sábado, 26 de setembro de 2015

crônica da semana - Fulana

Fulana
Estava reservando o momento, o instante certo para revelar um segredo. Uma confissão que eu faria e que tem a ver com a minha passagem pelo inquebrantável, o insuperável, o insuplantável, o infatigável; o combatido, porém jamais vencido; o ilustrado e glorioso Internacional da Mauriti.
Faria.
Mas não vou falar hoje sobre o time da minha rua, ainda quando eu era moleque bom de bola. Fica pra próxima esta prosa descortinada e suave, porque o papo da hora é velado e áspero e se esparrama sobre o zunzunzum criado em torno da regulamentação da PEC das domésticas.
E o zunido vem das histórias que minha irmã conta quando lidava com esta prenda nas casas da grã-finagem de Ipanema, Copacabana. Usava uniforme e tudo. Iguaizinhos àqueles que as empregadas domésticas usam nas novelas, com aquele folho branco no peito e aquela tiara engomada na cabeça. Minha irmã...Uma heroína. Filha somente do meu pai. Veio com a gente do Acre. Mamãe criou todo mundo junto. Ganhou o rumo do Rio de Janeiro com uma filha de meses no colo. Foi tentar a sorte. Deu de confronte com a grã-finagem. Tem muita história.
As empregadas domésticas agora têm direito, entre outros benefícios, ao FGTS e ao seguro-desemprego.
Assim como a Regina Casé, no filme “Que hora ela volta?”, que vai tentar o Oscar no ano que vem, minha irmã também levou a filha para morar na casa dos patrões.Tantas histórias me contou.
Em época de avanços nesta relação doméstica de trabalho, algumas lembranças vis voltam a arder sobre a pele da gente.
O íntimo de dominação, de autoridade, de comando e do jugo desmedido fez da elite branca brasileira uma das mais cruéis e preguiçosas das sociedades coloniais. Era sinal de status exibir-se em ócio confortável atendido em tudo em quanto por um grande número de escravos. Senhoras da realeza, dondocas da nobreza, castos membros do clero tinham serviçais até para limpar-lhes as partes após as naturais desobrigas fisiológicas.
Este comportamento descansado perpassou gerações. É claro, sofreu modificações impostas pelas pressões civilizatórias, mas não perdeu a propriedade folgazã, mandona, assoberbada. Apenas fez um rearranjo das humilhações.
A madama sentada estava e de lá não saía para nada. “Fulana, traz água”; ‘Fulana, serve o café”; “Fulana, limpa aqui que acabei derramando o suco na mesa”... E sempre ordena, e sempre impõe. “Esquenta teu jantar e vai comer na cozinha. Frita um ovo pra inteirar”. Já não lhe tem as partes íntimas asseadas por mãos de mucamas sem nome (Fulana), mas...mas só faltava essa.
Oxalá a PEC das domésticas moralize as relações e ratifique esta convivência no lar como uma relação de trabalho onde se realizem com severidade o respeito, as obrigações, os direitos.
Minha irmã me conta cada história da grã-finagem, mas a melhor delas é ter levado a filha a ter duas faculdades, é ter feito dos sofrimentos razões para lutas ferrenhas e gloriosas vitórias.

Eu deveria contar um segredo sobre o glorioso Internacional da Mauriti. Mas não, hoje não. Hoje estou atento ao zunzunzum das consciências coletivas.

sábado, 19 de setembro de 2015

crônica da semana -vira porco

Seu Vira-porco e a mata da Primeira légua
Eu tinha medo que me pelava de passar perto daquela mata que se estende além da Doutor Freitas. Mamãe dizia que ali era terra de encantados e que de tudo quanto era visagem, assombração e espírito havia por aquelas bandas. Jurava de pé junto que o manto verde que se erguia à beira da pista era a porta de entrada do desconhecido e do inacreditável. Éraste, chega só de falar me dá um arrepio!
(A área que fica à margem da Dr. Freitas demarca o primeiro limite urbano estabelecido para Belém, ainda no tempo das Sesmarias. Traçado em arco orientado por um raio de 6.600 metros, com centro no Forte do Castelo, compõe a extensão de uma légua. Ainda hoje, um marco de concreto sinalizando o máximo urbano da cidade está cravado ali, na Bandeira Branca; e com nome e sobrenome de Marco da Primeira Légua Patrimonial, é a origem do topônimo de um bairro residencial de Belém. Durante muito tempo, o que havia adiante da primeira légua era a mata densa, o rumo de Bragança e os medos coletivos).
A floresta se estendia desde Val de Cans até a margem do Guamá, lá pras bandas do Agronômico. Hoje, depois das pressões urbanas, apresenta rasgos salteados, desmatados, ocupados e redesenhados em novos bairros.
No final da Pedro Miranda ainda há o manto verde.
Só que de primeiro, não era assim como hoje. Antigamente os medos eram produzidos por menções e fantasias partilhadas. A molecada amofinava antes das dez da noite, só de pensar nos escurinhos do final da Pedro Miranda, e nos perigos que eles abrigavam.
Eu era menino impressionado, criança ainda, crente e ciente das criações do imaginário. Certa vez, tive que curar um golpe deste tamanho que eu tinha arrumado no pé quando pisei num caco de vidro, na bola que rolava em um aterro de caroço de açaí que tinha bem defronte de casa. Irmã Clara, que de todos cuidava, me recebia cedinho, no Centro Auxilium. Fazia o curativo, dava uma injeção pra não infeccionar aquela ferida beiçuda, e um ralho pela minha peraltice.
Aconteceu de uma chuva fina que tilintou ritmada durante a noite toda no telhado de casa, varar o dia. Tive que me abalar naquele chuvisco, me equilibrando nas pontes que remedavam um caminho para fazer o curativo. Manhã gris. Ninguém na rua. No que chego à esquina, vejo um vulto saindo da mata. Corri os olhos ao largo e uma viva alma que me valesse, vi pela rua. Firmei o passo em direção ao colégio das irmãs, e nesse momento notei um porco deste tamanhão se aproximando. Imenso, de movimentos lerdos, mas decididos. Veio em minha direção e estava em tempo de me pegar.
Minha mãe maldava de um vizinho solitário que virava porco. Havia história dele sumindo na mata e, coincidentemente, logo depois do sumiço, as pessoas ouviam um fuçado para além das matas da primeira légua.
Corri, corri, quando cheguei, me joguei nos braços da irmã Clara, em choque. Contei a história, ela juntou as irmãs, os funcionários e desceram para a rua. Lugar mais limpo. Ninguém. Nem porco, nem gente. Só a chuva fina, o eco e os causos.


terça-feira, 15 de setembro de 2015

crônica remix - cem dias

Navegar é Preciso
Uma aventura inconseqüente. Esta é a primeira impressão que temos ao nos depararmos com os relatos de Amyr KlinK sobre a sua louca travessia do Atlântico.
Mas valeu a pena?
E o navegador introduz a sua saga com os versos de Fernando Pessoa na edição do livro  Cem dias entre o céu e o mar (Companhia de bolso, 2005): “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
Em 10 de julho de 1984 um brasileiro incompreendido zarpava sozinho do litoral africano em direção à costa brasileira, pilotando um pequeno barco a remo.
Os momentos dessa viagem, mesmo aquelas coincidências que se anteciparam a partida, até os pormenores operacionais em meio à grandiosa massa de água atlântica são descritos com muita propriedade e concisão no livro, pelo navegador solitário.
O suspense, a emoção, o vislumbre de um mundo de água, para nós distante. Os fenômenos naturais anticiclônicos do Atlântico sul, a explicação para a descoberta (sem muito esforço, vá lá), do Brasil; a história regada pelo cientificismo náutico inaugurado pelos portugueses, são ingredientes que atraem e nos prendem a atenção numa leitura prazerosa. Nos levam sem medos ao mar sem fim de Diogo Cão e Fernando Pessoa.  
Enfim, quando aportou na praia da Espera, litoral baiano, Amyr havia cumprido uma aventura impensada por qualquer um de nós pobres mortais. Havia desafiado a solidão e encontrado motivos dos mais simples, no meio do mar, para perseverar.
Os relatos de Amyr, além de esclarecedores sobre a dinâmica das rotas oceânicas são uma vitamina para a alma. São aditivos para superar as nossas fraquezas tão rotineiras. Afinal de contas no nosso dia-a-dia não nos deparamos ocasionalmente com nenhuma baleia de 20 metros ou com uma vuca de tubarões nada amistosos. No nosso vaivém diário não nos vemos emborcados por uma onda salgada de 8 metros. Amyr tirou de letra estas situações acreditando em si mesmo, em seus estudos e em sua capacidade. Mas acima de tudo na sua sanidade física e mental. Puro e legítimo controle de si. Isso o livro nos ensina.
Já encostando na praia de Salvador Amyr foi abordado por um barco de pescadores. Perguntaram como foi a pescaria. Ele disse que não havia pescado nada. E de onde vinha? completaram os pescadores. Da África, respondeu Amyr. E esta praia é muito longe? Inquietaram-se os homens do mar. Um pouquinho. Um pouquinho longe, devolveu Amyr, com incontida alegria por avistar ao largo, os primeiros coqueiros em terra firme.
Cem dias entre o céu e o mar é uma odisséia moderna cheia de surpresas e perigos suportáveis apenas por heróis. Amyr cruzou da África para o Brasil num pequeno barco utilizando as correntes de deriva, muita técnica, mas acima de tudo valendo-se da fé num credo antigo que reza que ‘navegar é preciso’.

(E por falar nisso, vou aqui deixar uma pulga a incomodar as orelhas mais curiosas: a frase “navegar é preciso...” é creditada, pelos mais novos ou mesmo por aqueles tropicalistas de fim-de-semana-na-casa-do-tio-ouvindo-aqueles-discos-antigos ao baiano Caetano Veloso, por causa, é claro, da canção ‘Os argonautas’. Já os mais zelosos reconhecem a frase como um raio humanista deflagrado pelo eletrizado espírito poético de Fernando Pessoa. Só que, lendo aqui e ali, pesquisando acolá, dei com uma origem um tanto Antiga para esta frase tão atual. Diz-se que ela vem lá de Roma. Foi proferida pelo general Pompeu em uma de suas batalhas pela pax no império. Eu fico com o Fernando pessoa porque sou poeta-parcial, mas enfim, se ‘navegar é preciso’ e ‘viver não é preciso’, a pulga incomoda).

sábado, 12 de setembro de 2015

crônica da semana - a travessia da baía

A travessia da baía e uns dinheiros de bubuia
Eu tenho uma rede. Aquela de esticar o espinhaço no feriadão e a outra, aquela que chamo de parceirada, conhecida também por network.
Nesta minha lida de escrever e coisa e tal, meu network tem cortado e arado. Uma articulação em torno do meu trabalho, sempre há, e me deixa lisonjeado, bestão mesmo de tanta consideração. Não escapo, porém, a tropeções, porque digo sempre: um pobre é a representação da antítese. É o embate de sortes, a contradição de intentos.Tem uma rede? Tem. Mas às vezes, despenca dela. Sempre tem uma adversativa na vida do pobre.
Certa vez, minha rede me levou a Abaetetuba. Campus da Federal. Pessoal de Letras fazendo uma Semana Literária. Fui convidado para... não sei bem para quê fui convidado, mas aproveitando meus quinze minutos de fama fui disposto a tudo. Fazer uns passinhos de dança, jogar malabares, bater uma viola, falar sobre meu processo de criação, discorrer sobre minha maior premiação, o conto “A filha do holandês”, conferida pela própria Federal.
Era um evento acadêmico. Doutor a dar na canela. Os capas da teoria literária estavam lá. E eu, ó, fui me encolhendo, me abeirando, me acudindo à sombra protetora d’A Filha do holandês. Minha participação não tinha horário definido e eu fiquei lá e cá. Aproveitei e tentei aprender um pouquinho dos termos e causas do fazer literário nas oficinas. A estrela do evento era o professor Silvio Holanda, agudíssimo em dissecar a obra de João Guimarães Rosa. Um passarinho me soprou que depois das exposições do professor, seria minha vez. Quanta responsa! Como leitor apaixonado por “Grande Sertão...”, participei de todas as mesas comandadas por Silvio Holanda. O tempo passou, o horário dele montou no meu, a garotada interessada (e eu também). O previsível aconteceu. Balaram minha apresentação. Havia um último horário, uma última mesa a se formar, mas deram preferência a um grupo de linguistas que deveria voltar na mesma pisada para Belém. A mim, me restou a humilde aquiescência e uma pontinha de indignação. Afinal me tiraram da minha folga, do convívio com minha família, de uma ou outra obrigação social, me envolveram numa programação acadêmica da qual me sentia anos luz de distância no entendimento e na percepção, me deixaram bestando sob a luz das primeiras estrelas com minha “...Filha do Holandês” no colo, sem nem saber como voltar de Abaeté para casa.
Acabei ficando para a noite cultural e depois de umas quantas caipirinhas, tomei coragem e abri meu coração para a coordenação do evento. Estava desprevenido de grana para bancar a noite ali. Eles se compadeceram. Arrumaram hotel, um de cumê e ainda me proveram com um cachê de consolação pela minha participação na... caipirinha literária.

Na manhã seguinte, embarquei na primeira viagem para Belém. E constatei: o pobre (ou um pobre cronista), é sempre subjugado às adversativas. Ganha um dinheirinho de cachê por conta de uns talentos etílicos que tem? Ganha. Mas na travessia da baía, meu barco foi assaltado e os ladrões levaram de bubuia minha grana.

sábado, 5 de setembro de 2015

crônica da semana - cardinais

Bobas curiosidades (ou flexão dos cardinais)
Eu ainda não contei até três bilhões, quinhentos e vinte e nove milhões, doze mil, cento e quatro unidades simples, por isso não posso arriscar se acerto no cravo ou na ferradura. Então vamos assim, de pouquinho em pouquinho...
A gente sai por ali salteando entradas nos empórios do Veropa e arremata um candeeiro, uma bacia. Um pente de plástico azulzinho, uma grosa de grampos. Um espelhinho com desenhos na moldura, uma xícara de florzinha com os dizeres “à querida mamãe”. Um saquinho de canforina, uma peça de fazenda estampada. Um balde de zinco pequeno, uma garrafa térmica barata. Um envelope de Boa Noite para espantar carapanãs, uma rosquinha sobressalente para a máquina de moer carne. Atravessa para a feira.
Compra um saco reforçado no saqueiro, contrata um carregador com carrinho de mão no jeito, e desbrava os corredores ziguezagueando entre as barracas, buscando os preços mais em conta. E vai recolhendo: um mamão bem macio, duas pencas de banana. Um punhado de pimentas amarelinhas, duas dúzias de ovos. Um quilo de goma pra fazer tapioca, duas medidas apuradas de tucupi. Um maço de cheiro verde, duas latas de muruci bem medidas. Um paneiro de caranguejo, duas sacas de farinha. Encosta numa barraquinha de lanche. Um suco de cupuaçu, um de taperebá, duas coxinhas, uma garrafinha d’água, duas mentas.
Dá pra gente tirar por esta prosa no Veropa, que para sinalizar a quantidade de produtos comprados, pontuei o texto com os números cardinais um e dois e as variações que acho que atendem ao feminino: uma, duas.
Agora faz de conta que nas minhas compras, adquiri mais de dois produtos. Minha contagem ficaria assim:
Três pentes... dezenove grosas de grampos... trinta e cinco espelhinhos...Um milhão de xícaras...
Aí na xícara já está bom. Já dá pra ilustrar como é a natureza escalar da nossa língua e como este perfil de notações se define em gênero quase que exclusivamente masculino.
Não dizemos dezenovas grosas de grampos e nem uma milhona de xícaras, nem duas milhões de xícaras. A variação na notação numérica não ultrapassa as duas unidades. Um pente, duas xícaras. A partir do número dois, a contagem numérica não exibe mais o sentimento, a impressão feminina. Não se atém a gênero e se se atém, atêm-se, mesmo que sutilmente, ao gênero masculino ou a imparcialidade comum de dois gêneros: treze alunos, treze alunas.
Lá pela casa da centena a variação é novamente percebida. Duzentas pessoas, quinhentas vezes, novecentas ideias. Mas depois das centenas...
Hummm...Não sei.
Não sei se acerto no cravo ou na ferradura, não contei elementos de gêneros diferentes até a distância de três bilhões, quinhentos e vinte e nove milhões, doze mil, cento e quatro unidades simples. Se alguém quiser tentar, me ajude, por favor, e me volte com o resultado, tá. Sou dado a essas bobas curiosidades.

Detalhe: a resposta vai demorar. Estudos indicam que, contando de um em um, a gente chegaria na casa dos três bilhões em aproximadamente 100 anos. Tenho a impressão que não vou alcançar a resposta.