sábado, 24 de fevereiro de 2018

crônica da semana - segura tafarel

A melhor parte
Era a fase final das olimpíadas de 1988. Taffarel estava agarrando até pensamento. Até menção o guarda-metas brasileiro agarrava (o camarada fazia menção que batia num canto, batia n’outro, mas nosso goleiro, ó, caía abraçado com a redonda).
A boa participação do goleiro brasileiro nos jogos olímpicos proporcionou a criação de uma nova função para a minha equipe de geologia, nos trabalhos que realizávamos na beira do Xingu. Destacou-se na campanha, o nosso agarrador de peixes. Com direito a bordão e tudo: “segura o Pacu,Taffarel!”. Essa é a melhor parte da história. Nos primeiros dias de acampados às margens de umas das centenas de lagoas que se formavam no período de seca do Xingu, era peixe a dar na canela. De tudo em quanto. A gente sabia da fartura e já na preparação da campanha, eu definia as regras. A jornada seria na base do cabou-banhou. Daí, era correr pro abraço. A turma que voltava mais tarde para o barraco, com a missão diária cumprida, não chegava além das duas da tarde. Ninguém almoçava. O rancho da empresa era só a entrada, só um aperitivo. O dicumê pra valer, a gente tirava na hora, ali da lagoa.
Taffarel atento, nos postávamos na areia, arrodeando a lagoa. A bom puxar. A bom puxar. Puxávamos e lançávamos para trás, donde nosso Taffarel se encarregava de retirar e jogar o anzol de volta mais que depressa. Mas não dava hora cheia de pescaria e tínhamos um curral pra espocar de tanto peixe. Retirávamos alguns para o almoço e o que ficava, a equipe se dividia, quando baixávamos para a cidade. Agora pensa, não, 15 dias a bom fazer curral, a bom puxar peixe, a bom nosso Taffarel trabalhar. Nossa baixada era farta. Abençoada. Minha equipe saía com rico provimento para a família. Acho que o bom Deus vai me dar um desconto na hora da quitação. Sei que nessa época, flexibilizando a lei trabalhista por minha conta, e dando oportunidade para a equipe pescar, ajudei a botar o dicumê na mesa de muito curumim.
Mas era mina de peixe. E essa é a melhor parte da história...
Porque eu fui um pescador ruinzinho, olha. Escrevi uma crônica que entrou na coletânea comemorativa dos 400 anos de Belém, editada pelo poeta Cláudio Cardoso, que fala da minha panemice como pescador na escadinha da praça Pedro Teixeira. Não puxava nem Bacu. Anos e anos passando férias no Veropa. Lata cheia de minhocas, anzol, linha deste tamanhão. E nada. Minha linha engatava. O peixe espertinho esmigalhava e roubava minha minhoquinha em partes. Aqui, acolá,  puxava um até na pedra, mas lá ele se soltava. Era essa a minha sina na escadinha. Dia após dia, no zero. Só estou é que o camarada do meu lado, pedia uma minhoca, eu emprestava pra ele, ele jogava o anzol e de repente, puxava um teba dum peixão. Éraste, parece uma coisa!
O Xingu foi minha redenção! Também, naquela lagoa, nos primeiros dias, parece que meio desavisados, os peixes se deixavam fisgar até sem isca. No puro brilho do anzol.

Com o tempo, os peixes ficavam escabreados, exigiam minhoquinhas, iscas elaboradas, minha panemice tornava e Taffarel, sem função, voltava pra lida no campo. 

sábado, 17 de fevereiro de 2018

crônica da semana - Vin Diesel

Eu vi o Vin
O tempo é o senhor das tentações. Mas quando que pensei um dia passar o feriadão de carnaval em casa, só ouvindo meus vinis, cozinhando pratos autorais, bicando uma gelada e nanando. Olha que nanei. A rede esteve pra furar de tanto que o soninho rendeu.
O clima, o comportamento, a placidez da cidade foram componentes que concorreram para a boa paz de quem, a romaria do carnaval, na sua casa fez. Belém se estirou em uma calmaria de zunir os ouvidos de tanto silêncio. Tirando uma ou outra passagem de carros-som perdidos pelos escombros da Aldeia Cabana, por cá reinou a tranquilidade. E eu, talvez desanimado com os rumos que o carnaval de Belém tomou, até que me dei bem com este comedimento. Digamos que fiz um retiro para dentro de mim.
Não foi, a minha reclusão, uma penitência ou uma provação. Gosto da folia. É que as coisas andam difíceis, o numerário regrado e o itinerário também. As opções são distantes e a barulhada por lá grassa. Preferi ficar na cidade me embalando em sonhos de carnaval.
A única estripulia que me permiti foi prestigiar o bloco do João, do bar The Beatles, no domingo gordo, o que já me valeu pacas.
Noutras horas de vigília zapeei pelos canais abertos da TV e dei com uma matéria interessante, ora veja, da TV Senado. Contava sobre as expedições realizadas no Brasil, no século19. Cientistas, exploradores, defendendo interesses diversos, ganharam os sertões e de lá saíram, quando saíram, com uma riqueza enorme de informações.
(Peralá, que eu já volto pro carnaval, ainda mais que não falei do encontro como o Vin Diesel).
Destaque para a expedição russa comandada por Heinrich von Langsdorff . Uma aventura que durou pelo menos 5 anos e minou o explorador de tantas febres e maleitas que o levou a demência irreversível. Por outro lado, gerou um acervo que de tão precioso, ficou escondido nos arquivos russos por mais de 100 anos.
Após a divulgação do material da grande viagem, traços marcantes da sociedade brasileira foram melhor tratados, sustentaram a formulação de uma nova História e de conceitos sociais mais bem argumentados.
Relatos, transcrições, desenhos, pinturas descreviam a natureza e o comportamento do povo brasileiro. Constatavam a manutenção de uma poderosa estrutura agrária e confirmavam a escravidão como mola propulsora da produção, em todos os rincões do território.
Um desenho produzido na expedição mostra uma reunião de escravos, no que parece ser uma festa. Expressa movimento. Canto, dança. Uma ilustração que revela a resistência de um povo que, em que pese o sofrimento, não abandona a sua identidade. Um testemunho que pode eliminar aquelas discussões rasas sobre alienação do povo no carnaval e blá blá blá, blá blá blá.
Não tenho a foto, nem desenhos, nem pintura, mas entre uma vigília e outra, neste feriadão, a imaginação me levou ao pré-carnaval no Rio de Janeiro. Lá, na agitação da Fundição Progresso, eu vi o Vin Diesel. Veio ao meu encontro, fazendo por onde eu o reconhecesse, pedisse uma foto, um autógrafo. Mas eu, nem aí. Não sou besta. No Rio, nos sonhos, no carnaval, todo mundo é estrela.


sábado, 10 de fevereiro de 2018

crônica da semana - carnaval tombo

O pessoal da vila
Deixa a tristeza de lado. Esconde aquela raivinha no fundo de um saco escuro. Ajeita uma fantasia, arruma um cílio grandão, mergulha num tibêi em miçangas e lantejoulas. Purupurina a cara, abre o sorrisão. Hoje é carnaval! Sai de mascarado bofó, marinheiro, pirata, freira desguiada, donzela assanhada, gorilão. Deixa o eu diário na quina encalacrada do escanteio e parte pra grande área que hoje é sábado gordo.
Eu me passo pro carnaval, olha. É a festa do desanuvio. Sugere possibilidades enormes de descarrego da alma. Pra quem sabe brincar, é oportunidade de viver momentos inesquecíveis.
Os melhores carnavais, vivi na Mauriti. Morava no mesmo quarteirão do Aguenta o Tombo. Era um dos blocos mais famosos e queridos da cidade. Ganhou destaque por causa do samba empolgante que agitava a galera no refrão “É um tombo pra cá/é um tombo pra lá/segura esse tombo/não deixa tombar/esse tombo querido/é a maior curtição/ele é da Pedreira e mora no meu coração”. Vale dizer que, embora sempre houvesse um samba novo, era batata, entrava carnaval, saía carnaval e quem comandava os arrastões mesmo era “um tombo pra cá/um tombo pra lá”, do Iran. Não tinha errada. Virou um samba perpétuo.
Eu conhecia o pessoal que organizava o bloco. Era uma família que morava num terreno grande, com casas distribuídas na pista, mas também cortado por uma passagem larga que dava para um aglomerado com quintais, ameixeiras e jaqueiras ao pegado. Na frente da passagem, uma construção pequena em alvenaria abrigava um arremedo de bar, o Vinde K, que, de janeiro em diante, mesmo gitito, era o local de concentração dos brincantes. Do outro lado do bar, ficava a casa do Julião. Lá aconteciam os ensaios da bateria, as decisões eram tomadas, adereços e fantasias eram desenhados. Era, bem dizer, a sede do Aguenta o Tombo. O samba do Iran fez tanto sucesso, que na época do carnaval, baixava na sede a imprensa, os representantes das ligas, a prefeitura, uma ruma de RPs. Todos vinham na esteira do famoso samba. Durante os preparativos para o desfile, a casa do Julião era muito movimentada. Eu era moleque, não saía no desfile oficial, mas acompanhava o Tombo, dizendo no pé, em todos as batalhas de confetes que o bloco se apresentava. Cremação, Jurunas, Canudos, Telégrafo. Esbanjei o meu gingado em tudo quanto foi passarela do samba.
Mas era um fogo nessa Mauriti, que o Aguenta o Tombo sozinho, não garantia. Na vila que eu morava, o pessoal pra lá de pra frente, fundou outro bloco, o vibrante “Com Toda Mirolha”. Sem sede, sem RP`s, sem bateria própria. Mas de uma animação de entortar o quarteirão. Não me ocorre agora, o samba do Mirolha, mas tinha, tinha um sim.

“Com toda Mirolha”, expressão que sequer sentido formal tinha, traduz uma época tão boa! De tanta e fogosa interação entre os foliões de rua. De parceria com o Tombo, o pessoal da vila se divertia a valer. Esta chuva inteiriçada neste início de fevereiro me trouxe lembranças. Boas recordações da Pedreira do samba e do amor, das batalhas de confetes do Pisco. Do pessoal da Vila Mauriti. De empolgantes carnavais.

sábado, 3 de fevereiro de 2018

crônica da semana - todo sentimento

No tempo da delicadeza
Eu andava pra lá e pra cá com um aparelhinho de CD que meu amigo Dedé havia trazido de Manaus. Era tipo um walkman. Pegava rádio, tinha fone de ouvido, só que no lugar das antigas fitas K7, tocava o moderno compact disc. Ouvia mais o rádio. Vez ou outra, quando pintava um disquinho, eu experimentava. Era meio incômodo porque travava, pulava de faixa, com os solavancos das minhas caminhadas diárias resolvendo as urgências da vida. E nem era tão compacto assim. Tivemos desavenças, mas me afeiçoei àquele aparelhinho mesmo, quando a jornalista Jeniffer Galvão me emprestou um disco, para mim, até hoje, raríssimo. Tão raro, que depois se perdeu para nunca mais ser achado. Era uma coletânea do Chico Buarque que, de curioso, tinha o fato de trazer músicas pouco conhecidas, do compositor. E era uma produção farta. Tinha pra mais de 20 músicas. Tantas e belas. Fui me apegando a algumas. Tirando as minhas preferidas (que continuam até hoje, canções pouco conhecidas). Destaco como a pri, a arrebatadora “Todo sentimento”.
Era a canção que rodava sem parar quando eu estava recluso entre as paredes brancas daquele hospital, velando o sono inquieto de Luzia.
Um tempo difícil. Contudo, de inusitada delicadeza.
A compreensão não se faz perfeita num caso tão dramático como este. A melodia agoniada dos gemidos reverberando na parede branca do quarto. A luz dos olhos da pessoa amada se apagando, o peito se apertando, a dor tomando conta da alma e, ao mesmo tempo, uma delicadeza enevoada, disfarçada, fosca, mas incompreensivelmente densa, nos envolvendo, nos afagando.
Todo sentimento agrupado numa canção.
Caminhos, liberdades e urgências da vida pelas ruas de piçarra da Pedreira. Mamãe provedora e cuidadora de mim. Construção diária. De mãos dadas. Benças e carinhos incessantes. Compromissos reiterados. Até o amor cair doente. (E meus olhos acesos procurarem os teus sumindo para os escuros de todos os sentimentos. Sem íris. Descoloridos. Fitando a parede tão perto, tão longe, de textura branca silenciosa, inquietante. Um olhar apagando). E meu tempo de te amar, tão lento. E, naquele instante, absurdamente urgente. Inseguro. De menino querendo mãe. Colo. Um desejo tão ardente. Um desejo impossível. Te querer, te querer de volta. (Dá cá. Dá cá tua mão. Bença).
O fone ajustado no ouvido, as paredes brancas finitas, racionais, cruéis. O CD tocando sem travar, sem pular de faixa, o disco raro da Jeniffer, que, faixa por faixa, depois dessa dor sumiu para sempre. E eu sem dizer nada. Numa insana calmaria, mergulhado em surpreendente, em incompreensível delicadeza (a canção).
Seguindo ao lado teu, como o encantado, como o prometido, como o filhinho (dá cá, dá cá tua mão), de mãos dadas pelos estirões da alma, ao encontro de profundezas, de substâncias. Travando lutas, conquistando cada fração das últimas horas.
As paredes brancas, a tosse, a tosse, rompendo o pulmão, explodindo todo sentimento, apagando os olhos, escurecendo os horizontes.  A tosse nos desvencilhando  dos  caminhos, das urgências e da vida pelas ruas de piçarra da Pedreira.