Preferência
Para os desavisados, passo por chato. Mas nada. Sou do bem. Tenho pra mim que raríssimas faculdades diligenciadas pelo ser humano são superiores em nobreza e graça, à música. Considero a música estar ali, na biqueira, com os mais caros dons a nós permitidos. Ela é fundamental. Tem poderes biológicos (ajuda a manter ‘a espinha ereta e o coração tranquilo’), espirituais (traz Deus pra perto). É um mecanismo social fantástico (ajunta gente, agrega tribos, anima o churrasco na laje). Sou, declaradamente, um amante da música. Na minha casa não pode faltar. Agora, em celular, maninho, nem Mozart. Música tocada em celular não dá! Ainda mais daquele jeito: pra todo mundo ouvir.
Tudo na vida tem o lado dificultoso de provar. Com a música a coisa flui neste ritmo. E ‘pelamordedeus’, não me tenham como preconceituoso. Sou não. Aceito as diferenças. E amo a música. Mas valorizo incondicionalmente a liberdade. Não somos obrigados a nada.
No caso do celular, há duas modalidades, ambas bastantes incisivas, de transformar a música em coisa detestável. Uma é quando a música é colocada como toque, para anunciar a chamada. Rola sempre a presunção nessa hora. Então o desassisado acha que “Eu quero thu/eu quero tha” é uma sobrelevação da criação e nos brinda com esta pérola no mais alto volume. E deixa, para o nosso desespero, a porqueira do aparelho tocar umas quantas vezes o adamantino refrão, até que se digne a atender a ligação. Pelos mesmos motivos, o desatinado seleciona o rádio, ou o MP3, ou o raio que o parta, e põe o volume no 12 para usufruirmos de uma plêiade que vai do forró rasgadão ao tecnobrega cult (na verdade, a plêiade nem é tão variada, não. Ainda não ouvi Mozart, por exemplo, numa parada dessas), sem recatos ou culpas. Essa arrumação não tem eira nem beira. Ocorre em qualquer lugar. No ônibus (e o que tem de reclamação de uso de aparelhos sonoros nos ônibus, não é brincadeira), nas praças, nas escolas e até em doutos ambientes de trabalho. Observo que, por ora, não arengo com o tipo de música que se ouve (esta é outra prosa que, aqui, embora calhe, não cabe). Defendo o direito, a liberdade de ouvir o que se queira. Fico piriricas, sim, com o alto volume, com a arrogância de quem se utiliza deste expediente (há algo de sádico nisso, com certeza) e com a baixa exigência para com a qualidade do som que se consome (porque em celular, maninho, nem Mozart).
A música é responsável por uma série de reações no corpo e na alma. Causa euforia, alegria, saudade. Quando tem um ritmo acelerado, faz o esqueleto balançar. Tem propriedades saudáveis. Componentes que tornam a nossa vida justificável. Tenho minhas preferências e tenho também escrúpulos espaciais. O mesmo ‘thu/tha’ que detonei ali atrás, faz a trilha sonora para meus momentos de descontração com meus meninos (até faço a coreografia com eles); O som eletrizante dos tecnos paraenses me fez tremer dias desses, num show concorridíssimo. Bronca de um isso ou de um aquilo, até que tenho, mas não radicalizo. Relevo. Pontuo, portanto, que jamais quereria me destacar em qualquer ambiente, por uma gasguitagem do meu celular (que por sinal fica sempre no silencioso, que é para não perturbar ninguém. Só vibra).
Outro dia, vinha de barco para Belém. Um cidadão sentou do meu lado e mandou ver o sonzão, no celular. Desocupei o lugar e fui sentar ao lado do motor. Preferi o barulho da máquina a ser submetido àquela grosseria. Será que isso é normal? Vou consultar um psiquiatra, um psicólogo... Se eu não estiver aqui, na próxima semana, é porque o doido sou eu.