sábado, 29 de agosto de 2020

crônica da semana - o bonito que é feio

 O bonito que é feio

O igarapé era um rego irrigado de água boa e abundante. Fazia parte da herança. O igarapé, as terras altas, as culturas da fazenda, as cercas que separavam as propriedades passaram, depois da morte do marido, a ser administradas pela viúva. Não tenho referência de mata queimando, nas terras da viúva, enquanto acampei por ali, à margem do igarapé. Agora nos vizinhos...

Naquela área, aconteceram as minhas primeiras e traumáticas experiências com queimadas na Amazônia.

O local em que ficava meu acampamento era conhecido como Linha 70. Fazia parte da rede de vicinais que cortavam o Estado de Rondônia de norte a sul, num dos mais bem sucedidos planos de colonização desencadeados pelo governo. Um projeto que garantiu ocupação e produção robusta de culturas de ponta, ao longo da BR364. Ao contrário do que aconteceu, por exemplo, na transamazônica, onde os agricultores foram abandonados à própria sorte, em Rondônia, as esferas de governo envolvidas cuidaram para oferecer uma infra-estrutura de apoio aos colonos. A construção de uma rede viária com vicinais a cada 5 quilômetros foi uma ação decisiva para proporcionar uma boa logística aos produtores. Há, porém, o revés deste sucesso todo. Rondônia é o Estado mais devastado da Amazônia. Vi a morte da floresta, ali, sufocado nos limites do meu acampamento. Havia vizinhos na frente, nos lados, no fundo do terreno da viúva. Em determinada época do ano, todos queimavam. Eu até me interessava pela programação de alguns deles, porque tinha medo das chamas atingirem meu acampamento. Ficava sabendo das datas, do período do dia , dos aceiros que seriam feitos. Não podia desmobilizar minha equipe. Enquanto durava o fogo, mantínhamos nossa rotina. Saíamos para o campo, desenvolvíamos o trabalho na distância. Mas quando voltávamos para o acampamento, o sofrimento era certo com o calor e a fumaça. Às vezes, a queima de uma tarefa demorava três, quatro dias. Quando outros proprietários emendavam a queimada, o sofrimento se estendia por até quinze dias, direto.

A fumaça, o pozinho fino e tisnado, todo o produto da combustão fóssil, é leviano e inquieto. Instável, difuso. São partículas que se dispersam, são levadas pelo vento, movimentadas pela diferença de pressão. Ganham o mundo. E vêm bater aqui em cima do nosso cocuruto. Belém, semana passada, viveu dias, imersa no fumacio. Não era a mesma nuvem que me atazanava a vida, me ardia os olhos e me bronqueva os pulmões, daqueles dias na Linha 70. O tempo não é capaz de realizar essas mágicas, mas na certa tem a causa mesmíssima. A mesma e destruidora tradição das queimadas.

Em contradição, os olhos que ardem e lacrimejam, por essa época percebem ao amanhecer e no final do dia, um brilho bem mais discreto do sol. Uma textura quase opaca, uma emissão de raios suave, sem agredir a retina. E a gente percebe o sol vermelho, às vezes laranja, e de contornos bem definidos. Uma bolona colorida de uma beleza Incontestável.

Um bonito que é feio. Uma imagem que tem uma plástica fascinante, mas um custo ambiental altíssimo. O que faz o sol deixar-se ser contemplado mais nitidamente, por esses dias é a poluição causada por este caminhar errático da fumaça e que nas horas de resfriamento do ar, se concentra no extremo mais baixo da atmosfera.

Aqui na Pedreira tem o igarapé do Zé. Sofreu essa semana com as margens fumacentas. É de bronquear os brônquios e lagrimar os olhos.

sábado, 22 de agosto de 2020

crônica da semana - o frio do meu quintal

 O frio do meu quintal

Se a gente contasse, na cidade, com ônibus equipados com ar condicionado, na certa, eu romperia o isolamento social, e daria, pelo menos, duas voltas completas no Pedreira Lomas só na frescurinha, só na confortabilidade, depois do almoço. Seria uma alternativa ao custo de duas passagens, para vencer esta batalha duríssima que está se tornado o horário ‘de meio-dia pra tarde’, em Belém. Porque ar condicionado em casa, é só pra quem pode, né.

Mas que é necessário, isso é. As tardes estão de esturricar o cocuruto. Por demais quente e seco, o tempo. Sem cabedal pra manter um ar condicionado e sem a opção de um tour no Pedreira-Lomas, o jeito é improvisar no quintal.

A primeira opção que grassou aqui no coletivo, foi uma piscina, plástica, daquelas que fazem a festa da meninada. Estava até encaminhada uma pesquisa e tudo, mas tinha um custo, o tamanho da piscininha, grande para a área reduzida do quintal, mas pequeno, caso todo o coletivo quisesse dar um tibêi ao mesmo tempo.

Aí, dei que tínhamos há tempos, uma mangueira em casa, sem uso. Rapidola, abandonamos a idéia da piscininha. Resgatamos a mangueira dos guardados, montamos os engates, as conexões, as vedações. Achamos até aquele bico controlador de vazão pra adaptar na ponta. Pronto, nossas tardes de calor amainado estavam garantidas. Dá até um friozinho, na hora do banho de mangueira. Duvida?

Aí é que a gente torna para os mistérios do universo. Pleno sol de rachar, temperatura pela hora da morte, mormaço, a gente em tempo de estoporar e um jeitinho aqui, outro ali no jato de água, muda tudo radicalmente.

A fonte desse mistério é exatamente o bico regulador de fluxo que adaptamos na mangueira. Quando alteramos a forma do esguicho, um fenômeno espetacular, que vou me esforçar à cata da explicação, acontece. Com o bico da mangueira totalmente aberto, o fluxo de água é contínuo, compacto e acompanha a temperatura ambiente. Sai uma água quentinha. Por outro lado, quando a gente fecha a saída, no bico, a água vem fracionada, o jato forma aquela cortininha, à guisa de uma chuva em pequenas gotas. Desse jeito a água fica fria que é uma maravilha. Conseguimos refrescar o corpo e resfriar o ambiente, só fazendo chuveirinho.

E tem um detalhe que é um assombro. Há um jeitinho de formar a cortininha, bem em cima da gente, que quando nos oferta o jato neblinado individual, tem a capacidade de reduzir drasticamente a temperatura na área em que atua. Um tempinho de nada embaixo dessa nevinha, e periga até a gente tiritar e bater o queixo.

Nas tentativas de tornar a tarde um tempo possível de sobreviver, sorrir, ter algum ânimo, experimentamos a valer, as várias restrições no bico da mangueira e nos contentamos com a sensível melhora da temperatura e do humor, no quintal.

As tardes da família agora são de resistência ao calor, do jeito possível. Mesmo porque, não pudemos contar com uma ajuda de nossos representantes na Câmara Municipal, que nos permitisse, por lei, dar as voltas pela cidade, beneficiados pelo ar condicionado do Pedreira-Lomas. E também, são tardes de buscas pelas explicações. Reconhecemos, por esses dias abafados, que a satisfação refrescante pode até ser alcançada pelo instinto, mas só a ciência, o apego ao conhecimento, podem explicar o fenômeno que, olha, tem nos aprazido pacas nos últimos dias. Vou já recuperar dos meus guardados, os apontamentos do professor Campbel, lá dos anos 80, na ETFPA. Tenho certeza, esse friozinho, ser arte que a Física explica.

domingo, 16 de agosto de 2020

sábado, 15 de agosto de 2020

crônica da semana - os barulhos da

 

Os barulhos da quarentena

Agora, por ocasião da pandemia, quando o medo diário nos exige ficar em casa, os nossos aviamentos de sobrevivência foram lá pra cima no preço. O di cumê, produtos de higiene, medicamentos, tudo ganhou uma pitada de aumento. A luz já se assanha pra subir também. Outros componentes do cenário eremitério também estão pela hora da morte. Equipamentos, serviços que nos ajudam a vencer a solidão, saltitam que é uma maravilha as casinhas das unidades de Reais. Internet, televisão, aparelho de som, pacotes de séries, não tiram o pé do acelerador de preços. Não bastasse o vírus assombrando em cada esquina, pra completar a derrota, o meu celular, esbandalhou. Ficou panema que só arfa. A tela ficou parecendo um tecido de paletó antigo. O puro riscado. Faz e recebe chamadas, só. Outras ferramentas, não liga, não acessa, nem dá um oi. Pronto, lá se’stou eu por fora dos sustos e fakes espalhados pelo zap. Fiz a menção de comprar um novo, quite! Ainda tô zonzo com os valores. Um celular hoje está batendo com o preço por acolá.

A elevação do preço das coisas não é o único detalhe que a gente presta reparo em tempos de pandemia. Cinco meses de confinamento aguçaram a atenção para barulhos e comportamentos que de outro jeito, passamos batido.

Elegi três, aqui em casa, e um barulho externo, que estão deixando sua marca. O vrummmm no último do ventilador; o bip prolongado do microondas e o chuá de água escorrendo, todos pautando uma rotina totalmente modificada nos últimos tempos. E vindo lá de fora, com toda energia que tem, o barulho selvagem do Arrocha, a qualquer hora, e em aspérrimos decibéis, faça chuva, faça sol.

Pelo comum de antes, só nos encontrávamos em casa, ali pelo início da noite. Durante o dia, era todo mundo na rua. Naquelas circunstâncias, os espaços e costumes eram dosados, harmonizados ao nosso cotidiano.

Agora, nos alertamos, a cada instante, para o jeito de cada um. E é aí que a dinâmica dos barulhos se revela. Para onde a gente vai, acossados por este calor medonho, o ventilador vai atrás. Às vezes dá até uma arenga de disputa, mas de curto e certo é o barulho ininterrupto do tufão, no afã de amainar a quentura que não amaina não. Daí para um banho ou um asseado pra refrescar é um pulo. O chuá da água também não para. É lavando a mão, é lavando a louça, é no banho pra aliviar a quentura, é a desobriga santa de cada um. Termos e jeitos alterados, o metabolismo também perde o prumo. A gulodice, ou uma coisinha só para apaziguar aquele buraco no estômago, também não escolhe tempo. De quando em quando é a luzinha seguida do bip estirado do microondas.

Agora, tô encasquetado mesmo é com o barulho de fora. Zueiro, o paraense é mesmo (e isso não é um elogio). Quando põe o treme-terra pra rodar, não alivia. É de balangar a casa toda. E abalar o humor de qualquer um. Desse mal sofro que só, mas agora o tremor se assevera por causa do mesmíssimo estilo de música. É sempre o Arrocha. Seja no ao’pegado de cá, seja no de lá, ou mesmo vindo de um carro estacionado com a mala aberta ali na pista, a barulhada é a mesma. Com o requinte de ter preferência por uma única música. Uma que ensaia um tiau, e que, obrigado pelo caos instalado, já estou até aprendendo umas partes. Um caso a ser estudado. Uma música que (na minha opinião, observo) é de toda ruim, fazer tanto sucesso algures e alhures, é sem dúvida, um fenômeno.

Os dias se sucedem em medos, espantos e barulhos. Vrummmm! Biiiiippp. Chuá. Por hoje é só. Oi e tiau.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

crônica da semana - home de pôr café

 

Homem de pôr café

Até aquele domingo só havia entrado numa igreja porque minha mãe, certa vez, cismou de eu, ainda adolescente, apadrinhar a filha de uma freguesa dela. Obviamente que o arranjo resultou numa relação de compadrio fracassada e depois, reciprocamente esquecida.

Eis que no domingo, dentro da programação do encontro, ocorreria a celebração da Eucaristia. Corri e revelei aos coordenadores que não era católico praticante, não lembrava a única vez que tinha participado de uma missa, sequer carregava o abono da Primeira Comunhão. Reconheci que não era merecedor de celebrar com os outros naquele domingo. Celebrei. Fiz a confissão com o Padre Lourenço, fui absolvido e recebi conselhos do Bertolusso. Naquele dia aconteceu a minha Primeira Comunhão.

A missa encerrava três dias de reflexões contidos no encontro anual de jovens da Escola Salesiana do Trabalho. O encontro avalizava os garotos a ingressarem no Movimento Caminhada, grupo de ação pastoral mantido pela Escola. A reunião se realizava na casa dos padres em Mosqueiro e na volta para Belém, uma recepção cheia de emoção nos aguardava. Todo o cenário concorria para um arrebatamento, um êxtase quase incontrolável, uma explosão de fé. O encontro que dava início à nossa caminhada era como se fosse uma fonte de múltiplas energias, manancial de esperanças, águas puras e santas das quais nos nutríamos de força e coragem para mudar o mundo.

Mas foi a conta. Quando voltei para Belém, pensei já ser santo. Na recepção, logo dei um carão na minha família, porque viviam na perdição; nos dias seguintes, virei-me contra os moleques da rua; me isolei dos colegas da Escola Técnica. Estava purificado e não podia correr o risco de me perder de novo pelos escuros do mundo. Alguém que me conhecesse, arriscaria dizer que eu tinha ficado bilé da cuca. Era quase um fanático. Um fundamentalista cristão edificado em três dias de retiro.

Não aconteceu o mesmo com os outros meninos que fizeram o encontro comigo, porque eles já eram maceteados, viviam a realidade de uma escola religiosa. Nada do que ouviram ou fizeram no encontro, era novidade para eles. Para mim, sim. Não era aluno salesiano, nem de longe íntimo da fé e dos ritos da igreja. Quando me vi naquele fim de semana, minado de informações e doutrinas nunca experimentadas, me impressionei.

Logo no início do isolamento social, fui liberado de fazer o café aqui em casa. O coletivo não aprovou minhas experiências. Passados quatro meses, fui autorizado a inventar de novo. Todo dia faço de um jeito ou de uma composição diferente e depois pergunto pra turma se acertei no sabor. Não sei deixar panela no fogo sem assistência, até concluir o processo, fico em cima. Observo todos os fenômenos que acontecem. O aquecimento da água, a subida das primeiras bolhas, a reação de solubilização quando a gente acrescenta açúcar, a evolução da temperatura quando a gente não coloca açúcar, a dissolução do pó sobre a água e da água sobre o pó. Enquanto preparo o café, resgato um dos enunciados mais sublimes da Física: o Princípio da Incerteza.

Até aquele domingo nunca tinha entrado numa igreja de vontade própria. Não imaginava o peso de uma conversão. Era um sereno rapazinho de pouca fé e de prudentes incertezas, como, mais tranquilamente, hoje me sinto. Sei hoje que nada é determinadamente absoluto, santo ou isento, como, durante minha caminhada, me fizeram acreditar, os meninos maceteados que fizeram um encontro de três dias comigo, na casa dos padres, em Mosqueiro.