sábado, 12 de maio de 2012

Crônica da semana- Desmonta gato

O Desmonta Gato

De alguém que resolve desmentidura com reza, fecha peito aberto com unguento, cerze carne rasgada com menções de agulhadas em retalhos de panos estampados, a gente já ouviu falar. Agora de um mago que desestala, destrava ou desencavala ossos, a gente ouviu pouco. Eu vim saber de umas histórias, agora, por esses dias. 

(Relatam os quiquiquis de esquina, em Abaetetuba, que certo dia ele chegou em casa, deitou sobre a mesa um quilo de pá só com o osso da peça, catou o maço de abade de cima da geladeira e saiu a fim de pitar um fumo sossegado, apreciando o movimento da rua. Depois de um tempo com o olhar perdido pelos céus de Abaeté, e entorpecido pelos voláteis do tabaco, ele tornou à cozinha. Tomou um susto. “mas quede a carne que botei aqui, agorinha mesmo?”, Volveu rapidamente para a porta detrás da casa e ainda viu, esgueirando-se pelo leito escorregadio de limo dos muros, um gato a abocanhar a peça de carne que lhe serviria de almoço naquele dia. “Ah, fela d’uma égua! Eu te pego.” Irado, jurou o gato. 
Dias depois, o bichano deu mole e eles se toparam no ‘chagão’. Não deu alarme. Foi delicado, amigável. Pegou o felino no colo levou para o alpendre, fez dengos e carinhos nele. Mal sabia, o Frajola de Abaeté, que estava sendo preparado para uma total, irretocável e indolor desmontagem. 
Pôs em prática a sua técnica. Era especialista na arquitetura óssea. As pessoas iam na casa dele com o braço pendurado e ele, com um tec-tec, o voltava pro lugar. Em alguns casos mais radicais, joelhos com a rótula praticamente virada para o dorso da perna eram reposicionados com uma seqüência sincronizada de estalos. Sem dor. Um mágico, um mago. O encantado da beira do Maratauíra. 
Ocorre que as mesmas santas mãos que aliviavam torções e contusões; as mesmas e abençoadas mãos que juntavam e alinhavam ossos, agora, ali no alpendre, desconjuntavam o pobre do gato todinho. E enquanto operava as desatracações, condenava em sussurros o pobre animal: “Que dizer que tu bancaste a patifaria comigo, né. Deste fim no meu cumê. Tá pai d’égua. Mas eu disse, num disse, que ia te pegar? Pois agora, vais sentir a dor de uma saudade.” 
Não houve dor. Ele tinha jeito. Era conhecedor. Pressionava no lugar certo, no sulco mais discreto da pele do gato e...tec, a articulação se desarticulava. Fez isso nos quatro cantos do bichinho. Onde tinha um ossinho atrelado ele ia lá e...tec, desatrelava. 
Coisa de quinze minutos depois, sem que emitisse um único miado sofrido, o gato estava todo aberto. Absurdamente desconectado, parecendo aqueles tapetes de urso, do filme de Daniel Boone. Estendeu o gato no quarador que ele tinha no quintal, mas o deixou à sombra do maracujazeiro que se espalhava pela cerca pro bichano não sofrer tanto. A quem passasse ao largo, ocorria-lhe apenas o suspiro suave, quase imperceptível. Um chiado necessário a garantir a vida do ‘bechano’. 
Não era um gatocida. Gostava de animais. E de gente. Ajudava a comunidade destravando, no que lhe era possível, as demandas ortopédicas que lhe chegavam às mãos. Benzia, também. Ouve-se, pelas esquinas, ainda, que aquele costume que tinha de pitar um cigarrinho mirando as cimeiras de Abaeté, devia-se a amizade que ele nutria com uns extraterrestres. 
Tratou aquela atitude, como uma repreenda, afinal, o gato lhe subtraíra a mistura do dia. 
Deu um tempo por ali, curtiu um cigarrinho e fitou o vazio do céu. Logo voltou ao quarador e lá mesmo, recompôs com estalinhos graciosos, o gato. E tão logo de pé, o gato ressurgiu, deu um pinote e escafedeu-se de forma tal, que ninguém, nunca mais o viu).   

Um comentário:

  1. Então essa é a origem do Desmontagato?
    Aff sofri só de pensar no bechano desconjuntado......

    Carmen Filha

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