesso que demorei para aprender isso. Sou do tempo da planificação, das reproduções de normas sem muito questionamento. E até, deixo escapar aqui, confundia as coisas. Achava que um assentimento educado aqui, ou uma conivência elegante ali, sugeria a total sujeição do meu filho aos meus anseios. Mas dia desses, tive que revolver, remexer drasticamente os meus conceitos. Caí na real.
(Estávamos empenhados em tomar partido, efetuar escolhas, definir projetos para o futuro do adolescente Argel. O pobrezinho, no canto, tentando agradar ao paizão aqui. Nem maldei que as ações estavam sendo realizadas de um jeito a atender aos meus desejos. Argel de Assis entrava na história somente como objeto, não dava um pio, não lhe era permitida a chance de ser o sujeito do seu destino. Devo dizer que não fazia isso por mal. Era uma conduta, até então, normal pra mim. Atendia a uma forma tradicional de agir. Até que um dia, ele me chamou no canto, rasgou a maior seda pra mim, disse que me admirava pra caramba, que eu era um exemplo e tal e coisa, e coisa e loisa, mas que ele não era a minha cópia fiel. Tinha uma outra pegada, objetivos próprios. Alertou-me que eu estava traçando os caminhos dele, moldados ao meu jeito de caminhar. E que não era dessa forma. Ele não andava com os meus pés. Andava os pés dele. Via com os olhos dele. Ouvia com os ouvidos dele. Podia sim, colocar os sentidos, o talento, a energia  dele, a serviço de um projeto que ele mesmo arquitetasse e que lhe coubesse de acordo com suas posses. Este dia foi um recomeço para nossas vidas. Daí, os meus suspiros: “meu próprio filho, quem diria...” faz questão da liberdade. Pai d’égua isso. O valor da (pro) criação se realiza na possibilidade de forjarmos pessoas melhores, bem mais elaboradas que a gente. Sinto-me orgulhoso de ter ajudado na formação de uma pessoa que reivindica  ser livre. Permito-me ser metidão. Admito que esta conquista, na relação pai e filho, me dá uns pontinhos na minha empreitada de pai).
Ah, tem a paixão pela bola: tenho uma coisa comigo. Um repente instintivo. Não posso ver uma bola que me vem logo aquela vontade insubmissa de fazer umas artes. Coisa minha, de moleque livre da Pedreira. Se estiver assistindo a uma partida e a bola escapulir pro meu lado, faço meu repertório de firulas, e só depois é que devolvo pra galera. Não resisto. Dentro de mim, bate um coração bola. E sabe, Argelzinho, nem somos tão enviesados assim, a paixão pela bola é algo que a gente pode assinalar sem errada: “tal pai, tal filho”. A bola te faz livre, mas também nos ata, nos atraca, nos atarraxa. E eu acho é bom.