sexta-feira, 30 de abril de 2021

crônica da semana - lapiseira

 A lapiseira, o cepo e o cabo da pá

Eu dizia que aquele era quase um equipamento de tortura medieval.

Utilizávamos a geringonça para pesquisar Cassiterita em Rondônia. Constava de uma sequência de tubos que eram empurrados terra adentro, sob a percussão de um cepo de madeira dura, com peso próximo de 100 quilos. Era manejado por quatro homens sobre uma plataforma. No procedimento, a equipe erguia o cepo, volteado por uma cinta de corda compartimentada, o que derivava uns 25 quilos pra cada braço, a uma altura que gerasse energia potencial, mais choque e mais o escambau de brutalidade, determinação e dor, e depois o largava velozmente sobre o extremo da composição de tubos. Assim, debaixo de muita cepada, o conjunto era introduzido no solo. Era um sistema manual. Tocado a feijão, como dizíamos. Bruto. Não era pra qualquer peão não.

Data dos primeiros dias da minha caminhada por Rondônia, a fértil ligação que criei com aquela equipe. E fizemos porque fizemos para ficarmos juntos. No meu último dia de trabalho, por lá, descontando uma ou outra baixa, a galera era a mesma. Foram quatro anos sem se desapregar.

Meu equipamento de trabalho, naqueles anos, foi sempre a lapiseira. Assumia as tarefas técnicas, logísticas, cuidava do rancho e do uso moderado da birita nos acampamentos (item que quando saía do controle era o único motivo para ficarmos bicudos, uns com os outros). Eles, porém, não estavam nem seu souza para a minha lapiseira. Sem comando ou menção nenhuma, me sinalizavam que se eu quisesse ser um líder, chefe de equipe, administrador de alguma campanha, deveria discernir o ir e o vir da atividade. Então, subi na plataforma, certa vez e me danei a socar o cepo. Assumi meus 25 quilos na corda e mandei ver. Normalmente, em terreno bom eram necessários uns dez golpes seqüentes sobre o tubo do topo, numa tirada só, sem intervalo, para resultar numa boa penetração. No terceiro golpe eu já estava na baba, no pira-paz-não-quero-mais. O suor frio escorreu, a vista turvou e a cabeça rodou. Desci da plataforma na biqueira de uma desfalecência. Arriei sobre um estrado que a gente montava para abrigar as amostras e fiquei ali tentando tornar. Rogério, que era bateador da equipe (para mim, o maior, o mais clássico, o mais elegante bateador do universo conhecido), foi ver como eu estava. Cigarro porronca apagado no canto da boca, mãos tuiradas de deslamar a amostra, olhos miúdos como se estivesse sempre rindo um riso curto, agachou-se, espalmou a mão sobre a minha testa, verificou o normal da temperatura. Tranqüilizou a galera e antes de voltar para a tarefa, resumiu o ocorrido com uma frase definitiva: “se tu não tivesse estudado um pouquinho, tavas no blefo”. Afastou-se. Depois de um instante retornou e colocou a lapiseira no bolso da minha camisa. Havia caído lá de cima enquanto eu socava o cepo.

Aquela gente humilde, dedicada e de um companheirismo inocente me mostrou que todo trabalho, por penoso que seja, pode ser dominado se a gente derivar os 100 quilos de brutalidade e dor. À minha equipe de Rondônia guardada com carinho na memória desses 38 anos, a homenagem hoje, pelo Dia do Trabalhador.

Rogério tinha razão. Muitos anos depois, tragado pelas ondas da reestruturação produtiva, me vi numa agonia só, pegado no cabo de uma pá, nas madrugadas fabris de Barcarena. E de novo, cara branca, suor frio, desanuviamento, à beira do blefo... definitivamente, a lapiseira havia tombado para trás.

sábado, 24 de abril de 2021

crônica da semana - Dudu do bem

 Polarização

Pensa num moleque péssimo. Fosse hoje, teria encabeçado a lista de bloqueados nas minhas redes sociais. Eu, assim, ó, com uma panemice indesejada, mas solertemente regular; dando fé a uma falta de sorte cruel, calhei de conviver a pulso, com aquele anjo mau errante em dois delicados momentos da vida. A primeira vez, foi quando formou comigo na turma de boys do supermercado Carisma. E já deu a letra. Era dos mais ardilosos. Sequestrava carretos, de gorjeta gorda e certa, dos barões, na cara dura, antes que chegassem ao nosso caixa. Embromava e se escondia das tarefas, na hora da limpeza do salão; batia o pão com fiambre da nossa mão, na hora do lanche rápido, na calçada do estacionamento. Era um cão chupando manga. Diziam ter as costas largas. Era aparentado do gerente e se dava o direito de ser, fazer e acontecer. Um mau elemento de primeira linha. Apesar de ser moleque da nossa idade, ia além do top comum. Era esticadão. Magrelo, mas bem musculoso, se valia da envergadura para se impor. Antes de tudo, de apadrinhado e mal intencionado, era um covarde. Certa vez, na saída da jornada, tarde da noite, a turma nossa a caminho para pegar o cristo, sem motivo algum, por pura malineza, me nocauteou. Ele, que parecia ser umas 30 vezes maior que eu, me alfobitou no samba e nos transpescos em plena Tito Franco. Embora me sobrasse revolta, nada pude fazer a não ser caminhar para a minha parada, soluçando, todo encalombado. Os que estavam no cortejo, nem seu Souza, não moveram uma palha. Fizeram foi rir daquela cena desleal (riram um riso tronxo, porque tinham medo dele, é que é).

Saiu do emprego.

Mas o tinhoso, quando quer atentar, em todo lugar põe o rabo. Topei com o inominável outra vez, na sétima série. Eu me abicorei e catei umas pedras na quadra abandonada, com o forte propósito de resistir e não me deixar encalombar mais. Não houve a precisão. O valentão caiu na turma em que brilhava a luz do meu melhor amigo na escola.

Dudu era um garoto doce. Não ficava atrás do inominável. Era um varapau também. Ao contrário do outro, não dava trela para o tamanhão. Era garoto de sorriso farto, distribuía afetos e atenção pra todo mundo. Eu reservava um destacado carinho ao Dudu. Era criado pelo pai. Toda a minha fé no mundo, nas regras e nas leis desmoronava quando refletia sobre o fato de meu amigo ter perdido a mãe para uma doença implacável, e ainda tão pequeno. Explicação alguma entrava na minha cabeça que me convencesse da ausência da mãe na vida de alguém. Na minha mente aquela situação machucava muito meu amigo e eu me colocava a todo instante, à disposição para o que desse e viesse, em atos e intenções que tirassem dele qualquer traço de tristeza. Éramos então os dois moleques mais pregados um ao outro, daquela escola.

Dudu brilhava e isso incomodava o inominável, que se alimentava das trevas. Não deu outra. O moleque péssimo voltou a ira para meu amigo e o atentava de tudo quanto era jeito. O que Dudu tinha de candura, tinha também de coragem e decisão. Não enjeitou a parada. Foi batata! Durante todo o transcurso da sétima série, os dois se trançaram no telequete atrás do Bosque. Eu, sem o menor medo de encalombar, era o segundo do Dudu. Segurava os cadernos, a camisa, os sapatos, torcia a valer por ele.

Tinha um carinho deste tamanhão pelo Dudu. Era órfão de mãe e na minha cabeça, isso fazia a diferença na hora da luta do bem contra o mau. A lei da valência vingava. Dudu nunca encalombou.

sábado, 17 de abril de 2021






 

crônica da semana - tua cantiga

 Tua cantiga

Logo que nasci, almocei meu umbigo com bastante farinha. Cuidei, porém, de guardar uma boa parte para que eu pudesse comer um isso de pedacinho a cada ano, pelo resto de minha vida. E assim tem sido.

Com o passar do tempo, dei com os rumos da arte. Virei um alguém construído por experimentos, sensações, realidades criadas. A pátria (amada), a prática (indolor), a pútrida (realidade), a pata (traiçoeira no lombo). Tudo junto me moldando.

Daí que, um certo dia, desses de descontroles racionais, de transbordos de intolerância, uma amiga reduziu o poema que compõe a canção “Tua cantiga” de Chico Buarque a uma narrativa sobre o comportamento desnaturado de um pai de família. Julgou os versos, condenou o enredo, crucificou na madeira fria e farpada do preconceito, o autor.

E eu que me mordo morno e caolho, em noites sem lua procuro mistérios. Vi emergir, aqui pertinho, do leito lodoso do canal da Pirajá, girassóis falantes, zumbis insones, um raiar do sol opaco na baixa madrugada. Em outras eternidades, explodiram correntes de águas púrpuras. Ultrapassaram a amurada do canal e derramaram culpas, sucuris beges, beldades sem rostos, espinhos sorridentes e entidades sagradas pelas ruas do entorno, até bem perto do horizonte que se exibe desdentado debaixo das luminárias de Pedro Miranda Mor dos Anzóis Pereira.

Ninguém num sabe. Ninguém num viu. Mas eu, sim... Eu tenho certeza. Do canal da Pirajá, emergem mistérios. E cantos roucos e sapos moucos e riscos poucos. Chororô na alta madrugada. Ninguém não sabe, ninguém não viu, nem esperança, nem amanhã. Nenhum tempo me pariu. Nonada.

Acontece que meu amigo, a partir daquela interpretação que fez da música de Chico Buarque, saiu espalhando por aí pelo zap que o artista era um demônio que, com suas canções, incentivava a destruição de lares.

A minha cuíra é entender como as pessoas percebem e como elas crivam as manifestações artísticas a partir de concepções tosquiadas que têm sobre a livre criação. Esta cisma começou a me inquietar, a mexer com minhas simbologias e minhas significâncias; com meus valores estéticos, meus recônditos teores, minhas faces expostas, meus íntimos pendores.

E me embrulhei na solidão de meus olhos. Sumi silencioso por entre espantos e tristezas. Descolori pensamentos, deli pretensões, subjuguei sonhos. Desapareci no encaixe compulsório de minhas pálpebras para não ver mais nada (ninguém num sabe, ninguém num viu...). O vazio me parece mais seguro. Menos tonto. Inofensivo. Minha amigo não me encontrará jamais no ermo gris expandido, quase infinito. Meu amiga não me atacará com opiniões apócrifas, não me atingirá com débeis deduções, as setas da rasa compreensão, de mim, serão desviadas. A dor em meu corpo será uma nota leve, memória fluida, e se tornará bolinha de cera impura, rolará ladeira abaixo, para as profundezas sulfúricas e lá, juntar-se-á aos seus (eles, satanazes autênticos de chifrinhos, tridentes na mão, narizes fumegantes, olhos braseados e em tudo por tudo, maus. Muito maus).

Eu só estou é essas pessoas que moldam a arte, ao seu próprio contorno, sendo que a arte não se molda e não se reconhece em limites, beiradas. A arte é mergulho abissal. É caminho longe, etéreo.

Eu só estou é essas pessoas que não se permitem o milagre da transubstanciação. Para minha amigx, sou o tipo de gente que, daqui até o fim da existência, todo ano, vai comer um pedacinho do próprio umbigo com farinha.

 

 

 

sábado, 10 de abril de 2021

crônica da semana - refração

 O copo com uma colher dentro

Arremeda ser registro da esperteza de um engraçadinho que passou, jogou as coisas na pia e se picou para momentos de preguicinha sem remorsos. Né não.

A composição do copo com uma colher dentro é uma montagem que favorece o entendimento sobre um fenômeno físico de difícil apreensão, no entanto, indispensável para a harmonia do nosso mundo: a refração. Trata-se do desvio que a luz sofre, quando muda de meio físico. A experiência clássica é esta uma: o copo de vidro com uma quantidade xis de água e uma colher mergulhada nele. Quando a gente olha através do copo, parece que a colher tem uma quebra, quando está dentro da água. A ilusão de ótica se dá por causa do desvio que a luz sofre ao passar de um meio (o ar) para outro (a água).

Guardei essa lição aprendida com o melhor professor de Física que conheci: o excepcional professor Campbel, com quem estudei na Escola Técnica e que além de me estimular na percepção dos fenômenos, como o que ocorre no copo com uma colher dentro, também cravou em mim a estratégia de nunca resolver ou substituir as letras de uma equação, sem antes arrumar a fórmula todinha e isolar a incógnita no primeiro termo, só depois, e de lá, até hoje, só depois é que inicio o sofrimento com as contas.

Cismo que não há um único brasileiro que não tenha sofrido refração nesses tempos, de tudo quanto é jeito, assombrosos.

O fenômeno, a gente percebe no campo físico. O espaço partilhado entre as pessoas não mais é tratado como dantes. Cada palmo de chão é monitorado, contado nas medidas da segurança e da vigilância com a saúde. Equações são montadas a partir de incógnitas de convivência. Mesmo assim, quando a gente substitui as nossas ações, todas elas, por números, chegamos a resultados estarrecedores. Estamos beirando as 5 mil mortes por dia. Daqui a pouco o Brasil vai registrar a assustadora marca de 500 mil óbitos por Covid. E nenhuma resultante prática para conter o extermínio se vê. Mobilização nacional, não tem. Condução unificada de propostas, não há. Uma vilania política sem tamanho caçoa da tragédia. Não nos é dada alternativa alguma no presente. E o futuro se mostra nebuloso, sombrio. O que poderia nos salvar era a vacina. Mas todo dia a promessa de vacinação se esvai pelo ralo. Esta semana parou tudo. Faltou vacina. Os números da imunização no Brasil indicam que foi distribuída uma quantidade de vacinas muito aquém do que estava prometida pelo Ministério da saúde. Sem vacina, sem amanhã.

As quebras, os desvios, além de se manifestarem no campo físico, também se estendem para a esfera emocional, comportamental. Tirando por mim, tenho oscilado do io ao chio em sentimentos, em sensações, gestos e atitudes. Solidão, apreensão, indignação e medo são companhias diárias, alternadas, às vezes. Noutras, no pacote completo. Destruindo, destroçando minha alma. Acredito que esta instabilidade, este sofrimento tórrido, seja brasa que arde e queima dentro de muita gente. Acompanho pelas redes sociais, pelo noticiário, o telefone toca e a notícia dói. Já tentei várias estratégias para equilibrar o animus. Por último, voltei a madrugar. Refletir ao alvorecer, contemplar o raiar do sol, ouvir o cantar dos primeiros pássaros e o acordar longe da minha Pedreira querida.

Há, porém, um fenômeno acontecendo no horizonte todos os dias. A colher está mergulhada dentro do copo com água. E não é uma ilusão de ótica. Ela está quebrada mesmo.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

crônica da semana - lata de ervilha

 Lata de ervilha

Ano passado, logo no início desses intermináveis dias de aperreios, ainda sem ter muita idéia de como lidar com a situação, passamos batido no abastecimento de casa. Isolados, sem poder ir ao supermercado ou à feira, os atendimentos delivery ainda em experimentação, a despensa zerou. Ficamos no mínimo. Calhou exatamente, nessa fase, de um senhor bater lá no portão, pedindo uma qualquer coisa que o ajudasse prover o de comer da família. Fiz um levantamento do que poderíamos oferecer. Contada bem contadinha a provisão imediata, nada tínhamos de excedente, a não ser uma lata de ervilha. E Mesmo me perguntando o que o bom homem faria com uma lata de ervilha, mesmo entendendo que aquela oferta não iria aplacar a fome de ninguém, frustrado, tomei da lata e retornei com a oferta ao portão. Ele agradeceu, juntou a lata com outras poucas coisas num saco e se adiantou para outro pedido, na vizinha.

Tão logo nos adaptamos aos novos modos de aviamento, fizemos uma combina aqui em casa de sempre pedir nas compras um excedente, uma coisinha a mais (ervilha, ora, nada contra...) para as ocasiões de batidas no portão, no coração e na consciência.

Um ano depois, vemos cair aos montes, ao largo e ao nosso lado mesmo, pessoas antes ativas e produtivas, sem a expectativa de sequer uma refeição ao raiar do dia.

Para muita gente a situação está desesperadora. O governo abandonou a parcela mais pobre da sociedade. Quem tinha o auxílio emergencial, vive agora de quê? Vacina, com este desmando federal, sabe-se lá quando. A vida normal não tem perspectiva de se restabelecer.

Então, a regra aqui em casa se asseverou. A pauta é coletar qualquer fagulhazinha, qualquer trisca que sobre de recurso, ou mesmo alterar o orçamento mensal e transformar o apurado em ‘de comer’ para quem precisa. Optamos também por abdicar de alguns prazeres, a cervejinha do sábado, uma ou outra tentação, e desviar o que der para aquelas pessoas que não têm um remédio, um feijão, um gás... Estamos numa guerra. As baixas são grandes e em todos os sentidos. Entendo que, quem puder fazer qualquer coisa para amparar o companheiro, a companheira, é esta a hora.

Quem tem um provento garantido, uma renda fixa, é esta a hora. Depois, quando passar, a gente volta a fazer aquelas presenças usuais. Sei que temos outras demandas, mas a vez agora é das pessoas em condições mínimas. Gente sem renda, sem eira nem beira. Essas estão na lista de prioridades.

É isso!

Estamos em pedaços, vamos nos juntar.

A experiência que tenho vivido nos últimos meses é de um solavanco nos rumos da consciência. Hoje em dia, cada tostão aqui em casa ganha destino pelas regras do que é possível partilhar.

Sei que muitos são ressabiados. Temem ser enganados, tragados pelos golpistas. Podemos, então, olhar para os mais próximos, parentes, amigos, aqueles que sabemos e conhecemos a realidade. Se entre estes, a demanda não existe, podemos buscar as organizações populares. Aqui na igreja de Aparecida, sei que a Cáritas tem um cadastro de pessoas que são assistidas com cestas básicas. No Jurunas, a comunidade da passagem Limoeiro desenvolve uma agenda com distribuição de sopa. Tenho acompanhado um movimento de grupos organizados que montam barracas (autônomas!) na rua com mantimentos. Aqueles que precisam retiram os produtos de necessidade, outros que passam e não precisam, repõem o estoque, fantástico isso! Oportunidade de colaborar não falta.

Estamos em pedaços, vamos nos juntar.