sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

crônica da semana - Olê, olá

Olê, olá, Belém

Nesse finzinho de janeiro, mês que se comemora o aniversário de Belém, quero fazer uma homenagem a este pequeno que é incorrigível, destrambelhadamente apaixonado pela mangueirosa. A música dele, todo ano a gente canta: “Olê, olá, Belém/minha namorada que me trai também...nem bela e nem formosa/cabocla desajeitada e pequenina/simples como a beleza de uma rosa/mundana que não pertence a ninguém”. Um samba, uma confissão de amor que, tenho pra mim, figura entre as três declarações mais mimosas que a cidade já recebeu (as outras duas, entendo que estão contidas nos versos de “Flor do Grão Pará”, do Chico Sena e no poema inspiradíssimo de Adalcinda Camarão, “Bom dia, Belém”). 

Não somos íntimos. São contadas as vezes que nos topamos teti-a-teti. Uma vez na escada do prédio da Biologia, na UFPA, onde evidenciou-se a impressão de que nos conhecíamos de algum lugar, e nada mais que isso. Uma outra vez num happy hour com poesia, num dos pontos chiques da cidade. E ainda a última, no lançamento do livro do poeta Renato Gusmão. Poucas vezes. Mas plenas de agradáveis surpresas. Credito este vago de encontros aos caprichos do tempo e das oportunidades (porque escapamos de conviver mais intensamente naquela época em que ele, o compositor já consagrado, Alcyr Guimarães, lançou seu olhar dadivoso para o nosso ‘Grupo Musical Hera da Terra’. Foi um tempo bacana. Alcir participou de alguns shows, produziu, se interessou, aproximou-se da Déia Palheta, uma das nossas estrelas...fizeram trabalhos juntos. Mas olha só a arte do desencontro, eu fazia parte do grupo, só que nessa época, estava fora de Belém, na lida pelos ermos da floresta. Perdi). 

Sou fã. Do cantor, do compositor, do amante das artes. Do mestre. Mas sou fã, mesmo, do cara, do camarada, do amigo Alcyr. E muito pela surpresa dos raros encontros. 

Naquele happy hour, por exemplo, fiquei besta de ver como o Alcyr é franco no termo e no traço. Nunca tínhamos nos falado. Estávamos numa mesa com vários ilustrados (e eu era só um pão de sal em meio a tantos croissants), mas ele se ajeitou ali do meu lado, me deu ibope. Trançou conversas, contou ‘causos’. De prima me chamou pelo nome e sobrenome, fez-se presente numa folga tal que, se um desavisado abstraísse aquela cena, intuiria que nos conhecíamos desde a mais tenra infância. Agora ‘mire e veja’ a minha pavulagem. Passei dias com cara e jeito de metidão só porque tinha encarreirado uma prosa com o grande Alcyr Guimarães, pelas quebradas da Matinha. 
Ele é assim mesmo. Chama atenção pela humildade. No lançamento do livro do Renato, este detalhe no caráter do Alcyr aflorou novamente. O espaço estava lotado, cadeiras ocupadas. A gente vê, nessas horas, o frigir das vaidades. Eu, pra frente que sou, fui me enfiando, ganhando terreno, me aquietei num cantinho. Peguei meu autógrafo e fiquei por ali apreciando as atrações da noite. Quando olhei pra trás, encostado numa coluna, em pé, silencioso, discreto, quem me estava? O mestre. Só saiu de lá quando alguém demandou um violão e ele prontamente se ofereceu pra tocar. Retirou-se (desconfio que foi lá no Jurunas buscar a viola) e quando voltou, pôs-se à disposição para acompanhar os cantores e as cantoras que iriam dar as canjas da noite. Achei aquela sequência de discrições bem postadas e entregas desmedidas, uma revelação. Uma lição. 
Lamento não poder ter e haver com o Alcyr mais vezes. Sorver, mais frequentemente, um tiquinho do talento e da candura dele. Mas esta distância dócil e indolor, acaba nos unindo. Algo nos faz perto. Olê, olá, Alcyr, amamos Belém. 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

crônica remix - a parede

A parede da memória
Estive aí pensando sobre a capacidade que a gente tem de lembrar das coisas. Acho que por causa do enredo daquela novela da Globo na qual a trama se desenrolava a partir do roubo de uma criança ocorrido em 1968 e (caramba!), uma pá de tempo depois, o rapaz, irmão  da bebê raptada, dizia lembrar de tudo, tintim por tintim . Égua da memória!
Eu, por mim, não teria esta competência, mesmo porque tenho uma capacidade reduzidíssima de guardar as coisas. Até eventos acontecidos na biqueira, tipo  ano passado ou mesmo ontem de tardinha, já me são um sacrifício lembrá-los.
Aí, ante esta dificuldade, e como eu não tenho traumas  catalisadores como o pequeno da novela, crio uns mecanismos, arranjo uns truques que me voltem à cena.
Vou, digamos assim, tateando créditos, fuçando evidências, embaralhando ficção e realidade, até que a história se mostre coerente, verossímil , daquelas que não tem errada.
E se, no final as coisas se encaixam é porque estão numa lógica. Assim, a história, qualquer que seja, pode até estar longe na memória, fugir um pouco da realidade e ter uma pitadinha de vontades diluídas no mar de nossas frustrações, mas não fica nem um pouco destrambelhada . E esta passagem, eu juro de pé junto que aconteceu:
Era uma noite umedecida pela chuva fina, lá pelos idos de oitenta e poucos. Mês de julho. A debandada para as férias em Mosqueiro esvaziara a minha turminha da tertúlia na New Wave e eu voltava sozinho para casa.
Ali na baixada da Pedreira, o alagado era um só. Eu tinha que saltear as passadas entre os caminhos de terra firme e os estirões de pontes mal cuidadas que iam desde a Itororó até os altos muros da Escola Salesiana.
Grilos cantavam afoitos, pirilampos animados iluminavam tufos alastrados de capim, sapos coaxavam roucos em homenagem ao pampeiro que desabara sobre a cidade desde a tarde e que àquela hora da noite era só uma garoinha.
Ninguém na rua, mas eu não tinha medo. Já estava acostumado àquela batidinha noturna.
Quando enfim, eu dei na esquina do Centro Auxilium, que susto! Uma nave enorme, de fuselagem reluzente e luzes faiscantes pairava sobre a solidão da Alferes Costa. Flutuava a uns dez, vinte metros de altura, no máximo. Estava bem pertinho de mim. Pela janela, dava até pra ver uns equipamentos de controle e alguns ET’s verdinhos tagarelando e apontando insistentemente para mim. Explodi apavorado: “Égua, moleque, é o Chupa-chupa!” Depois as luzes foram ficando mais fortes, mais fortes, eu ficando encandeado, as luzes ofuscando tudo em volta, eu fui saindo de mim, me entregando a umas sensações estranhas...Depois, os sentidos sumindo...Sumindo...
Fui abduzido.
Isso aconteceu há pelo menos uns vinte anos. A minha memória, como disse, não é lá essas coisas. Então, que fique claro: a cantoria dos grilos e sapos, os pirilampos animados, os muros altos da Escola Salesiana, o alagado da rua foram mentirinhas criadas para apimentar a história. A solidão  da rua, as luzes faiscantes, uma reação apavorada e tudo o mais, são a mais pura verdade. A absoluta verdade. Juro.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

crônica da semana - dois legumes

Dois legumes

Ela chegou de vera e, como de costume, antes do Natal. Chegou daquele jeitinho: produzindo aquela textura de sorvete de bacuri no céu. E se estirando, se estendendo pelo dia e varando a madrugada. Preguiçosinha, cadenciada, mimosa e doce. 
Como de costume, nos encantamos. Fizemos versos de boas vindas, recitamos prosas sensuais, cantos maliciosos. Registramos cada aproximação com fotos sedutoras, relatos ansiosos, confissões apaixonadas, prazerosas descrições. Trouxe um friozinho bom e grilos ensaiados para cricrizarem as nossas noites. A nossa chuvinha. 
É o tempo dela, diria a minha mãe. Tempo de perder sombrinha e guarda-chuva em qualquer canto, de tirar aquela velha Hering manga-comprida do armário, de reivindicar uma costelinha toda noite... Tempo de esquentar pés com pés e de chamegar... 
Todo ano, o que nós chamamos de inverno amazônico, é a nossa redenção. A nossa forra contra a conta de luz. Alguns meses sem ventilador ou ar condicionado (rá, rá, rá, rá). Mas tem o seu dito porém. 
Tempo chuvoso é uma faca de ‘dois legumes’. Rola um revés no retinir reincidente que reina em cada risco de nuvem que rompe, que ruge, que rege o rego do riozinho raso e rude que rodeia nossa aldeia. Parte, uma parte bem considerável de Belém vai pro fundo junto com nossos instantes de contemplação. Passa-se num triz, do contentamento à apreensão quando o nível da água começa a subir além da sarjeta. 
E hoje em dia a coisa está de uma forma tal, que andar com a chinela na mão e a calça enrolada até o joelho não é só prenda de quem mora nas baixadas. Bairros da alta granfinagem, as novas Beléns, e até os aléns da planície (como o eixo da BR) experimentam também este infortúnio. 
A minha valência é que, na Pedro Miranda, aquele que já foi um dos pontos mais críticos, que fica entre a Lomas e a Alferes Costa, não alaga mais. Isso me acalenta. Me dá ânimo para acreditar que este exagero de molhado pode sim, um dia ser resolvido. Porque, minha gente, aquilo ali já foi um marzão. 
(Faz um tempinho, já. Ainda cortejava minha companheira Edna. Ah, o amor! Eu me abalava da Mauriti para a baixa da Pedreira toda santa noite. Por agora, era uma provação. Quando chegava na Itororó, a marola já se assanhava ‘lembendo’ a canela. Das duas uma: ou eu encarava, pela direita, a minha futura sogra, que tinha uma venda de cachorro-quente, o qual ela sugestivamente batizara de hot-dog, na esquina da Pirajá, em um trajeto que me garantia umas pontes seguras e poucas chances de entrar na água; ou investia pelo flanco esquerdo, me equilibrando em algumas balaustras, nas grades das casas, nas pontas de escadas, pra não perder o prumo e mergulhar, porque ali, era o puro profundo mesmo. Minha namorada morava na Perebebuí, próximo a mãe, mas não com a mãe. Por aí a gente tira o porquê da minha opção de ir sempre pelo lado comunista da rua, com a água por acolá. Era um estirão de sacrifício, mas eu encarava. Medo maior era o de prestar conta com a fera, ali no hot. 
Quando tornava do outro lado, uns quantos sustos depois, já chegava me agoniando. Minha namorada vinha obsequiosa com um punhado de sal e uma faquinha para retirar as ‘chamichugas’ que chegavam de carona na minha perna. Era uma peleja. Mas depois, vinha o friozinho, o pés com pés, o chamego...‘a prenda imensa dos carinhos’). 
A chuva leva e traz. É dinâmica. Se todo ano chove acima do previsto, por que não calçamos as sandálias da humildade e nos empenhamos em redimensionar o tanto ‘previsto’? Talvez nos esmerássemos mais nas artes de prevenção e cuidados com a nossa cidade. 
 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Crônica remix - dígrafos

Dígrafos, Similares e a Pedagogia Moderna

Este ano foi a colação de grau da minha filha. Da alfa. A menina aprendeu a ler e a escrever e ganhou uma festa robusta com pompas, circunstâncias, look de princesa, entrega de diploma, flashes e chororôs na platéia, tudo sob o aval da pedagogia moderna.
Festa para criança com a suntuosidade dos eventos de gente grande. E eu acho até que a festa é mais para a gente mesmo, os pais (para as tias da escola, para a diretora, para o fotógrafo...) do que para as crianças.
Não sei se este tipo de celebração é parte do legado deixado por Paulo Freire aos oprimidos pelo sistema. Só sei que no meu tempo, não era assim. Nem pelo apego à celebração, nem pelos métodos de aprendizado.
Quanto ao método, minha mulher me atualiza dizendo que hoje em dia é assim, pelas famílias. Tem a do bê. Ba, be, bi, bo, bu e o bão; e assim por diante. Eles juntam as famílias e vão formando as palavras, na escrita, na leitura, e parari, parará, arremata a minha mulher, deixando escapar um ar de discreta simpatia por estes métodos modernos.
E eu, inquieto, me pergunto: e o ene-agá-nhá, minha flor? E o éle-agá-lhá? E a arte de soletrar? E a sonoridade das construções labiodentais do tipo “vovô viu a uva” e “a uva é de Ivo”?
Antes as palavras surgiam sofridas dos dígrafos: bê...ó, bó; éle...i, li; ene-agá-nhá...Bolinha. Cê...á, ca; esse...i, zi; ene-agá-nhá... Casinha (neste caso, também com o conflito fonético implícito no ésse com som de zê). Éfe, ó...fó; éle-agá-lha...fólha (e partia-se, intuitivamente, para o ajuste no som do ó: fôlha.
A cartilha apontava: A bola é de Mauro. E até hoje percebo que, mesmo ante a pedagogia moderna, o martírio continua o mesmo, para este érre intrometido de Mauro. Especialmente para este caso, no início da Alfa, minha filha se estressava horrores e dizia “ ah, eu não sei. Às vezes é rá, (como o rá de caramba) às vezes é rá, (como o rá de rato)...ah, eu não sei”, inquietava-se e chutava o pau da barraca. .
Eu acho que a arte de soletrar, hoje, daria bons resultados e ajudaria a desmistificar uns e outros fantasmas fonéticos. A palavra sexo, tão incompreendida, por exemplo, seria dissecada: Ésse, é...Çé. Kê, i...Ki. Cê, cedilha...ó. Çéquiço. Táxi, outra palavra segregada pela pronúncia, seria restaurada: Tê, á...tá. Kê, i...Ki. Cê, cedilha...i. Táquiçi..
Eu tenho a  plena consciência da insignificância do meu papel de pai nessa história e, enfim, de que adiantam divagações sobre as “pronúncias pausadas na assimilação das primeiras palavras” (definição do Aurélio para o verbo soletrar), quando o mundo exige a rapidez de uma nova linguagem. E taí, reconheço que, o que é verdade, é que a minha menina, antes da festa e dos badulaques na cerimônia de colação de grau, realmente, antes de tudo, já sabia ler e escrever. E eu  aqui, com as minhas preocupações atemporais sem sentido. Admito, forçosamente, estar errado, mas num último fôlego de resistência reitero a teima: antes, caneta Bic, só se utilizava a partir da quarta série. Antes disso, só lápis. Só o lápis indicava o Suave Caminho...
(* a crônica é de 2006)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

crônica da semana- anjos do

Anjos do arrabalde

O título é de um filme do desembaraçado diretor Carlos Reichenbach, rodado nos interregnos licenciosos da década de 1980. Fiz o resgate deste filme, não porque desejo explorar a estética libertária oitentista que fazia vibrar as claquetes do cinema nacional (para isso tem gente bem mais aquele de gabaritada na sétima arte do que eu). Uso do título só porque gosto dele mesmo. Apenas porque me agrada esta intenção angelical de traduzir a fleuma suburbana. Simpatizo com a sonoridade da composição e, claro, por causa deste apelo melodioso contido no título do filme, a mim me apraz a presença de alguns anjinhos que me são ensejados em flashbacks ritmados. 
Como naquela tarde, em frente ao colégio Alzira Pernambuco. 
Eu estava lá, com a minha geladeira, querendo vender o meu picolezinho. Mas havia por ali, uma pracinha de alimentação diversificada. Tinha merenda pra todo gosto e jeito. O unheiro, ó, fazendo a ‘fanchina’. Vendendo tudo... 
...O moleque se aproximou, pegou o bolinho mais úmido e brilhoso de óleo, pagou os centavos devidos. Acudiu-se a um papelzinho, acomodou a unha no leito da folha de papel, pressionou. Um filme líquido esparramou-se pelo papel madeirado e forjou em vários pontos uma textura transparente. O puro azeite. Com o esforço, o aluno bandou o salgadinho e expôs ao sol uma mistura amarelada de farinha, umas folhinhas finas e, aqui-acolá, grises pelotinhas de carne gorda. Apossou-se do vidro de pimenta do vendedor e aspergiu sobre a chaga amarela e sebenta, um tanto mais que o suficiente de licor pra ela ficar bem queimosa. Depois, abrigou-se à sombra de um poste e ficou ali, na fissura, comendo com gosto, o salgado. Rendendo, economizando a farofinha. Mastigando com os incisivos, saboreando com a ponta da língua. Salivando. 
Tava na ira, o zinho. Envolvido. Até que foi interrompido por um coleguinha: “me dá um pedaço, aí”, rogou o garoto, com um olho deste tamanho mirando o recheio anilinado. O outro, aviou-se rápido na resposta reiterada: “Não, não e não”; no retorno explicativo, “eu já te dei ontem” e na orientação imperativa, “sai fora”. A reação do menino, diante daquela negação tão intensa, foi de ligeiro desdém e de habilidoso deboche: “tá sovinando, né vai enrolar o queixo no vinte da unha, né. Tá pai d´égua. Tu sabes, quando eu tenho eu pago. Tu ainda vem me pedir”. E saiu melindrado, em direção ao portão da escola. Um instante depois, uma patotinha da mais péssima que estava na espreita deu um ‘arreia’ na unha do moleque (ele não tava de salvo). O vinte que ele estava comendo, com deleitoso egoísmo, saltou-lhe da mão e caiu na calçada perto de um cachorro vadio que batia ponto ali. Aí, já era. Os anjinhos dos arrabaldes nos ensinam: não presta sovinar. 
Eu também fui um anjinho apegado aos desafios da periferia de Belém. Encantava-me com a desenvoltura dos meninos e me deslumbrava com a noite iluminada. 
Minha avó, foi a primeira pessoa a me apresentar a noite. A me integrar à noite. Em tempos de Colorado RQ, de imagens chuviscadas em preto e branco, de esponja de aço na ponta da antena do aparelho de TV, minha avó deixava aquele encanto eletrônico recente para trás e me levava para o canto da Lomas com a Marquês, para apreciar o movimento. Um divertimento plástico, entorpecente. Os faróis dos carros multiplicando-se em flashes psicodélicos; o vento que minava do igarapé do Zé; os pontos de luz dos postes à base de vapor de mercúrio. O bar Pedra Noventa do outro lado da rua. Um microespaço, o canto da Marquês. As minhas primeiras noites de anjo...os arrabaldes... Belém. 

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

crônica remix - o buraco é mais...

O largo da Palmeira
A periferia de Belém alimenta a nossa saudade. Define os nossos ressurgentes calores subjetivos. A franja da cidade guarda em si pedacinhos adocicados da história de cada um de nós.
Mas o que nos identifica como coletividade, o que nos certifica como um conjunto de cidadãos orgulhosos é, evidentemente, o centro. Mais exatamente aquela fatia da cidade que se espraia a partir do Forte do Presépio e se acomoda no interflúvio que se impõe entre o rego do Piry e o alagado do igarapé das Almas (aquele trecho entre o Ver-o-Peso e a Doca).
Neste espaço mágico, visões e conceitos estéticos se encontram nos ‘éles’ de Lemos e de Landi. Geometria moderna e traços medievais se decompõem em pura poesia ‘concreta’. É um espaço plural. Repleto de jóias da criação.
Ali, também tenho os meus cantinhos e as igrejas têm um lugar todo especial no meu coração belemense.
Até um dia desses, a minha preferida era a do Carmo. Mas depois que eu vi a igreja da Sé restaurada...
São importantes, as igrejas, e para mim, elas se destacam não só pelo caráter religioso. Os nossos templos históricos ao mesmo tempo em que se esmeram em suntuosidades arquitetônicas buscando os céus, estabelecem uma linguagem terrena, abraçam crentes e pagãos com suas fachadas acolhedoras. Ao largo das igrejas, percebo uma certa indulgência para com nossos atos e intenções. É normal agregar-se a um grande templo, uma praça verde e libertária.  E nela, são reveladas as emoções profanas (como o Fofó de Belém, do Eloy Iglesias) ou reiteradas a fé e a crença (como a concentração para o sacrifício da Corda, no Círio de Nazaré).
As edificações, portentosas e belas registram-se como igrejas construídas e, como povo em eterna construção. Emergem da ancestralidade como símbolo de uma história santa e pecadora. Animam a nossa fé, e paradoxalmente, atiçam a nossa curiosidade e ratificam nossos medos (será que tem um menino de castigo, duro, com a língua pra fora, com a vassoura na mão porque queria bater na mãe, atrás da porta da catedral da Sé?).
Entendo que há um diálogo, uma energia edificante ladeando nossos prédios históricos.
O conjunto igreja do Rosário/ igreja de Sant’ana é para mim o exemplo mais eficaz desta integração entre as construções. Estão bem próximas. A igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos ergue-se numa esquina da Padre Prudêncio. Uma quadra depois, além do buraco da Palmeira, está a igreja de Sant’Ana. As duas são um brinco. Delicadas. Humildes e dispostas. Entregam-se sem receio à cidade. Na igreja do Rosário, me encanta aquela pracinha, à entrada, quase intacta, preservada, solitária, ordeira, quase um alpendre interiorano. Parece uma redinha da tarde pronta para embalar a poesia e para ouvir os nossos segredos.
Do outro lado do buraco, a igreja de Sant’Ana  pressionada pelo ir e vir urbano. E é verdadeiramente mais urbana. A pracinha, dissociada da calçada, separada pela rua, é também, convenientemente, desatrelada da inocência. Embora respeite o gradil da igreja de Sant’Ana, a pracinha é alegre e libertina, algo como um brando arremedo da carioquíssima Cinelândia.
As duas igrejas, parece que se complementam em prodigalidades e carências. Existem para serem parceiras. São construções estética e socialmente siamesas. Necessitam de um diálogo constante. Eu não sou arquiteto, nem nada, mas se pudesse apitar alguma coisa, jamais separaria Sant’Ana da igreja do Rosário dos Homens Pretos. Jamais levantaria um muro feio e frio entre as duas. Jamais. Mesmo que para isso, tivesse que eternizar o antigo largo como o, já referendado, buraco da Palmeira.



sábado, 7 de janeiro de 2012

crônica da semana - estralar

Se a farinha ‘estralar’...  

Um camarada ibero-europeu veio passar o fim de ano comigo, em Belém. Gente boa pacas. Amigo. Fiz as honras pr’ele. Virei e mexi pelos causos da cidade. O que eu sabia, eu contava direitinho, como por exemplo, os detalhes da fundação de Belém expressos na Cidade Velha. O que eu não sabia, inventei um pouquinho, mas sem exagero e sem culpas (quem mandou roubarem a placa explicativa lá da rampa da Panair?). Buli nos teres e haveres desta metrópole e a tratei como tal. Atinei aos ‘dares e tomares’ desta minha Belém ao mesmo tempo vil e generosa (meu amigo aproveitou o que pôde desta generosidade. Vai voltar para a sua terra com a sacola assim de manga, ó, que ele catou pelos estirões que passamos; mas ao mesmo tempo, decepcionou-o um tanto, a nossa falta de cuidado com componentes históricos pitorescos, como a rampa da Panair).
Mostrei lugares legais da cidade (não exatamente aqueles mais engalanados, mas os meus cantinhos, aqueles sem os quais não passo). Veropa, na certa. O largo extenso do Teatro da Paz, é claro. As docas refrigeradas, por que não? As igrejas mais bonitas do Landi, indispensáveis. Os bosques verdes onde cantam os sabiás, de toda sorte, agradáveis. A Vila Sorriso e a minha Pedreira, do samba e do amor.
Sobre Icoaraci, vale a pena um teretetezinho, no repente. Nada que me seja estranho. Houve de acontecer outras situações graves e amiúde, comigo.
Fui até o chalé Tavares Cardoso. Era sábado e entendia o recesso e o descanso dos obreiros dali, mas nada que apagasse a memória ou o senso. O prédio é suntuoso, elegante. Só que cheguei fotografando a rua, concentrado e quando dei por mim, estava de través, meio na contramão. Havia passado pelas ruínas da casa do poeta Antônio Tavernard e recebido o severo choque do abandono. Submergi desconcertado de tanta desolação e desapontamento com o trato que dão aos nossos patrimônios artísticos. No chalé, atualmente, funciona a biblioteca Avertano Rocha. Isso eu sabia. Mas só de zanga, perguntei ao guarda, que guardava o prédio, assentado no amplo alpendre, onde ficava o famoso chalé. Ao que ele me respondeu que ali era uma biblioteca, que estava fechada, naquele dia e sobre este chalé, aí, não sabia pra que lado ficava, não. E fui caminhando e ouvindo, dando trela, até ficar de conforme com o sentido da rua, quando me virei e dei de frente para a monstra d’uma placa que anunciava ali, o tudinho da resposta requerida ao guarda. Tudo lá escritinho.
Icoaraci é um lugar pra lá de pai d’égua. Tem potencial turístico. Tem a mimosíssima taberna da Suely, bem na entrada do trapiche; tem uma orla atraente; um parque de artesanato estrategicamente postado no alto das falésias. Precisa se preparar para informar melhor os visitantes. E aquele túnel de mangueiras...
Agora, sobre a Pedreira...mostrei mais emoção do que construção. Mesmo porque, o cinema Paraíso, não existe mais. O café Século XX, já era. A sede do Santa Cruz transubstanciou-se. O Supermercado Metralhadora, aquele que metralhava os preços, é hoje um grande vão em vão. Fomos bater na Feira, então. E eu cuidei de ensinar, detalhadamente, ao meu amigo, que veio da Galícia, como é que a gente faz para experimentar a farinha. A mão em concha assimilando o tantinho certo, a distância correta, a força de lançamento e a pequena elevação do queixo para que a farinha deslize obediente e se acomode entre os dentes. Se ‘estralar’, é das boas. Depois de conhecer as coisas que não mais voltam na Pedreira, eu e meu amigo fomos tomar uma gegé, no balcão do Pisco, porque o sol estava demais aquele, na Pedreira de Belém.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Crônica remix - unforgetêibol

unforgetêibol
Antigamente, havia uma plaquinha nos ônibus alertando “fale com o motorista somente o indispensável”. Passei anos da minha vida admitindo que aquela mensagem queria dizer que só quem podia falar com o motorista era o pai ou a mãe da gente (confundia ‘indispensável’ com ‘responsável’). Por isso jamais puxei um isso de prosa com os ‘choferes’ de ônibus. Até que... meus meninos nasceram e me credenciaram. Agora arrisco um bom dia/boa tarde e um filho disso ou filho daquilo (quando eles queimam a parada, metem o pé no freio pra arrumar a carga ou quando arrancam enquanto a gente ainda está descendo).
Outra armadilha discursiva que me ficou no cocuruto um montão de tempo foi o atalho fonético que minha mãe arrumou para pronunciar, de modo coerente (para honrar o marketing linguístico) e elegante (como reivindicava o produto) o nome de um perfume, à época, recém-lançado no mercado.
(Tenho que abrir este parêntese para falar sobre a atividade econômica de minha mãe que nos garantiu o de comer durante um bocado de tempo, mesmo que em detrimento de um ou outro pedido não entregue por falta de numerário para resgatar a ‘caixa’.
Minha mãe vendia de um tudo. Não havia lastro para a fidelidade comercial. Todo santo dia, juntava uns quantos ‘catálagos’ da Avon, Christian Gray, Collins, Hermes, uns mostruários do mais requintado Michelin; batonzinho para demonstração, que ela vendia a preços simbólicos e o irrevogável buquê de flores de plástico que ela mesma talhava, dobrava e cerzia com zelo e precisão e que fazia o maior sucesso. Colocava uma sandalinha baixa e ganhava o mundo da Pedreira, que se exibia, naqueles dias, em baixadas alagadas e modestos cerqueiros de terra firme, visitando e anotando os pedidos dos solidários fregueses. Mais solidários do que fregueses.
Quando Deus ajudava e liberava a ‘caixa’, mamãe espalhava os cosméticos no chão, subscrevia os destinatários nos saquinhos e a gente ia separando os produtos (desde ali cultivo uma indissolúvel bronca do mais refinado perfume ao popular creme Sheen, em função daquelas radicalmente odoríficas sessões de distribuição per capita. Por causa daqueles dias, até o mais singelo respingo de Leite de Rosas ou do doméstico patchouli, me deixa como herança uma hedionda e insuportável dor de cabeça).
Dessa vez, havia um lançamento na parada. No catálogo, a ilustração do perfume o definia com o nome de Unforgetable. Minha mãe observou, avaliou e concluiu que um perfume que chegava com uma fama danada, não poderia ter um nome com tão pouco glamour. Algo de atraente deveria ser providenciado para certificá-lo como chique e emblemático. Uma maquiagem que passava, necessariamente, pela pronúncia. Mamãe então, buscou na ilusão fonética, um argumento para superativar aquele produto. Coisa de marketing, sabe. A partir daquele dia, ela dotou aquele nome de um som mais, digamos assim, globalizado. Batizou-o de ‘unforgetêibol’ (e ainda justificou, resgatando um inglês perdido lá na Escola Normal: ora, table não é mesa em inglês, palavra que a gente pronuncia têibol? Então: unforgetêibol). Foi o lance mais eficaz de aproximação com o anglicismo, por mim percebido, nos estertores da insubmissa década de 1980.
E assim foi durante eras e eras. Até que um dia, o Fantástico exibiu um clipe com a Natalie Cole. Vi na legenda o título da música que ela cantava: ‘Unforgetable’. Reparei bem na pronúncia da moça. Ela falava algo como ‘anfoguerebol’ (que me perdoem pela heresia fonética). Pensei comigo: mas não é o mesmo unforgetêibol da mamãe? E era.
Hoje, exulto remissivamente: mas a mamãe, hein!

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

crônica remix-alô papai


Alô, alô. Alô, papai. Alô, mamãe...   
Eu tô meio azuruote nesta terça-feira de fevereiro quando ainda comemoro a aprovação da minha mulher, Edna, no vestibular; quando comemoro os onze anos do meu filhinho querido, Argel de Assis; quando é carnaval, é carnaval, olê olê olá, e, ainda por cima, tô de fooooolga do trabalho...Égua-te! São muitas as emoções.
O vestibular, então, deu de dez...
O que me é pertinente dizer sobre o tema é que é muito, mas muito legal, muito bacana mesmo, passar no vestibular: ouvir o  nome no rádio, estourar ovos na cabeça, entregar-se submisso à nuvem de maisena, de colorau, pagar os micos...Cantar os preciosos versos do momento: “ Alô, alô, alô, papai/alô, mamãe...pode soltar foguete/que eu passei no vestibular...”
É legal amar, de todo o coração, e para sempre, o Pinduca.
Um barato isso de ser tomado pela letargia insondável e ao mesmo tempo, ser balançado pela excitação desregrada, meio abobalhado, no meio da rua, quando da comemoração por ter passado na Federal: as mãos erguidas, o corpo cambaleante, uma euforia desequilibrada, instável. Um quê entre a comoção total e a incontrolável alegria, subsidiado por um estado de memorável – e justificável - porre de felicidade.
Minha mulher, Edna, teve a oportunidade de curtir esse barato.
E no sábado, lá estávamos nós, na Pirajá, comemorando, sob a égide da índole suburbana, sob as guardas do instinto pedreirense, as alvíssaras notícias vindas do listão.
Éramos nós, nos cotizando para o churrasco, para uma rodada de gelada...
Éramos nós, driblando as barreiras sociais, rompendo as travas dos quarenta anos e confirmando a perseverança dos filhos da periferia.
No sábado, comemoramos, nos escaninhos esquecidos da sociedade, nas esquinas turbulentas dos arrabaldes, uma vitória vinda da nossa infindável resistência, da nossa irrefreável teimosia...
Naquela manhã, eu ainda estava aqui em Barcarena. Liguei o rádio cedo, conectei na internet, procurei o site da UFPA e nada do listão. E deu nove horas, e nove e uns caroços e nada...
Até que...O listão apareceu num link da Universidade.
Liguei pra minha mulher, que estava em Belém, e que àquela altura, de tão ansiosa que estava, não queria falar com ninguém. Fui portador da boa notícia: “pode soltar foguete...”
Disse, ao telefone, isso somente, e corri pra pegar a lancha das dez . Na viagem para Belém, entreguei-me a um aprazível descontrole, e chorei um choro silencioso de indescritível felicidade. Cruzei a maré alta assim, com os olhos marejados de doces salgadas lágrimas...