segunda-feira, 28 de agosto de 2023

crônica da semana - Pitico e os ipês

 Pitico e os ipês da Marquês

Não sei se patetei, passei batido, caminhei pra’aquelas bandas depois do caso passado, imaginei, romantizei demais. Só sei que não vi florada que me chamasse a atenção dos ipês da Marquês, este ano. Na linguagem comum das beiradas, dir-se-ia que dessa vez só encontrei ipês pecos. Árvores amofinadas, de viço pouco. Bem diferente de encontros anteriores, quando brilhavam ao longe, sobressaíam-se rosa tendo o interflúvio do Galo e do canal da Três de maio ao fundo.

Pra não dizer que teimei no vago e no seco, fucei lá no meu blog, crônicas passadas em que enchi a bola daquele enfileirado de ipês que se estende pelo final da Marquês de Herval. E dei com os relatos, as evidências do tempo. Afinal é pra isso que a crônica vinga. Para ser o sinal do caso este ou aquele que se realizou em determinado tempo. E que se eterniza em narrativas irrigadas pelo coração. E meu coração bate no ritmo aquele que encontrei na crônica. E lá está o deslumbramento, o encanto que senti em 2021 logo que tomei coragem pra enfrentar as ruas, em meio a tantos sustos vindos da Covid. Exercitava o corpo há tempos recolhido em casa. Meu caminho era o estirão da Marquês. Na mesma batidinha, de máscara e obstinado na prática reparadora da aeróbica, encontrava sempre o professor Paulo Nunes. Aos poucos fomos nos recomendando ali pelos encontros no caminho. “Hoje os ipês estão maravilhosos”. Entre julho e final de agosto contei umas quantas floradas. Ocorria pico do colorido rosado, a copa ficava densa daqueles ‘coninhos’ graciosos. Passavam uns dias e as flores caíam. Mais com pouco voltavam, com a mesma energia, com o mesmo garbo e com a mesma alegria.

Este ano não vi isso. Não percebi reincidência na florada e nem a pujança do colorido. Somente a timidez dos ipês da Marquês, notei.

Pode ser, né, pode ser que tenha ocorrido. Passei uns dias fora, de férias. Se rolou mesmo, o esplendor, perdi. E tá perdido. Só par’uano agora.

Além do atrativo dos ipês, a Marquês entra na pauta das minhas caminhadas por causa, ora, de boas lembranças da minha doce meninice.

A rua se destaca por ser bem larga. Hoje tem os canteiros e tal, mas antes era de grande envergadura. Minhas recordações tendem a seccionar a Marquês em breves trechos, cada qual com o seu cada qual, a sua particularidade. Por ora, me apraz contar sobre o pedacinho entre a Mauriti e a Estrela. Ali foi o palco de grandes embates no futebol de rua. Nem preciso dizer que as estrelas do insuperável, inquebrantável, inarredável, imbatível Internacional da Mauriti cortavam e aravam com o melhor futebol por lá.

As disputas eram duríssimas, ferozes. À época a rua não era pavimentada. Era coberta com uma piçarra vermelha e ladeada de valas largas tomadas de capim em alguns pontos e povoadas de girinos. De vez em quando um atleta era jogado pra dentro da vala. Por isso que nessas partidas, eu preferia atuar na zaga. Embora pequenino, era raçudo. Mandei muito atacante abusado ter com os girinos. Visitei muitos também. Era a intensidade da disputa. Não permitia vacilo. A regra era 10 minutos ou um gol. Uns três times na grade. Ninguém queria sair e ficar de fora, mofando.

Eram jogos também considerados. Alguns craques da ocasião faziam questão de participar das nossas tardes. Ricardo, que era astro do Peladão; Marinaldo que já despontava na lateral do Paysandu e Pitico, que não era profissional ou boleiro rotulado, mas tinha uma categoria, exibia estilo, controle de espaço, tempo, e uma calma. Quando ele jogava parece que a bola agradecia o tratamento e aceitava o destino da forma mais plástica, mais ornamental. Pitico elevava a qualidade do futebol da Marquês com aquela arte primorosa de tratar a pelota. Quando estava na peleja, embora perdesse, nunca ia pra grade.

sábado, 19 de agosto de 2023

crônica da semana - castão e meu caderninho

 Castão e o meu caderninho

Ferreirão foi cozinheiro da minha república, nos meus primeiros anos em Rondônia. Faroleiro que só ele. Contava cada uma mais cabeluda que a outra. Desenvolveu, certa ver, a narrativa de uma história que consumiu umas duas noitadas regadas a muitas latinhas (ainda revestidas com liga de estanho, aquelas, difíceis de amassar), de cervejas. Exigiu de mim muita atenção e desprendimento para aceitar a afirmação que ele fez ao final. Era uma história em que ele morria no fim.

Eu, heim, fiquei meio bambo do toutiço com este negócio de conviver com um ressuscitado.

Pela regra do bom português, Ferreirão era um homenzarrão. Um amazônida bem no aumentativo. Porrudo. Muito forte. Era dos ermos. Contava aventuras de garimpos e sertões longes, beirando a calha do Amazonas. Orgulhava-se de ser um dos mais resistentes mergulhadores do garimpo que se realizava no Madeira. Nem lembro tanto, é certo porém, que certa vez, num balneário próximo, ele demonstrou sua capacidade de mergulho em apneia. Sei que ficou um tempão embaixo d’água. Tempo até além da nossa compreensão. A gente só via a borbulhinha subindo e ele lá no quieto do fundo do igarapé. Impressionante!

Se eu atentasse para um caderninho em mãos, à época do Ferreirão, ou mesmo nos dias aqueles outros que se seguiram até hoje, teria mina de causos na bagagem. Negócio é que não tenho este costume. Não tenho a disciplina do apurador-coletor, do perscrutador dos desvãos assim assados dos instantes.

Deixa que me rendeu, a convivência. Não saí zerado daquele encontro. Numa das nossas sessões ao final da tarde, bebericando uma cervejinha (porque naqueles ermos rondonienses se bebia que só) Ferreirão nas suas invencionices, me trouxe uma aventura passada entre Letícia e Pucalpa, na fronteira do Brasil com o Peru, em que ele se envolveu em cerimoniais indígenas e, animado, jogou luz ao farto consumo do chá de Mariri. Segundo ele, viajou por mundos encantados e coloridos a cada virada de copo. Anos mais tarde eu reproduziria esta cerimônia em uma cena determinante do meu conto ‘A Filha do Holandês’, uma saga amazônica que ganhou até prêmio. Destaco que, um conto baseado em um dos componentes da Ayahuasca, foi a produção que me deu o primeiro dinheiro vindo dos meus escritinhos. Fiquei metidão pacas com esse prêmio.

Além de cozinhar, farolear e desvelar segredos psicodélicos vivenciados, Ferreirão arriscava uns versos e compunha canções de cabeça. Sem apoio de instrumento algum. O tema era sempre amor, a lida garimpeira, a solidão na selva, o sonho de ficar rico e encastoar uma pepita de ouro bem grande no cabo niquelado do canivete que carregava consigo.

Na minha ignorância (ou de par com minha empáfia urbana conservadora), entendia algumas menções de Ferreirão como criações próprias, palavras que ele forjava na vida e até mesmo como resultado da troca de gírias e termos mundanos com nativos da fronteira que falavam outras línguas. Eu não acreditava em um sonho que se compusesse do verbo ‘encastoar’. Para mim, este verbo era mais uma subversão lingüística do Ferreirão.

Desacreditei das prosas do homenzarrão, até que a tela de cinema me revelou o certo das coisas. Dei com o Robert De Niro, em “Coração Satânico” amparado numa bengala e, no extremo da bengala, um cabo bem trabalhado e uma pedra cravada na superfície polida e poderosa. Era uma pedra encastoada. Segundo o dicionário, encastoar significa introduzir castão que por sua vez diz-se de um ornamento que se usa em empunhadora.

Eu era um ouvinte descrente, digo até presunçoso e bestão. Ferreirão, sim, sonhava alto, e sabia das coisas.

Como prenda, me livrei das certezas vãs e fiz um poema, esta semana, com o verbo ‘encastoar’. Qualquer hora, mostro aqui.

sábado, 12 de agosto de 2023

crônica da semana - a beleza da noite

 A beleza da noite

Podemos reclamar do calor que deixa a gente em tempo de estoporar. De correr doido. Vale reinar uns ralhos na turma de refrigerados vereadores que votou contra a instalação de ar condicionado nos ônibus. Um jeitinho de tirar o brilho de pupunha da carinha corada a gente tem que arrumar. Banho aqui, acolá, ventilador em tempo de levantar vôo e olhos pro céu à cata de um sinal de chuva, que não vem, fazem parte do rito e da valência diária.Temos, porém, que dar um desconto porque sem as nuvens e com os dias sem chuva, o céu dá espetáculos um atrás d’outro. Amanheceres doirados, pores do sol matizados loucamente, sem regras; O planeta Vênus mergulhando na beirada tangente da Terra, imenso, e essa lua que nos visitou semana passada, heim... Que lua!

O esplendor da lua fez das nossas noites, durante boa parte da semana, um sonho de luz aos olhos bem abertos. Inspirou, legou esperanças, deu vontade de cantar na janela. E foi num trisca que recorri à canção do Mestre Curica que diz exatamente sobre a ação inevitável que nos anima diante de tantas sensações: “vou curtir a beleza da noite”. Nos leva a apreciar, imaginar, criar ilusões, ou apenas contemplar a lua em noite prateada, enfim, nos alenta, nos revigora e nos alerta para os fenômenos naturais que fascinam. Até do calor a gente esquece.

E o mês de agosto nos reserva ainda outra grandiosidade no céu. A superlua azul.

Não. A lua não vai se tingir de azul. Este é um fenômeno que sempre ouvimos falar e consiste no fato de a fase cheia da lua se repetir no mesmo mês. O que torna é que o ciclo de cada fase da lua se realiza em 28 dias. Do jeito que, se a lua minguante cai num dia 03 do mês, ela volta a ocorrer 28 dias depois. O mesmo acontece com as outras fases. A conjugação das fases e o calendário terrestre, pelo comum prevêem uma fase por mês. Por exemplo: a lua cheia, a minguante, a nova, a crescente tendem a acontecer apenas uma vez no período. A lua azul identifica exatamente a repetição da mesma fase. Azul, tenho impressão, é um jeito romantizado de dizer que aquela fase cheia ocorre pela segunda vez no mesmo mês. Destaque-se que as outras fases passam também por esta duplicidade. Mas não são tingidas pelo romantismo azul. É o que acontece agora em agosto. A primeira lua cheia foi no dia 1º e a segunda, a azul vai ser no dia 30 de agosto. Destarte que vamo se aperparar é que é, esta gente. Porque além de azul, a lua vai ser super.

Assim como a Terra gira em torno do sol de forma meio troncha, desse mesmo jeitinho se dá com a lua. Esta trajetória faz com que a lua numa horinha esteja mais perto e em outra esteja mais longe da gente. O tamanho que a gente percebe da lua depende desta distância. Quanto mais perto da Terra, maior o tamanho da lua.O fenômeno da superlua é justo quando a lua cheia coincide com a menor distância da Terra. O perigeu, que é esta aproximação da lua, pode acontecer em qualquer fase, mas quando é na fase cheia,corta e ara, é show. É super.

Já olhei aqui na folhinha do ano. Dia 30 vai cair numa quarta-feira. Vou quebrar minha rotina de operário de casa pro trabalho e do trabalho pra casa e vou ficar pelo meio do caminho. Me convidei para uma varanda virada para leste, lá na TF, que reúne parte das áreas com maior altitude de Belém, e donde dá pra ver direitinho o nascer da lua no baixo horizonte. No melhor momento porque ao subir pro centro do céu, o brilho até permanece intenso, mas a percepção de tamanho, de superlua, amaina. Lá pelas seis horinhas ela vai despontar formando um círculo 7% maior que o de costume e 15% mais brilhante. Vamos fazer um brinde e, embevecidos, nos dar seguir o conselho do Mestre Curica e curtir a beleza na noite.

 

 

sábado, 5 de agosto de 2023

crônica da semana - cadeado era um nó

 A maleta é um saco e o cadeado, um nó

Desde 2019 não tirava férias assim pras partes além das fronteiras paraenses. Mesmo depois da pandemia aquietada e controlada ainda maldei reveses, temi pressentimentos, quedei-me por aqui por perto e aproveitei as paradas no trabalho para rever paraísos domésticos em Barcarena e Mosqueiro. Passados os medos e aperreios, bivalente no sangue e na alma, este ano ganhei mundo. O lugar escolhido foi Minas Gerais.

Alguns fatores contaram para a escolha. Um relevante foi o financeiro. Com as passagens pela hora da morte, o roteiro Minas se mostrou bastante em conta. O outro componente foi decisivo. As amizades. Tenho amigos ali, pras bandas das Alterosas, que conheço e mantenho relação desde 1983 quando trabalhamos em Rondônia. Era uma boa ocasião para revê-los e regar nossa amizade com fluidos de paz e compreensão, que veio bem a calhar com a proposta de revisitar aspectos das minhas andanças pela Amazônia, enredo do livro “Igarapé Piscina” que lanço neste mês.

Tudo refletido e avaliado, agarrei e fui.

Alguns impactos na viagem de avião. Aeroportos mudados, inclusive o de Belém. Sinalizados. Não vi, como antes, risco de me perder (porque, olha, antes me perdia que só). Passei, também, pela experiência de viajar contando com os direitos dos sessentinhas. Outras vezes, como sempre usava a tarifa mais barata, embarcava por último e cortava um dobrado para conseguir espaço de acomodar minha bagagem, inda mais com esta estatura de metro e meio que não permite alcançar a gaveta, na boa, que dirá no aperreio do corredor apinhado. A luta selvagem por um lugarzinho no bagageiro continua, mas para mim, agora foi de boa. A prioridade legal para embarcar nos dá escolher lugar para socar as malas, com tranquilidade.

As malas, por sinal dão o tom. Sou do tempo em que tínhamos direito a despachar até 20kg de bagagem sem acréscimo na tarifa. De uns anos pra cá, passaram a cobrar e isso levou a maioria das pessoas a optarem pela bagagem de mão. Daí a luta ferina pelas gavetas, que são raquíticas e contadas. Muita bagagem. Tamanho das malas e das pessoas diferentes, indelicadezas, atrasos, esbarrões e estresse na hora de se ajeitar para seguir com a viagem.

Pelo que entendo, as companhias meio que compulsoriamente agem para evitar o caos; e na última hora, tentando um alívio, buscam interessados em despachar a bagagem sem custos, já ali na biqueira do acesso à aeronave. Uma atitude, diria que regrada pelo sadismo, pois que se franqueasse o benefício ainda no check in, facilitaria pacas o processo.

Eu acho um transtorno viajar com as malas dentro do avião. Fosse de graça, despacharia de prima e entraria na cabine só com a minha frasqueira com lanche e água. Daí, que quando chamam ali na base do arrependimento e da hora para despachar a bagagem, sou o pri. Mando tudo pra esteira. Mesmo porque carrego uns quase nada. Naquele baque: a maleta é um tanto além de um saco e o cadeado...

Por falar em cadeado.

Fiquei besta de ver que na hora do despache grátis, pouca gente se arvorou. Eu, lógico, e mais uns dois gatos pingados. Me pus a refletir por que as pessoas preferiam o caos, a luta selvagem a se livrarem do peso das malas. Na sequência, saquei. Medo.

Hoje os cadeados das malas tornam-se frágeis nós. Facilmente desatados. Há o risco da mala ser batizada, trocada. Periga a gente embarcar limpo, cidadão de bem e desembarcar nocivo meliante... Por essas, a galera prefere mesmo é andar com as coisinhas coladas no corpo, não tirar os olhos das bolsas e malas e ficar atenta. Impressionado, quis voltar atrás e pegar minhas malas de volta. Mas quite... Já estavam amassadas no carrinho, embaixo de tantas outras. Ainda deu pra ver o cadeadinho. Era pouco mais que um nó.