O pés de espinafre do Lora
Nem
bem publiquei a crônica da semana passada, e me chega, de uma forma muito
sentida, a notícia que nosso tencionado museu da Pedreira já vai hospedar outro
símbolo do bairro.
Uma
missa, o encontro de comunitários dos mais remotos recantos, ex-alunos e
alunas, crias do semi-internato, agregados que nem eu e fiéis colaboradores,
despedem-se de parte da Escola Salesiana do Trabalho, e, pelo que apreendi, a
parte mais genuinamente salesiana. A capela, o grande refeitório, as oficinas,
o pequeno canteiro em que o Padre Lourenço (nosso Lora querido) cultivava voluntariosos
pés de espinafre. Não é exagero dizer que parte de mim, da minha personalidade se
desaprega tijolo por tijolo, também, daquela edificação absolutamente representativa
para todos nós moleques da Pedreira e alhures. Fundamental para nossas fomes
saciadas de fé, de saber, de fazer e de pão (com Q-suco).
Foi
numa tarde chuvisquenta de maio que tomei contato pela primeira vez com uma
obra inspirada em Dom Bosco. E foi de um jeito cheio de sinais, de preciosos
detalhes. Cheguei pelas mãos do, hoje jornalista, Edir Gaya. Ele, já uma
liderança de realce entre os jovens. Eu, um desguiado sem rumo. Até aquele dia,
não dava a mínima para qualquer interação com igreja. Umazinha de crença que
fosse. Edir se engraçou de mim, entre os colegas da Escola Técnica, e me pescou
para participar da pastoral de jovens. Nem primeira comunhão eu tinha no
currículo. Saímos da ETFPA debaixo daquela chuvinha, cruzamos os estirões a pé.
Já perto, baixando pelas pontes da Perebebuí, encontramos Neuza, dirigente
dedicada, super envolvida nos planos da pastoral. Caminhamos juntos (o nome do
grupo de jovens dos salesianos era ‘Caminhada’). Enquanto vencíamos as pontes
até o asfalto, eu me ligava na conversa deles. Atualizavam agenda, discutiam
planos, relacionavam equipes. Percebi como eram empenhados, como falavam uma
linguagem de responsabilidades. Artes distantes demais do meu ócio e das minhas
solidões saindo da adolescência.
Quando
chegamos, fui ter com o diretor do grupo, à época, o padre Atílio Bellandi. Em
breve entrevista, ele me informou que mesmo não sendo aluno da Escola, e sem
professar nenhuma crença, eu havia sido indicado e agora ele me convidava a participar
das atividades do Movimento Caminhada. Perguntei o que aquilo queria dizer,
como era viver esta outra vida de compromissos com aquela parte da igreja. E
ele respondeu me impondo o desafio. Deu o exemplo do açaí. Qual o gosto? Como
se toma açaí? E adiantou. Só experimentando. Para definir minha vida como
salesiano, tinha que experimentar.
Por
mais de três anos, vivi com os salesianos, as melhores, as mais ricas
experiências da vida que pude julgar e compreender. Assumi posições de
liderança, penetrei nos interstícios da alta coordenação da Escola (tinha até a
chave do teatro, de umas salas, era conhecido dos cachorros). Penso que
contribuí para que a vida da nossa periferia fosse melhor. Partilhei a fé,
busquei obras e a paz no espírito. Juntei perto de mim, pessoas maravilhosas
que até hoje me são fontes de inspiração. Viajei, me distanciei na fé. Nem foi
causa de ir tão longe. Mantive
continuado contato, pelo respeito e carinho que tenho com a EST.
Padre
Lourenço tinha na sala dele, um mosaico, não com imagens dos louros do trabalho
que ele realizava na área. No quadro estavam as fotos de garotos que ele havia
perdido para o mundo. Muitos não para este mundo. Alguns presos; outros,
desguiados, como se dizia. Aquele mosaico o inquietava. Inspirava o inspirado
Lourenço todo dia ser mais forte e mais radical na batalha pela vida.
Vale
chorar. A fachada da Escola Salesiana vai se somar às imagens no mosaico da
memória pedreirense. Mas jamais nos desanimando. Sempre e cada vez mais
fortemente nos estimulando a lutar por um mundo melhor.