quarta-feira, 29 de agosto de 2012

crônica remix- sexo mentira e


Sexo, mentira e vídeo teipe
Hoje o céu está fechado.  Há chuva fina molhando o dia.
Ele acha que é feliz. Sente o gosto adocicado de uma paixão antiga, ouvindo o som perolado de Miles Davis. Valorizando, apostando na felicidade de saber que o caso já está resolvido...Está na paz, olhando a chuva pela janela. Mas um dia já sofreu tanto...
Ela era da turma. Eram estudantes de Geologia, na UFPA. Descobridores, conquistadores. Destemidos. Estavam pro que der e vier, como se diz. Abertos para o mundo e livres das inquietudes chatíssimas dos adultos caretas.
Aniversário de Belém. O Espaço Cultural de São Braz estava sendo reinaugurado naquele dia. Na pauta, o Manga Verde. Imperdível. A turma da UFPA,  mobilizadíssima para logo mais à noite.
Mais tarde, muito samba rolando. Um sucesso poderoso do Gonzaguinha: “Com a perna no mundo”. A música já fazia parte da sua história. Ouviu pela primeira vez a canção, no programa A Feira do Som, do Edir e Edgar Augusto. Depois conseguiu o disco com um amigo do tempo da Escola Técnica. Adorava o verso “Pegou um sonho e partiu...”.
O Manga Verde botando pra chulear. Ela percebe a abstração em seus olhos e se aproxima acariciando-lhe a face fraternalmente. Instintivamente, abraçam-se (e eu nem posso afirmar que esses abraços, à época, não tinham um quê de ensaio, de dolo). E no calor da hora, beijam-se convulsivamente, violentamente.
Agora, concentrado nas gotas da chuva, sorvendo a paz dos tons e semitons de Miles Daves, equilibrado, sarado por completo, também tem dúvida sobre a espontaneidade daquele momento.
Mas não era sempre assim? Não estavam ali para chocar, para chamar a atenção dos burgueses moralistas? Para libertar o tesão? Para beijar de amor, de brincadeira, de paixão? Revolução. Gonzaguinha...Com a perna no mundo.
Naquela noite, amaram-se desesperadamente. Uma noite de carinhos, de prazeres, de suores nunca dantes navegados. Na casa daquela amiga mais velha que morava sozinha e era legal pra caramba. No tapete da sala, com a geladeira zunindo indiscreta, no quadrado contíguo. Noite clara de lua. Toda nua. Noite clara de amor. Toda flor. Noite clara desejo. Toda beijo. Noite clara licores, sabores, odores...
Da janela, ele se deixa levar por aquelas boas lembranças e uma lágrima, autônoma, responde insubordinadamente, o reviver daquele momento.
Dias depois, recebeu pelo correio um envelope delicado. Sem paciência, rasgou as bordas e descobriu na seda ingrata o sofrimento em inglês: “our friendship is more than a friendship, but just a friendship”.
No fim de semana, todos reunidos, no bar do Ciro, em Nazaré. Ela toda fogosa, de beijos e abraços com um garoto ali da turma. Ele procurando manter a naturalidade. Investiu-se de um personagem durão, inabalável. Bebia alegremente. Contava piadas de sua lavra. Falava com todos da mesa (inclusive com ela), sobre qualquer assunto (inclusive sobre paixões e romances famosos). Era o mais animado do grupo. Olhava, com um olhar vivo, para todos, mas não via ninguém. Mas por dentro morria de raiva e de paixão. Por dentro desabava em prantos. E desespero. Maldita, mil vezes maldita! Feriste a minha alma. Ai, abatido coração, como és infeliz! A minha amada abriga-se em outros braços, beija lábios que não são os meus. Oh, mil vezes maldita! Por que não morres? Por que não sobes para o céu, só minha, só minha? Amor, amor. Mil vezes maldita!
Tomou um porre daqueles e saiu carregado do bar.
Hoje, da janela, curtindo a chuva fina, ele admite o bom de não amar ninguém (e eu poderia dizer que este bom, também dói). Melhor assim...Já sofreu tanto...

sábado, 25 de agosto de 2012

crônica da semana - janela


A moça da janela
Postava-se à janela, no final da tarde. O jeitinho gracioso, o sorriso redondo, inocente e um tanto recolhido, tímido. O busto doirado pela blusa cotidiana, o olhar apertado, sutil, a procurar temas e artes pelo vazio da rua. O retrato juvenil exposto asseado, asséptico, emoldurando o entardecer.
Era assim todo dia. Nos encontrávamos quando o sol caía. A mãe soltava as amarras e a deixava subir à janela para apreciar modos e movimentos.
A relação mais íntima, mais profunda que tinha com a rua se resumia a estes fascinantes instantes. Assim que a luz rareava; no lance conciso em que as folhas das acácias perdiam o verde para o negror ralo e esfumaçado do crepúsculo; no momento algo aflito em que os raios do sol, como se desencantados, preferiam subir ao céu tangenciando a copa da árvore mais alta a iluminar o mais humilde e necessitado plano da Terra; naquela hora sofrida, quando a noite chegava, ela, obediente, obsequiosa, submissa; por uma lei imposta pela mãe, abandonava, em dramático silêncio, o quadrado da janela, descia dos meus sonhos e sumia na aridez da saudade.
Nos víamos em uma outra e breve situação. Nem sempre possível por causa dos desencontros nos horários. Era na saída para a escola. Tomávamos rumos diferentes, mas aquele andar provocador, eu ainda percebia de través. O balançado ritmado de carimbó, a harmonia folgazã que havia entre o uniforme escolar e aquele caminhar cheio de sensualidade, eu dava sempre um jeitinho de contemplar. Depois nos perdíamos de vista. Era assim o nosso namoro: nos triscares da manhã e nos findares do entardecer.
Era uma menina que vivia presa, submetida a um cuidado descabido da mãe. Tirando as mínimas aparições nos extremos do dia, não vinha à rua de jeito ou maneira. Não ia à feira comprar farinha, não se abalava à taberna da esquina para comprar pão, não atravessava a pista para providenciar uns quantos chopes de groselha para os irmãos menores, ninguém a via pelo quintal ajeitando roupas no quarador, pulando macaca com as pirralhas de casa ou colhendo camapu ao rés-do-chão, como faziam as meninas mais expeditas da vizinhança e que eram do top e do tempo dela.
Oprimida, espremida. Imprensada, esmigalhada pela mãe que chegava ao amanhecer com um quilo de carne embrulhado na folha de guarumã, uma porção de legumes comprada por alguns centavos o lote, de alguma venda improvisada em caixa de madeira à margem do mercado; pela mãe que de manhãzinha aparecia na porta com os olhos escurecidos de alguma dose que tomou sem vontade, de algum cigarro que tragou sem gosto, de algum gozo indesejado que sentiu; pela mãe que chegava, ao raiar do sol, como se fosse uma visagem má de tantos beijos que negava nas boléias dos caminhões. Mas que provia a casa com o cumê necessário e uma moral rígida.
Pressionada, apertada, subjugada pela mãe que, embora superasse as noites, uma após outra, em claro, rolando de colo em colo, rolando entre ascos e repugnâncias, não permitia uma mancha sequer sobre a tez virginal da filha. Cuidava com tirania. Protegia com severidade.
Se me perguntarem como era a voz dela, eu não sei. De que jeito o sorriso se anunciava ao vento, eu não sei (sei que era tímido e solitário), qual o pensamento que ela tinha sobre o mundo, eu não sei. Sei que era naquele instante em que ela aparecia linda, na janela, que os nossos olhares se encontravam e ficávamos nós a namorar. Separados pelo movimento lento da rua, pelo farfalhar sem tino das acácias, pelo medo instransponível da mãe, pelo silêncio amigo e pelo desejo infindo. 

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Crônica remix- candidatos


Chegou, chegou, tá na hora da alegria
Eu bem que tava quieto, aqui no meu cantinho. Sem vontade de bulir um pauzinho de vareta sequer do nosso colorido feixe político. Li uma nota no jornal, destravei um sorriso, mas nem maldei, segui a minha rotina.
Estava eu, entrando pela noite, de pescoço teso pro céu procurando entender o barato dos planetas inferiores, quando começou o programa eleitoral gratuito. Agarrei fui ver.
Aí, tive, tive... Saquei a dinâmica da programação (num dia, os mandatos federais; noutro, os estaduais)... Fui me acostumando com a intervenção na grade televisiva e assim, de coração aberto. Reverente, atento, prestando atenção mesmo, nos discursos, nas propostas. Juro.
Mas eis que li uma nota no jornal.
Era uma coluna pequenina com três ou quatro linhas. O texto orientava os programas de humor mais famosos da atualidade para que se espertassem e ficassem de olho na concorrência do horário político. Mas que maldade, reagi contrariado.
Não percebi, mas aquela dica ficou ali escondidinha, na minha cabeça. Esta semana, na primeira inserção do programa político da noite, a mensagem se alumiou. Constatei: não é que o bicho é engraçado mesmo. E, parece uma coisa, o de segunda-feira, foi revelador. Particularmente risível.
Antes que digam que eu sou preconceituoso, que eu fico pilheriando, tirando sarro dos candidatos, asseguro que não, não se trata. Apenas atinei de verdade para o caráter algo jocoso da propaganda política, o que, de jeito e maneira, pode ser confundido como um traço, tal qual diz a galera, ‘reeeeedículo’ do modus operandi da campanha eleitoral, muito pelo contrário. Para mim é marketing.
Alguns candidatos bastam-se em efeitos e expressividades. A gente já conhece as peças. São artistas, boleiros, profissionais da comunicação. Não requerem muitos penduricalhos para fluírem afortunados e tornam inusitado o mosaico de candidaturas exatamente porque não guardam a intimidade com a rigidez parlamentar empalitosada (no Rio de Janeiro, a coisa é emblemática. Soube, pela imprensa, que toda a variedade hortifruti do Funk, é candidata por lá).
Outros, valem-se do contrário. Elevam-se pelo anonimato. Como não têm vida pretérita fulgurante, inventam, exercitam a criatividade. A estes cabem os créditos pelos bons humores exalados na campanha. São franco-atiradores, a paixão os diverte e os estimula. Vai que dá um azar... Nesta categoria dos ‘sem-tempo’. É ‘sem’ mesmo, porque a passional democracia das coligações privilegia os capas dos partidos com produções, musiquinhas pegajosas, maquilagens, enquanto aos outros, reserva aquela faixa virtual sobre o peito e um instantezinho para discursos no varejo, mais para falar dos majoritários do que dele mesmo (numa dessas, o candidato aproveitou o palanque eletrônico, e entregou-se como o candidato que tem cabedal para exercer qualquer cargo, mas por agora, o que ele quer é só ser deputado. Presunçoso, não! Mas, enfim, chamou a atenção pela auto-confiança... Houve o rapidinho controverso também, que se anunciou com um nome e a tarja da coligação o identificou com outro. Quando eles se decidirem...).
A campanha está só começando. Mas já desperta a curiosidade de alguns, o ódio de outros, a paciência de tantos. Muitos personagens surgirão. Sérios e objetivos, inclusive (o que não os exime de ter a sua graça). E eu vou procurar o melhor. Por enquanto, vou me atando com as atrações, vou me divertindo e me surpreendendo (se a eleição fosse para imitador do Amaral Neto, já estaria decidida. Há um candidato que tem a voz do Amaral Neto. Pela bença de Deus, a voz do cara é escritinha a voz do Amaral Neto).

sábado, 18 de agosto de 2012

Crônica da semana - mauriti


Só deu Mauriti

Semana passada, comemoramos o dia dos pais almoçando fora. A minha galerinha foi quem escolheu o lugar e o de comer. E eu só dizendo sim, sim pros filhinhos...Vamos lá...Tava tudo liberado. 
O ambiente não podia ser melhor, ainda mais porque ali, só deu Mauriti. Tanto na forma urbanizada, com ‘i’ ou com o estilo do sobrenome, com ‘y’. 
Com ipisilone, pintou no pedaço, o meu amigo Clóvis Maurity, geólogo e parceiro de primeira linha. E representando a minha rua, o Amarildo, músico esmerado, cria das mais proeminentes da travessa Mauriti. 
Morei uma pá de anos na Mauriti. Minha patota, de vera, era pinçada do perímetro entre Marquês e Pedro Miranda. Havia gente boa também, além destas fronteiras, mas a gente se dava mesmo era naqueles limites. Ali, criamos amizades, entabulamos futuros, discernimos condutas e formamos o imbatível, o insuperável, o glorioso e inesquecível Internacional da Mauriti. 
Era um time de molecada, ali na faixa dos 14, 15 anos. Mas éramos pra-frente, não medíamos adversários. Jogávamos contra o time dos grandes do bairro, contra os expoentes do campeonato de peladas, contra os juvenis do Remo, Tuna, Paysandu, nos enxeríamos nos campeonatos que rolavam no campo do  Asas do Brasil,...Infernizávamos a vizinhança montando pelejas de travinhas nas calçadas (e vez ou outra recebíamos de volta, por cima do muro uma bola bandada por um morador descontente) e ajustávamos a performance no campinho de serragem do ‘Seu Preá’ ou no quintal arborizado do ‘Seu Ataualpa’. 
Formávamos uma tribo bem treinada, ali naquele pedaço. Nada de exageros. A bola nos unia e sobrava pouco tempo para a peraltice mais pesada ou para o desequilíbrio. Não lembro de um isso de desavença com os moleques de outras barras, não vivi nenhum caso de briga de ruas, de enfrentamentos ou intrigas. Não éramos santos. Mas nossos arroubos nunca iam muito além da pálida inocência. Nos tempos livres, nos reuníamos no canto, embaixo de um pé de acácia, ou na frente do Cinema Paraíso, para prosas e chacotas comuns da idade. O máximo de vilania a que nos demos fazer foi, em noites escuras, atarmos aquele âmago da corda de cebola a um fio preto, postá-lo nas calçadas e quando alguém passava, puxávamos com força e rapidez fazendo o movimento do farrapo parecer uma cobra se esgueirando. O transeunte ficava pê-da-vida com o susto. 
O encontro com o Amarildo, no restaurante, no dia dos pais, me trouxe de volta bons momentos da adolescência, me animou as lembranças, mas também, e infelizmente, me apontou a certeza irremediável do fim (alguns dos nossos craques do Internacional da Mauriti já se foram)... 
Já o Clóvis Maurity me inundou de presente e de esperanças. Traz a vida no sorriso (é vovô novo). Chegou no restaurante pedindo lugar para oito pessoas. Isso prova o quanto o Clóvis é uma pessoa dada, acessível, generosa. Dá vontade mesmo de Estar junto dele. 
Nos conhecemos em Altamira, no final da década de 1980. Formalmente, Clóvis emprestava seu talento a um projeto liderado pelo Museu Emílio Goeldi. Mas o brilhantismo do Clóvis se espraiava para fora dos contornos administrativos e ia dar nos escurinhos das cavernas. Era (e ainda é) um apaixonado pela geometria, pela mineralogia, pela antropologia, pelos escaninhos comprimidos das cavernas, e tão e tanto, que no dia seguinte ao domingo dos pais, e mesmo de folga do trabalho regular, já se ajeitava para fazer mais uma visita às formações de arenito, nos arredores de Itaituba. 
No dia dos pais, só deu Mauriti. Com ‘i’ ou com ‘y’, tanto faz. Compõem, enfim, formas que tenho em elevada conta, nas lidas e na vida.   

sábado, 11 de agosto de 2012

crônica da semana - imbigo


Se comer imbigo morre?
Meu amigo arregalou os olhos com um certo pavor urgente, e disparou nervoso: “não, não, isso a gente não come!”. Tarde demais. Antes do alerta, eu já tinha engolido uns três conjuntos de mexilhão, incluindo o umbigo. Eu ia saber que não pode comer o imbiguinho do bicho? Não que fosse inexperiente de todo. Mexilhão conheço, lá da feira da Pedreira, só que este daqui da Espanha é um teba de tez plumo-rosácea que se a gente for olhar direitinho, não come. E era o que eu estava fazendo: abria a casquinha, enfiava os dedos, fechava os olhos e mandava pra dentro. Meio sobressaltado com a orientação, a única coisa que me bateu perguntar foi se a gente morre se comer umbigo de mexilhão porrudo. Como escrevo esta crônica passados dois dias do ocorrido, me parece óbvio que não.
Não foi o único furo que dei nesta viagem. Foi-não-foi, me desentendi com alguns pratos, digamos assim, pouco convencionais para este liroublec emergente do vale barrento do rio Acre e talhado a chibé, água de arroz, farofinha (e a algumas oxítonas emblemáticas tipo tacacá, tucupi, vatapá, açaí, caribé...).
Durante as férias, nos quedamos na margem ocidental da Espanha. Uma região litorânea cuja principal riqueza é um mar dadivoso, pródigo, fecundo. Nas nossas andanças, desde os limites com Portugal até o FinisTerrae, ao largo de La Coruña, nos deparamos com um cardápio afortunado em produtos do Atlântico.
Dá-se então, que, em qualquer mesa, e ainda mais nesta época do ano em que rola uma praia (com a água ali, beirando os 20 graus, mas...praia) há sempre um prato montado com as iguarias marinhas. Aí já viu. Tive que ir aprendendo aos poucos a me virar com os bichinhos, com os imbiguinhos, com as casquinhas e conchinhas. Algumas vezes, é claro, a ratada foi inevitável, mas tudo superado com bom humor e com a vontade de experimentar coisas novas.
A diversidade de vida marinha aqui é enorme. Move a economia do lugar. Gera riqueza no bolso e na culinária. Como diz meu amigo Armando, que nos recebe por aqui, “O mar nos dá tudo”.
É uma lembrança agradável que vou levar daqui: esta relação respeitosa que percebi que os iberos têm com o mar (na mesa e na vida).
Outras artes me vão ficar bem marcadas também. Estamos voltando pra Belém e tenho que frisar aspectos dos costumes e condutas do povo espanhol. Não posso deixar de citar que aqui, se atravessa a rua com toda a certeza que não vamos ser abalroados por um inconsequente. A faixa cidadã é respeitada. Aliás, nem só a faixa. Presenciei cenas em que a preferência é dada ao pedestre mesmo fora da faixa; Pode-se ir à praia, deixar máquina fotográfica, celular, carteira, óculos, roupas, num montinho, ir dar um mergulho e na volta, encontrar tudo no lugar. O risco de ser roubado aqui existe, mas é bem pequeno; Todo mundo passeia com seu cachorrinho, mas tem também o seu saquinho higiênico e não entra na praia com ele (animais na praia, só as gaivotas); Os treme-terra da vida não se criariam aqui. O barulho é uma travessura impensada por cá. Não há. Nem na rua, nem entre os vizinhos, nos ônibus, na praia. Aqui é o paraíso do silêncio; Embora os ventos da crise soprem por aqui, pobreza não se vê. Não se vêm casas modestas. É tudo no granito; A quantidade de automóveis é altíssima. Parece que todo mundo tem um. E não é qualquer modelo não. É de Citroën pra cima.
A Espanha é um país alegre, porém disciplinado. Grande, atraente e sedutor. Pra não dizer que não têm pendências, sim, eles cantam aqui (em cada canto que haja uma festa), o “Gustavo Lima e você” e ainda o Michel Teló. Ninguém é perfeito.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Cronica remix- manoel

Manoel, o audaz
Há alguns anos, lá na Praça da República eu vi o Delcley Machado tocando a música “Manuel, o Audaz”, do compositor mineiro Toninho Horta. Fiquei impressionado com aquela apresentação. Primeiro porque o show era ao ar livre e, já sabe né, com direito àquelas limitações de infra que a gente conhece quando o poder público se anima para ofertar um issozinho de bom para o povo. Mas olha só, benza Deus este menino Delcley. Ele foi primoroso, impecável na interpretação. Tocou com uma sensibilidade, com uma entrega. Mergulhou na melodia e nos apresentou alguma coisa que eu acho ser um pedacinho do céu. (E para não ser injusto na lembrança, acompanhando a encantadora guitarra e juncando de flores os solos fenomenais do Delcley, naquele dia, estava uma galera feríssima da música instrumental paraense).
Além do talento dos músicos que se doavam à pura arte, ali no anfiteatro da Praça, a melodia deixou marcas. Eu já conhecia outras versões, inclusive enriquecida com um belo poema, na voz do próprio Toninho Horta, mas naquele dia, a música daquele jeito (só tocada e com aquela harmonia mágica do Delcley), me veio com um calor especial. Calor de pai. Bateu, sabe. Fez tóim óim óim aqui dentro da minha caixola. Liguei o Manuel audaz da canção, ao Manoel meu pai, lá do Xapuri.
Sei pouco sobre ele. Parte do que sei de meu pai é o que minha mãe contava quando eu era pequeno. Depois que cresci, procurei saber mais. Fiz duas viagens ao Xapuri. Na última delas, passei cinco dias no seringal em que nasci e acabei participando da rotina do campo (querendo ser audaz), acordando cedo, espalhando ração pelo terreiro, chamando os bichos pra comer: thu thu thu thu thu (e vinha pato, pintinho, galinha, até porco, cabrito, bode apareciam no quintal atrás dum petisco). Experimentei o desjejum do seringueiro montado com carnes, caldos e o que mais desse ‘sustança’. Fui pra lida. Pilei arroz, tirei mourão, colhi o milho (e sabia que isso, esse usufruto de uma rocinha, um carvão aqui, uma casa de farinha acolá, esse mínimo para viver como bom cristão era uma conquista grandiosa do homem da floresta. Muita gente tombou sob a mira dos poderosos para que eu estivesse ali colhendo folhas da hortinha nos fundos do barracão. Por causa dessa vitória histórica, eu fazia aquilo envaidecido, orgulhoso do meu povo acreano). Ganhei as ruas de seringa, nos altos dos igarapés, e risquei umas quantas árvores pelo caminho. Em cada uma delas, deixei fincada minha tigela na espera dos gotejos preciosos que a nós são oferecidos pela abençoada, pela laureada Hevea brasiliensis. Proseei com meus tios, meus primos, ao anoitecer; ouvi a cotação da borracha pela Rádio Nacional de Brasília e como um bom seringueiro, me aquietei antes do Cruzeiro do Sul tombar no horizonte. Adormecia sempre cansado e pensativo, acompanhando a fumacinha e a tisna que a lamparina desenhava no telhado.
Depois do seringal, passei uns dias na cidade e conheci mais histórias de meu pai. Soube das traquinagens, dos desafios que ele enfrentou. E da batalha que não conseguiu vencer. Histórias fortes. Comoventes.
De homem forte que era, definhou. Morreu naquelas terras longes chamando pelos filhos.
Quando deixei o Acre, trouxe na bagagem meu pai de verdade. Um pai que eu sempre quis ter. Um Manoel audaz que aplicava até injeção e tomava uma bebida chamada leite de onça. Um pai que mesmo na ausência, me ensinou (ou fez nascer em mim, sei lá) esta vontade de ser pai.
Amanhã, a melodia de Manuel, o Audaz, do jeito que o Delcley tocou lá no anfiteatro vai trazer de novo, meu pai pra mim (e vou me confortar com o pouquinho de Manoel que sou). Na hora do almoço, pra abrandar meu coração, vou ficar só ouvindo os meus filhos: “pai, tal coisa assim assim?”, “o que acha disso, pai?”. Pai, isso. Pai, aquilo. Pai...E não vou me cansar de ouvir... “Pai”...
Preciso ouvir.


 

sábado, 4 de agosto de 2012

Crônica da semana . tutatis


Por Tutatis!
Eu fiz duas coleções das revistinhas do Asterix. A primeira eu inteirei em Rondônia. O que tem de curioso e bacana na construção deste meu acervo é que Rondônia nem era um centro de circulação para as publicações mais clássicas, naquela época. Todavia, tinha por lá uma heroína, que montou a Rose Livraria e no auge de domínio das edições importadas pelo Círculo do Livro, Rose nos municiou com os mais variados produtos literários. A segunda coleção, montei em Altamira e comprei os exemplares direto da editora. Como as perdi, as duas, é assunto que por ora, urge olvidarmos.
Mas olha só as voltas que o mundo dá. No último domingo, rolou algo como um encontro com meus heróis dos quadrinhos: conheci uma vila Celta.
O lugar é fenomenal. Fica no cume do Monte Santa Tecla. Faz parte de um conjunto histórico de registro desta antiga civilização que engloba também parte de Portugal. As aldeias se distribuem pelas margens do rio Miño e esta, em particular, que visitei, se destaca pela visão panorâmica. É lá no cocuruto do monte.
Enquanto subíamos até o pico, ficava me perguntando que motivos tinham aquele povo pra sitiarem-se lá nas alturas, porque, convenhamos, é uma pisada sofrida chegar até lá. Aos poucos, fui percebendo as razões.
Os Celtas formavam sociedades tribais que ocuparam boa parte da Europa desde o neolítico. Tinham controles descentralizados, mas em comum, possuíam a língua, os costumes e a religião (donde obtinham inspiração para invocar a proteção do deus Tutatis, o “pai do Povo”).
Somavam-se em Gauleses (a galera do Asterix), Bretões (aqueles que usam os adjetivos antes dos substantivos, tipo, ‘quente água’), Gálatas (os destinatários das cartas de São Paulo) e Helvéticos (os despercebidos, neutros e ricos suíços), entre outros, e se destacavam como os bárbaros que compartilhavam virtudes como o heroísmo e a independência.
Daí que com estes traços de arrogância e orgulhos natos, era um pé para que os Celtas, daqui pr’ali, fossem desafiados.
Nesta região da Galícia, o topo do Monte Santa Tecla era um ponto estratégico de defesa. De lá, tinham uma rica visão das entradas por mar e terra, uma oferta generosa de pedras para rolarem abaixo contra os inimigos ou municiarem suas catapultas. A foz do Miño, além das belezas naturais regalou os Celtas também com segurança e proximidade com o céu (o monte tem 341m de altitude, mas, pelo encanto, pelo significado e pelo ventinho gelado que corre livre por lá, parece ter mais, bem mais).
Não resistiram, porém, aos romanos (segundo os criadores de Asterix, toda a Gália fora ocupada pelos romanos. Toda? Não! Uma pequena aldeia gaulesa deu muito trabalho a Júlio César).
O sítio de Santa Tecla, embora expresse toda a longevidade da civilização Celta (com testemunho de armas em pedra, desenhos rupestres e signos primitivos) já apresenta fortes influências da cultura romana e inclusive mostra a fase cristianizada do Império. Na aldeia há a evidência do domínio e o assentimento aos valores cristãos expressos na exuberância dos símbolos (traçaram simetricamente uma Via Sacra, com cruzes talhadas desde a base até o topo do monte, numa arte que se realiza como das mais fulgurantes e atraentes do lugar). Vê-se no complexo do aldeamento, os Celtas migrarem aos cultos cristãos (e eles que não admitiam a personificação de seus deuses, quedam-se a admitir templos ornados por imagens santas).
As ruínas indicam outras pelejas enfrentadas pelos Celtas galegos. Mas de cima do Monte Santa Tecla qualquer arenga era minimizada. Por Tutatis, que lugar bonito!